Entrevista com Evandro Carlos de Andrade II // O repórter testemunha a cena surpreendente : uma gota de sangue escorre da boca do Presidente morto
O DOSSIÊ GERAL publica desde ontem trechos do livro que um dia será concluído ( ver post anterior ) : uma longa entrevista com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001. Aqui, o repórter iniciante testemunha, no Palácio do Catete, o choque provocado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas :
Demitido do jornal Correio Radical por ter participado de uma greve por melhores salários, o repórter Evandro Carlos de Andrade já tinha conseguido um novo emprego – no Diário Carioca – quando testemunhou a cena inesquecível : uma gota de sangue escorrendo do canto direito da boca do presidente da República. A imagem atravessaria os próximos cinquenta anos guardada em algum escaninho da memória do repórter. Era impossível esquecê-la. Porque o Presidente estava morto.
A gota de sangue dava um toque surreal à maior tragédia da história republicana brasileira. Getúlio Dornelles Vargas tinha se suicidado com um tiro no peito, às oito e meia da manhã daquele 24 de agosto de 1954, em seus aposentos no terceiro andar do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O tiro no peito de Getúlio foi o “batismo de fogo” do repórter estreante. Evandro foi correndo ao Palácio. Depois da autópsia, o corpo seria exposto à visitação pública, no salão onde funcionava o Gabinete Militar da Presidência da República, no térreo. O caixão foi transportado do pavimento superior ao andar térreo em meio ao empurra-empurra da multidão que ocupava cada centímetro do salão. O balanço do caixão deve ter provocado o movimento da gota de sangue no canto da boca presidencial .Intimamente,o repórter ficou matutando sobre o surrealismo da cena : um corpo morto dava sinais (mínimos) de atividade.
Em meio à confusão que se instalou no Palácio, Evandro bem que pode ter cruzado com um dos chefes de gabinete da presidência, o embaixador José Sette Câmara – que, quarenta anos depois, descreveria assim o que aconteceu no instante em que o caixão foi simbolicamente entregue à curiosidade popular :
- Salas,salões,corredores fervilhavam de gente, num vozear aturdidor. Somente às cinco da tarde um rebuliço vindo do lado da escadaria indicava que chegara o momento em que Getúlio Vargas desceria pela última vez de seu claustro no terceiro andar. Corri à porta da ante-sala que dá para as escadas.Vi, então, um espetaculo inesquecível. As escadas apinhadas de gente não davam passagem para ninguém. Emergindo do terceiro andar, o ataúde, que no ambiente estreito das escadarias se afigurava enorme e desproporcional, negro e maciço, descia de uma maneira fantasmagórica. Não era carregado por ninguém, pois a passagem pelas escadas à cunha era impossível. Deslizava por sobre as cabeças, movido por mil mãos amigas e carinhosas, escorregava lentamente, aos balanços, em meio a choros, gritos histéricos, lamentos, pedaços de frases, invocações, protestos de fidelidade, objurgatórias, tudo na excitação dos empurrões, cotoveladas e queixas da multidão comprimida que não podia se arredar um centímetro. Ao aparecer o negro caixão à porta do salão do Gabinete Militar, ocorreu uma explosão coletiva de dor, revolta, tristeza, indignação. Gritos excitados, soluços doridos, brados furiosos, tudo aquilo se misturou num guaiar gigantesco e desencontrado da multidão que ali se comprimia. O caixão prosseguia no seu fantástico escorregar sobre as cabecas do povaréu, em direção à essa armada no centro do salão. Alguém, na ânsia de vislumbrar o corpo de Getúlio Vargas, tentou em um salto pendurar-se num dos enormes lustres, que desabou com o fragor dos cristais quebrados, entremeado de gritos de dor dos que eram atingidos pelos pedacos do lustre despencado(…) Nós, funcionarios do Palácio, fomos os primeiros a aproximarmo-nos do caixão. Lá estava ele, debaixo da tampa de cristal. O lenço passado sob o maxilar e atado sobre a cabeca não tinha sido retirado. Notei que a tampa do caixão comprimia as suas mãos, embranquecidas no lugar da pressão. O terço de Apolonio Sales estava entre os seus dedos. Durante o velório,voltei várias vezes ao estrado para curvar-me diante da visão ainda inacreditável para mim de GetúlioVargas morto” .
As cenas de histeria da multidão,o horror desenhado no rosto dos ministros, o sentimento generalizado de incredulidade, tudo se dissipou na memória do repórter Evandro Carlos de Andrade meio século depois. Ficou a lembrança da gota de sangue no canto da boca : “memória seletiva” em estado bruto.
Evandro aproxima-se do gravador, ajeita-se na poltrona, descreve assim a imagem inesquecível :
“Sem dúvida,a lembrança mais forte que guardei do velório de Getúlio Vargas foi esta : a do momento em que conduziram o corpo por uma escada estreita, em direção à sala apinhada de gente. Com o sacolejar, em meio ao tumulto de tanta gente chorando, vi uma gota de sangue escorrer da boca do presidente. Os médicos do Instituto de Medicina Legal tinham acabado de fazer a autópsia. Um detalhe me chamou a atenção : vestido com uma jaquetão grafite ,Getúlio tinha os mãos cruzadas; eram mãos grossas, com dedos curtos e peludos. Pela primeira vez , eu via o presidente tão de perto. E ele estava morto. Quando menino, eu já tinha desfilado diante de Getúlio Vargas, na Avenida Rio Branco, pelo meu colégio. Batia surdo na banda da escola. Desfilávamos para o Presidente no chamado “Dia da Raça”. Vivia-se sob a ditadura do Estado Novo. Além de desfilar, participei também de um grande coro de estudantes que se apresentava para Getúlio Vargas, no estádio do Vasco da Gama,em São Januário,sob a regência do maestro Heitor Villa-Lobos. Cada turma do colégio tinha um canto. Eu tinha de cantar aqueles versos “oh, manhã de sol…..!” .Tínhamos de ensaiar tudo na escola, antes de sermos regidos pelo maestro” .
“Eu, que tinha desfilado para Getúlio Vargas como estudante, encontrei-o de novo no poder quando comecei a trabalhar em jornal. Quando ouvi pelo rádio a notícia da morte do presidente, eu estava em casa. Corri para a redação do Diário Carioca. Em pouco tempo,chega Prudente de Morais, Neto - que, com o pseudônimo de Pedro Dantas, assinava uma coluna política em que tinha feito uma grande campanha contra a posse de Getúlio Vargas na presidência. Dizia que Getúlio só poderia ser empossado se alcançasse a maioria absoluta dos votos. A tese da maioria absoluta era uma invenção. Não havia nada assim na Constituição que impedisse a posse. Mas Prudente de Morais,Neto lutou –e muito- na coluna contra a posse. Agora, poucas horas depois do suicídio do presidente, ele estava ali, na redação do jornal. Lá estávamos eu, Pompeu de Souza, Carlos Castelo Branco. Uma cena que me chocou foi ver Prudente tomado por um ódio surpreendente – logo ele, uma pessoa doce, boníssima : quando entrava na redação, cumprimentava, um por um, todos os funcionários. O que me chocou naquele momento foi vê-lo relhando os dentes e dizendo “Filho da puta !”, ao se referir a Getúlio. Prudente percebeu imediatamente que o suicídio de Getúlio Vargas iria mudar todo o rumo da política no Brasil”.