O DIA EM LINCOLN GORDON FALOU SOBRE DOIS TEMAS EXPLOSIVOS. PRIMEIRO: OS ESTADOS UNIDOS QUERIAM QUE O BRASIL PARTICIPASSE DA GUERRA DO VIETNAM. SEGUNDO: A CIA FINANCIOU A CAMPANHA DE CANDIDATOS SIMPÁTICOS AOS EUA
Repórteres são seres bípedes pagos para incomodar os outros.
Pois bem: incomodei o sossego do ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, na última viagem que ele fez ao nosso país. Não me arrependo (Gordon morreu em Washington, aos 96 anos, neste dezembro).
Tive a chance de fazer duas entrevistas com ele. O homem era, claro, um baú inesgotável de histórias sobre um dos períodos mais conturbados da vida política brasileira: o início dos anos sessenta.
A primeira gravação foi para a TV: os pontos mais importantes da entrevista foram ao ar no domingo seguinte, no Fantástico. Gordon já era um octogenário,mas citava datas e nomes com uma precisão invejável.
Arrisquei: perguntei se teria tempo de me receber no dia seguinte, um sábado, para uma nova gravação. Teria,sim. Gordon estava com a tarde livre. Lá fui eu, sem a parafernália do equipamento de TV, mas com meu velho gravador cassete. A segunda entrevista deve ter se estendido por cerca de três horas. O mês: novembro. O ano: 2002. Um dia, prometo, a entrevista será publicada na íntegra.
Eis uma pequena mostra do que colhi na Maratona Gordon:
Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar de 1964,guardou segredo durante anos sobre os bastidores do dia em que o governo americano tentou fazer com que o Brasil participasse da Guerra do Vietnam.
”Não contei esta história no meu livro”, diz Gordon, autor do recém-lançado “A Segunda Chance do Brasil a Caminho do Primeiro Mundo”. Ao final de um depoimento gravado durante três horas ininterruptas no quarto 904 do Hotel Glória, no Rio, o ex-embaixador revelou detalhes inéditos sobre o dia em que entrou no Palácio do Planalto,em nome do presidente Lyndon Johnson, para pedir ao marechal Castelo Branco que o Brasil se engajasse numa guerra no sudeste asiático. Lincoln Gordon volta esta noite aos Estados Unidos,depois de cumprir um périplo por São Paulo,Rio de Janeiro,Brasília e Recife.
“Eu tive de manter segredo sobre o assunto na época” – explica Gordon.”Se o que aconteceu fosse divulgado,poderia criar um problema – mais sério para o Brasil do que para os Estados Unidos. O caso seria politicamente ruim para os dois países”.
Aos 89 anos de idade, este ex-professor de Economia da Universidade de Harvard e ex-subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos parece disposto a comprar uma briga com historiadores que,segundo ele,estão traçando um retrato distorcido sobre a postura que Castelo Branco – o primeiro presidente do regime militar – assumia diante dos Estados Unidos. O ex-embaixador diz que o fracasso da tentativa americana de atrair o Brasil para a guerra do Vietnam é uma prova de que os militares que assumiram o poder no Brasil não recebiam ordens dos Estados Unidos :
- Textos históricos esquerdistas ou anti-americanos descrevem Castelo Branco como se ele vivesse dizendo “sim,senhor”,”sim,senhor” e “sim,senhor” aos Estados Unidos.Um exemplo sempre citado é a concordância do Brasil em enviar militares brasileiros para participar da intervenção na República Dominicana,em 1965.Mas o que aconteceu em relação à Guerra do Vietnam é um exemplo de que Castelo Branco não era uma mera marionete dos Estados Unidos !.Agora,estou pronto a divulgar detalhes a respeito do caso,como uma demonstração de como Castelo Branco governava – avalia Gordon,no depoimento gravado.
Autor de “Presença dos Estados Unidos no Brasil” e “O Governo João Goulart : As Lutas Sociais no Brasil”,o historiador Moniz Bandeira contesta os argumentos de Gordon :
- O marechal Castelo Branco sempre foi considerado,sim,um títere dos Estados Unidos,não apenas por historiadores brasileiros,mas também por historiadores estrangeiros,como Ruth Leacock,autor de “Requiem for Revolution” ou Jan Black – que chegou a dizer que Castelo Branco proclamou a dependência do Brasil.O que Lincoln Gordon quer fazer agora é embelezar o golpe,é fazer maquiagem de 1964.
O ex-embaixador diz que o apelo para que o Brasil participasse da intervenção militar na República Dominicana foi feito a Castelo Branco pelo emissário do presidente Lyndon Johnson – o ex-ministro Averell Harriman,numa audiência testemunhada também pelo então ministro das relações exteriores brasileiro,Vasco Leitão da Cunha :
- O ministro nos disse que o envio de tropas brasileiras deveria ser feita dentro de uma ação latino-americana endossada por dois terços dos votos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Castelo Branco nos disse,então, que este detalhe faria uma vasta diferença para o Brasil.
Gordon reconstitui,assim,as palavras que ouviu de Castelo Branco :
- Castelo Branco me disse : ”Há quem pense em países vizinhos que assumi o governo ilegalmente – num típico golpe de estado latino-americano.Eu estou tentando restaurar a lei na democracia brasileira.Quero agir da mesma maneira no plano internacional.Então,diga ao Presidente Johnson que entendo o desejo americano,estou pronto a enviar tropas brasileiras para a República Dominicana,mas a decisão deve ser tomada por dois terços dos votos da OEA”.
O sucesso do esforço para envolver o Brasil na intervenção na República Dominicana – onde os Estados Unidos temiam o surgimento de um Estado marxista – abriu caminho para que,meses depois,os americanos jogassem outra cartada : e se o Brasil concordasse em participar da Guerra do Vietnam ?.
- Recebi um telegrama de Washington dizendo que a Guerra do Vietnam estava se tornando uma preocupação cada vez maior – diz Gordon. A Guerra tinha relação com a nossa moral – inclusive no plano internacional. Víamos o quadro como parte da guerra fria. O Brasil tinha mandado médicos para a Guerra da Coréia.Teve uma participação positiva.Agora,pedia-se algo parecido.
O segredo que o ex-embaixador guardou os termos do diálogo com o presidente brasileiro é compreensível : o episódio é a crônica de um fracasso. Gordon saiu do Palácio de mãos vazias. O ex-embaixador americano diz, hoje, que intimamente tinha dúvidas sobre a conveniência do pedido para que o Brasil se envolvesse no conflito no Vietnam :
- Eu tinha minhas reservas sobre se aquela atitude era a certa.A situação estava instável. Não me agradava a idéia de jogar gasolina na fogueira dos que diziam que o Brasil repetia “sim,senhor” aos pedidos dos Estados Unidos. Antes de ir para a audiência com Castelo Branco,cheguei a enviar um telegrama para Washington em que disse que,no caso brasileiro,não era uma decisão sábia fazer o pedido.Meu conselho não funcionou.O meu governo me mandou tentar.Eu fui. Apresentei o pedido a Castelo Branco o mais gentilmente possível….
Quando desembarcou no Palácio do Planalto,às vésperas do Natal de 1965,o embaixador tinha uma boa notícia a dar e um pedido incômodo a fazer ao presidente brasileiro.A boa notícia : o presidente Johnson autorizara a concessão de um empréstimo de 150 milhões de dólares ao Brasil.O pedido incômodo : diante da decisão de ampliar para 400 mil o número de soldados americanos mobilizados na “defesa do Vietnam do Sul” contra os comunistas do Vietnam do Norte,o governo Johnson queria saber se poderia contar com a ajuda do Brasil no esforço de guerra no sudeste asiático.
Depois de ouvir as explicações do embaixador americano,o presidente brasileiro avaliou a repercussão que o engajamento brasileiro no Vietnam teria no país :
- Castelo Branco me disse que, no caso do Vietnam, haveria uma resistência muito maior no Brasil. A participação não seria aceita rapidamente.Adiante, ele me disse :”Não sei como os meus companheiros de farda se sentirão,mas sei que haverá restrições no meio militar” .O que Castelo Branco fez foi me dizer “não” de uma forma gentil. Eu disse que a participação brasileira poderia até ser simbólica,porque o uso de tropas exigiria treinamento.Os combates eram travados em condições peculiares no Vietnam – com bombardeios aéreos e operações navais.
O ex-embaixador garante que “o que nós,os Estados Unidos,estávamos tentando era que o chamado mundo livre demonstrasse,o mais amplamente possível,que a operação era legítima”.
Gordon diz que os termos do diálogo com o presidente brasileiro foram preservados como “segredo de Estado”.Os Estados Unidos – obviamente- não tinham o menor interesse em divulgar um pedido que foi recusado pelo Brasil :
- Não queríamos divulgar o pedido,principalmente porque ele foi rejeitado – relata Gordon. Eu bem que tinha dito antes que seria melhor não fazer este pedido ao governo brasileiro. Mas fiz – de qualquer maneira. Previ que seria difícil. O pedido foi recusado. Quando mandei um novo relatório a Washington,não escrevi nada na linha do “eu não disse ? “. Mas Washington viu que a previsão que eu tinha feito estava certa.Os Estados Unidos desistiram.
A divulgação das circunstâncias em que se deu a recusa poderia provocar reações pouco simpáticas ao Brasil entre representantes da chamada “linha-dura” americana. Não se deve esquecer que,nas eleições de 1962,conforme cifras citadas pelo embaixador,a CIA tinha derramado no Brasil “cinco milhões de dólares” para ajudar a eleger deputados,senadores e governadores hostis a João Goulart.O próprio Lincoln Gordon se declara autor da idéia de mobilizar uma frota que se dirigiria ao Brasil para abastecer,com armas e petróleo,facções anti-Goulart,em caso de uma guerra civil. Por sugestão dos adidos militares da embaixada, um submarino seria despachado para o litoral de São Paulo, com armas que seriam entregues de mão beijada aos conspiradores que queriam ver Goulart no olho da rua. Não houve necessidade de deflagrar a operação.O submarino nem chegou a ser mobilizado.Quando os militares se instalaram no Poder, o socorro financeiro ao País não tardou a chegar. Os Estados Unidos tinham boas razões para se sentir credores de gestos de simpatia do novo regime.
Gordon se esforçou na época para evitar que o gesto de Castelo Branco recebesse uma indesejada publicidade,porque poderia criar embaraços políticos :
- Se o que aconteceu fosse divulgado, a “linha-dura” americana poderia dizer : “Meu Deus,estamos dando toda a ajuda ao Brasil.E eles não podem enviar nem ao menos médicos para o Vietnam ?!”.
“DINHEIRO DA CIA NA ELEIÇÃO BRASILEIRA FOI UM ERRO”
O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil não se recusa a tocar em temas que,a cada vez que são discutidos,provocam controvérsias de todo tipo – como,por exemplo,o dinheiro que o governo americano derramou no Brasil para tentar influenciar o resultado das eleições brasileiras de 1962.
A CIA – afinal – deu ou não deu dinheiro a candidatos simpáticos aos Estados Unidos nas eleições de 1962 no Brasil ?
Gordon : “Demos.Definitivamente.Com o passar do tempo,considerei que este foi um erro de nossa parte.Nós estávamos,na época,influenciados pelo que tinha acontecido na Itália logo depois da guerra : historiadores acham que o apoio aos anti-comunistas italianos – inclusive com dinheiro e propaganda – foi o que tornou impossível a vitória eleitoral dos comunistas”.
Quanto a CIA gastou no Brasil ?
Gordon : “A minha estimativa é de que foram cinco milhões de dólares ( N: a preços de 2002,30 milhões de dólares – ou cerca de 100 milhões de reais). Mas não se produziram resultados importantes,porque o Congresso que foi eleito em 1962 não foi diferente do Congresso anterior. Miguel Arraes- por exemplo- se elegeu governador em Pernambuco,o que foi um fato mais importante do que qualquer mudança no Congresso”.
Quem recebeu a ajuda ?
Gordon : “Houve um grupo de candidatos – geralmente,à direita do centro,simpatizantes dos Estados Unidos”.
O senhor pode citar nomes ?
Gordon : “Não me lembro.Nunca vi a lista. Eu não estava envolvido no processo. Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal,para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda.O governo cubano – e,possivelmente,o governo russo – estavam fornecendo dinheiro para publicação de material no Brasil”.
Qual foi a participação dos Estados Unidos na queda do presidente João Goulart ?
Gordon : “A participação ativa foi zero.Mas,especialmente depois do comício do presidente Goulart na Central do Brasil,houve vários contatos,inclusive entre o adido militar da embaixada,Vernon Walters e o marechal Castelo Branco,em que se demonstrou o interesse numa oposição”.
É verdade que o senhor disse ao presidente John Kennedy,ainda em 1962,que talvez fosse preciso “destituir” o presidente Goulart ?
Gordon : “Eu disse que existia,a longo prazo,a possibilidade de que os acontecimentos evoluíssem até o ponto em que esta alternativa deveria ser considerada. Numa reunião na Casa Branca,a 30 de julho de 1962,um assessor de Kennedy,Richard Goodwin,disse : “Talvez devêssemos pensar em golpe num futuro próximo”. Eu disse : “Não.É fora de questão”. Nem eu nem o presidente John Kennedy tomamos a sugestão de Goodwin a sério,naquele momento.
A melhor solução seria manter a Constituição : que Goulart fosse mantido na Presidência até as eleições presidenciais previstas para 1965.Minha preferência era esta – até Goulart fez o Comício da Central do Brasil,quando vi que Goulart não chegaria até 1965. O melhor seria que Goulart,pacificamente,sem ações militares,sem golpes janguistas ou golpes anti-janguistas,fosse até o fim do mandato”.
Como surgiu a idéia de mobilizar uma frota americana que seria deslocada para o Brasil em 64 ?
Gordon : “A minha idéia foi que,na eventualidade de uma tentativa de derrubar João Goulart,um grupo militar brasileiro poderia ser contestado por outro grupo militar. Eu imaginei que poderia haver uma divisão do país – com militares em lados opostos. Numa tal eventualidade,os Estados Unidos evidentemente teriam uma preferência pelo lado anti-esquerdista,pelo lado anti-João Goulart.Naquele momento,considerei,então,a possibilidade de que uma frota armada,com a bandeira americana visível no litoral brasileiro,teria um resultado desencorajador para o lado pró-Goulart e encorajador para o lado anti-Goulart”.