RECIFE – Entre um aeroporto e outro, o Dossiê Geral dá sinal de vida, para não perder o hábito.
Aviso aos caríssimos transeuntes : o Dossiê Geral não é exatamente um blog de opinião. O blogueiro é, sempre foi e será um mero coletor de declarações alheias. Em outras palavras: um perguntador. É o suficiente. Já há, espalhados pelo planeta, milhões de blogs pontificando sobre tudo e sobre todos. O Dossiê Geral fez, então, a opção preferencial pela reportagem e pela entrevista.
Feita esta ressalva, abro uma exceção para bradar aos quatro cantos do universo blogueiro uma opinião descarada : “O Nariz do Morto” é um dos mais belos livros já publicados no Brasil.
O autor: Antônio Carlos Vilaça.
A lembrança de Antônio Carlos Vilaça, morto faz quatro anos, surgiu durante a gravação de uma entrevista, hoje, em Olinda, com um escritor : sem titubear, ele deu a Antônio Carlos Vilaça o título de maior memorialista do Brasil ( em breve, detalhes da entrevista. A gravação foi marcada por uma coincidência comovente: justamente quanto o entrevistado recitava, emocionado, os versos do poema “Consolo na Praia”, obra-prima de Carlos Drummond de Andrade, os sinos do Mosteiro de São Bento começaram a tocar, ao fundo. Eram seis da tarde, em ponto. O entrevistado, um homem intensamente apaixonado pela poesia, recordava uma cena que vivera décadas antes. Publicara, num jornalzinho recifense, os versos imortais de Drummond ( aqueles: “Vamos,não chores/A infância está perdida/A mocidade está perdida/Mas a vida não se perdeu/O primeiro amor passou/O segundo amor passou/O terceiro amor passou/Mas o coração continua/(…)A injustiça não se resolve/À sombra do mundo errado/murmuraste um protesto tímido/Mas virão outros/Tudo somado, devias precipitar-te de vez nas águas/Estás nu, na areia, no vento/Dorme, meu filho”).
Um homem - que estava disposto a se matar – disse ao nosso entrevistado que desistira de cometer a loucura depois de ler os versos de Drummond no jornaleco.
O que fica de um escritor ? A beleza das palavras escritas. Ponto. Parágrafo.
Todo o resto é desperdício, desencontro, extravio. Tive pouco contato com Antônio Carlos Vilaça. Depois que li “O Nariz do Morto”, livro que garimpei num sebo, passei a admirá-lo. É um escritor que produziu pouco, mas fez um voto irrevogável de devoção à literatura.
Vivia asceticamente. Era despojadíssimo, gordo, suado, efusivo. Que eu saiba, morava de favor na sede do Pen Club, um caso único no mundo. Jovem, renunciou a tudo para se internar num mosteiro, em busca daquele silêncio que purifica, consola e enleva. Terminou voltando às turbulências da vida “civil”.
Pensei em um dia gravar um longo depoimento com Antonio Carlos Vilaça, uma entrevista em que ele poderia, quem sabe, descrever seus descaminhos de escritor e crente. A entrevista, aceita, nunca foi gravada: os desperdícios, os desencontros, os extravios de sempre.
Mas, feitas as contas , o que fica é que o foi escrito. As entrevistas não gravadas com Antônio Carlos Vilaça guardarei no mausoléu dos projetos irrealizados.
Um conselho: procurem, nas livrarias, sebos, nas calçadas, nas estantes empoeiradas, um exemplar de “O Nariz do Morto”. Que belo texto !
O livro de Antônio Carlos Vilaça não é tão conhecido quanto deveria. Pior para quem não o conhece. Não vale a pena gastar tempo lamentando : é apenas um capítulo do imenso, interminável e robustíssimo catálogo de injustiças brasileiras.
Em uma passagem de “O Nariz do Morto”, Vilaça – um homem tocado pela fé religiosa, a ponto de ter passado temporadas num mosteiro – queixa-se de que, diante do impenetrável silêncio de Deus, a devoção dos crentes se assemelhava, às vezes, a um monólogo. Era a esta a sensação que ele viveu entre as paredes do claustro:
“Ó paredes, dizei-me. “Eu quero a estrela da manhã !”. Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado”.
“Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura”.
“A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem. Cada dia, a morte vem”.
“A fé religiosa como que me assaltou. Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos, a vida simples, descuidada, solitária, tantas vezes, de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda”.
“Eu gostava das sublimidades. Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens”.
“O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura – a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera”.
“Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemente rolamos como gloriosos destroços !”.
“Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Foste sempre um peregrino em perigo”.
“Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás”.