Entrevista com Evandro Carlos de Andrade -7/ “Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo” ( e o dia em que o brigadeiro disse qual seria o remédio para o murro que Carlos Lacerda levou)
O impacto produzido no país pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas não chegou a perturbar pessoalmente o repórter iniciante. Evandro começava ali, inconscientemente, a tecer em torno de si a couraça de “cinismo” que termina envolvendo a pele dos jornalistas :
- “ Não pude ficar horas e horas no Palácio do Catete logo depois do suicídio porque tinha que ir para o jornal o mais rápido possível para fazer a matéria. Vi o corpo descer. Fiquei ali assistindo ao velório. Testemunhei uma comoção que, naquele momento, nem vinha de pessoas notáveis – mas do povo. Não verti nenhuma lágrima. A verdade é que o jornalista se torna – muito rapidamente- um cínico. Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo, porque estamos sempre vendo o horror e a mentira. Mas um choque é sempre um choque, como foi o suicídio do Getúlio. O que é que se faz uma hora dessas ? Corre-se para a redação - que é o ponto de referência. Logo em seguida, fui ao Palácio do Catete, para esperar a hora do início do velório”.
O Diário Carioca descreveria assim,em texto não assinado,na primeira página da edição de 25 de agosto de 1954 :
“Com a cabeça voltada para o quadro que representa o juramento da Constituição de 1891 e os pés para o quadro “Pátria”, a cuja frente se acha um crucifixo,o corpo do presidente Getúlio Vargas recebe,desde as 17: 30 horas de ontem, no salão do Gabinete da Casa Militar da Presidência da República, no Palácio do Catete,as despedidas de milhares de populares que vão lhe fazer a última visita.(…) –”Nada fazia crer que fosse o Presidente se matar”,disseram-nos o general Caiado de Castro e Jango Goulart, com os quais ele conversara minutos antes de se recolher. O sr. Getúlio Vargas se recolheu ao quarto, sem mais uma palavra. Passados uns minutos – o tempo normal para a troca de roupa- ouviu-se um disparo. Acudiu, incontinenti,o sr. N. Sarmanho, que se encontrava na janela da sala contígua (a do elevador privativo do presidente). Já o sr.Getúlio Vargas agonizava. Da janela, o sr.Sarmanho fez um sinal para um oficial, pedindo que fosse o general Caiado avisado de que o sr. Getúlio Vargas havia se matado.Logo em seguida, o general Caiado chegava ao quarto,onde, não resistindo ao impacto da tragédia, foi acometido de forte crise de nervos, sofrendo uma síncope. A seguir, correndo escada acima, o sr.Benjamin Vargas gritava :”Getúlio se matou!”. O Palácio ficou em pânico, a família do presidente acorreu,entre gritos e lágrimas. Também o sr.Oswaldo Aranha logo chegou .Junto à cama, chorando,exclamou :”Abusaram demais da bonda de desse homem !”.
Por que você diz que o Getúlio da ditadura do Estado Novo foi “melhor” que o Getúlio eleito democraticamente, em 1950, para um segundo governo ? – pergunto.
Evandro se anima a fazer um relato que mistura observação política com convivência familiar :
“O Getúlio do segundo governo era uma personalidade decadente”- responde. “O que era que acontecia ? A inflação estava crescendo;os ministros não tinham expressão. Tinha-se formado, entre as chamadas “classes dominantes”, um ressentimento contra o papel que Getúlio Vargas representava – o de Pai dos Pobres. Já o Getúlio do Estado Novo convocou as principais personalidades políticas do país para fazer um governo sob a ditadura. Os ministros todos de Getúlio eram homens públicos honradíssimos, dedicados e competentes : a elite do Brasil governando junto com o Getúlio numa ditadura. Getúlio pessoalmente era um homem intocável : despachava em pé no Palácio do Catete olhando pela janela, porque não admitia que ninguém pusesse lhe pusesse as mãos. Com ele,não existia “tapinha na barriga”. Não havia hipótese. Era um homem que se dava ao respeito - extremamente conservador. O “revolucionarismo” de Getúlio era uma contingência, porque ele, na verdade, era um conservador extremado. Quando foi ministro da fazenda do governo Washington Luís, Getúlio era um padrão de conservadorismo. Não queria derrubar o Presidente”.
“Admiração pelo Getúlio da ditadura – não pelo Getúlio decadente do segundo governo – só vim a ter depois, ao me informar sobre quem eram as personalidades que o cercaram. O ambiente em minha casa era antigetulista. Minha família tinha índole udenista. Para dizer a verdade, era de índole integralista. Quando eu era menino,dizia anauê (N: saudação do Movimento Integralista). Eu tinha dois ou três tios engajados no integralismo : quando houve o putsch de 1938 (tentativa de golpe dos integralistas contra o governo de Getúlio Vargas), eles tiveram de fugir para o interior do Mato Grosso”.
“Minhas simpatias iam para a UDN. Vou ser franco : a minha alma é udenista.Isso ficou em mim. Sou um udenista, mas detestei o golpismo de Carlos Lacerda naquele período. Hoje,tenho admiração pela figura histórica de Lacerda, mas, naquele momento, eu o detestei”.
“Nunca tive paciência para ler “O Capital”, mas tive influências de leituras sobre o pensamento marxista, sobre a análise do capitalismo, sobre a formação do capital. O que eu abominava, sobretudo, era a idéia de golpe militar. Revi posições, mas, no fundo, sou um udenista”.
“O meu udenismo vem da família : quando em 1945 se iniciou o processo do fim da ditadura do Estado Novo, minha família pendeu para a UDN. Fui junto. A queda de Getúlio obedeceu a uma espécie de progressão. Não foi de uma vez. Getúlio só caiu quando quis fazer do irmão, Benjamin Vargas, o Benja,chefe de polícia”.
“Quem era o meu ídolo entre os udenistas ? Vou dizer baixinho : era o Brigadeiro Eduardo Gomes. Eu via no Brigadeiro a figura de um herói, um homem de uma grande integridade. Nem sei se ele tinha a visão adequada de um Brasil efervescente,como era o país naquele momento. Mas era um homem absolutamente correto - um padrão moral. Tinha arriscado a vida na revolta dos Dezoito do Forte. Contavam-se duas histórias engraçadas sobre o Brigadeiro. Um dia, ele disse que quem tomou o forte foram 13, não 18. Quando quiseram saber “mas por que o senhor nunca disse que tinham sido 13 ? “, ele respondeu simplesmente :”Porque nunca me perguntaram !”. Carlos Lacerda uma vez levou um murro dentro do elevador da Rádio Mayrink Veiga . Dizia-se quem mandou dar o murro foi o marechal Mendes de Morais, prefeito do Rio de Janeiro na época. Lacerda sempre foi uma fera : comentarista da rádio, denunciava casos de corrupção e combatia o prefeito. Agredido violentamente, Lacerda ficou com um inchaço. Toda a UDN estava reunida na casa de Lacerda quando entra o Brigadeiro Eduardo Gomes. Fez-se silêncio. Todos esperavam que o Brigadeiro dissesse uma frase histórica sobre a agressão. Mas o Brigadeiro chegou bem perto do inchaço de Lacerda e disse :
-Bom pra isso é bife cru….. “