Roberto Carlos: certíssimo e erradíssimo (ou: ao contrário do que diz RC, biógrafo não é nem jamais será “dono da história” do biografado…)

seg, 28/10/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Roberto Carlos: certíssimo ao querer lançar uma autobiografia. Por que não?

Roberto Carlos: erradíssimo ao dizer que um biógrafo “passa a ser dono da história” do biografado.

E erradíssimo mil vezes ao fazer o papel de polícia da ditadura e mandar recolher um livro que não traz uma linha, uma palavra, uma sílaba sequer de calúnia, injúria ou difamação. Já se disse mil vezes, mas não custa repetir: triste, triste, triste.

O “x” da questão é este: pobre do país em que a lei permite que um trabalho jornalístico correto e embasado possa ser censurado, recolhido, trancafiado num galpão ou simplesmente incinerado. Prévia ou não, o que aconteceu ali foi censura. Não há outra palavra: censura, censura, censura – algo abominável numa democracia. Já que tantos argumentos são repetidos, não custa repisar esta palavra: abominável, abominável, abominável.

A declaração de Roberto Carlos ao Fantástico deste domingo traz um equívoco espetacular:

“O biógrafo também pesquisa uma história que está feita pelo biografado. Não cria uma história. Faz um trabalho e narra aquela história que não é dele – é do biografado. A partir do que escreve, ele passa a ser dono da história. Isso não é certo. Isso, na minha opinião, não é justo”.

Fecha aspas.

Neste caso, Roberto Carlos parece achar que apenas as autobiografias devem ser publicadas. O lançamento de biografias de personagens da música, cinema, política, esporte – ou seja o que for – não seria “justo” ou “certo”, porque os biógrafos, na visão equivocada de RC, passariam a ser donos das histórias dos biografados….

Ora, biógrafos não são “donos da história” de ninguém! São narradores e, na grandessíssima maioria dos casos, competentes e responsáveis. O papel que eles cumprem é importante para a cultura brasileira. Ou será que biógrafos que escreveram sobre Nélson Rodrigues (Ruy Castro) , Assis Chateaubriand (Fernando Morais) , Getúlio Vargas (Lyra Neto), Carlos Marighella (Mário Magalhães ) e o próprio Roberto Carlos ( Paulo César de Araújo ), para ficar apenas nestes notórios exemplos brasileiros, seriam reles usurpadores de histórias alheias? Não são. Nunca foram. Jamais seriam. É desrespeitoso se referir a eles como se fossem piratas.

É óbvio que o biógrafo contará sempre a história de outra pessoa – o biografado. Caso contrário, estaria fazendo uma autobiografia. Desde quando o biógrafo “passa a ser dono da história”?

Se, ao fazer aquela declaração sobre a natureza das biógrafos, Roberto Carlos na verdade estava se referindo a dinheiro, então ele estará reduzindo tudo – a produção de biografias, a prática do jornalismo, a história de um país, a crônica de uma época – a uma questão puramente mercantil. É uma visão igualmente triste, triste, triste. Há aspectos comerciais envolvidos? Há, é claro. Mas não é tudo.

Feitas as contas, repito: o que vai ficar de Roberto Carlos é a música, boa ou má, que ele produziu ao longo desse tempo. “Roberto Carlos em ritmo de aventura” – por exemplo – é produto pop de primeira. O que fica, então, é o que ele criou: não é este festival de atitudes equivocadas sobre biografias. Mas nunca é tarde para corrigir uma derrapada feia.

(Por fim: ao contrário do que possa parecer, não penso – jamais pensei – em escrever biografia de quem quer que seja. Não falo, portanto, em “causa própria”. Nem de longe. Sou um mero entrevistador. Fico no jogo de pergunta-e-resposta. Dá trabalho. Já basta. Por mim, iria para o vestiário, penduraria discretamente as chuteiras às 16:15 de hoje e cairia fora. Já conheço o circo. “Dou por visto”. Diagnóstico: patético. A recíproca, eu sei, é verdadeira. Ainda bem).

Se, numa hipótese absurda, um gênio da lâmpada se materializasse aqui e agora e me oferecesse um milhão de dólares por semana, um carro zero e um ano de férias numa ilha ensolarada no Pacífico para escrever a biografia de alguém, eu diria “obrigado, forasteiro, mas estou fora, fora, fora. Vivo satisfeito com meu Fiat 2003, minha conta bancária de vez em quando no vermelho, meu velho volume de poemas de Maiakóvski….Dão pro gasto”.

Por falar no poeta… Acorda, Maiakóvski, vem recitar aqueles versos: “Uma camisa lavada e clara / e basta / para mim, é tudo”.

É o que importa, é o que sempre importou.

Jornalista não deve pensar como artista – felizmente! E artista não deve pensar como jornalista – ainda bem! ( Duas ou três cenas de bastidores: o pedido de Roberto Carlos, o meio-irmão de Chico Buarque, a indiscrição de Caetano Veloso & a vasta, vastíssima coleção de pecados dos jornalistas )

sex, 25/10/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

….E, como diria Galvão Bueno, aos quarenta e dois minutos do segundo tempo de um daqueles jogos em que nada dá certo, “fica dramática a situação do Brasil !”.

“Por quê?” – dirá o leitor imaginário,  já assustado com a súbita referência a um narrador esportivo num debate tão pouco esportivo quanto este sobre a publicação de biografias.

Responderei, para esclarecer logo o mal entendido: “Fica dramática a situação do Brasil!”, sim, porque a lei esdrúxula que submete a publicação de biografias à aprovação dos biografados ou seus herdeiros já produz efeitos colaterais graves.

Ninguém me contou, eu vi: editoras estão com medo de publicar não apenas biografias, mas simples reportagens em livro, por temor da lei da mordaça biográfica. Qual será o próximo passo?

Não é exagero dizer: o artigo do Código Civil que torna possível o veto a biografias é um estupendo desserviço ao país. Qual é o autor que vai suar a camisa durante meses e meses, anos e anos, para, no fim das contas, ter o trabalho condenado a mofar no fundo de uma gaveta?  Basta que o biografado – ou seus herdeiros – implique com um parágrafo, um detalhe, uma frase. Pronto! Acabou. Já era. Basta para que o livro vá para a fogueira – simbólica ou literal.

Resultado: dezenas de livros estão deixando de ser publicados. Não é exagero. Instala-se o silêncio, no lugar da palavra. Seja qualquer for o argumento que se use para justificá-lo, silêncio nunca foi bom para o Jornalismo ou a História de um país. Nunca. Never. A trajetória de figuras públicas – e de anônimas, também – se confunde, sim, com a trajetória do Brasil. Biografias pessoais podem, então, jogar luzes sobre a história. Jogam. Já o silêncio não joga nada sobre nada. Produz treva e vazio. Por que, então, submeter as biografias ao vexame da censura? (Não há outra palavra. O efeito prático da lei é a censura, sim ).

O problema não são os artistas. Os problemas não são os biógrafos. O problema é a lei. Por que não se muda a lei, consensualmente, então? Tudo podia ser tão simples. O fogo cruzado deste debate há de trazer bons resultados – para biógrafos e biografados. O enorme choque de opiniões faz parte das dores do parto. Democracia dá trabalho. Mas um rebento pode estar a caminho.

Ah, antes que alguém atire a primeira pedra: nem preciso lembrar que a privacidade é direito irrevogável de todo brasileiro, vivo ou morto. Mas é absurdo imaginar que toda biografia seja invasão de privacidade. Não é. Neste debate, a figura dos biógrafos foi “demonizada”. Correm o risco de serem vistos como abutres famintos que investem sobre a vida alheia em busca do vil metal. Falso, falso, falso.

Grandes nomes da música brasileira foram igualmente “crucificados” porque, para surpresa geral, se declararam a favor da autorização prévia. Há uma grande novidade, desta vez: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, ícones de uma geração, parecem estar do lado errado. Estão.

Tensão entre jornalistas e artistas é saudável. Eu diria: saudabilíssima. Jornalista não deve pensar como artista – felizmente. E artista não deve pensar como jornalista – ainda bem! Quando pensa como artista, o jornalista trai o jornalismo. E o artista trairá a arte se pensar como jornalista.

Neste exato momento, alguém levanta a mão na plateia imaginária para dizer que estou brandindo argumentos a favor da liberação incondicional das biografias porque sou jornalista. Não e não. Arrisco-me, até, a fazer uma declaração que, no fim das contas, depõe contra o Jornalismo: em figuras como Gilberto Gil, em Caetano Veloso, em Chico Buarque, o importante é a música que eles produziram ou produzem.

Certamente, fizeram o país “andar para a frente” e dar um passo para se livrar dos atoleiros mentais do subdesenvolvimento. São “gigantes” – pelo que criaram. O importante, repito, é o que produziram: não é o que eles disseram eventualmente a um jornalista. Ou o que um jornalista – biógrafo ou não – possa escrever sobre eles.

De qualquer maneira, é claro que eventuais biografias de figuras públicas como eles podem ajudar a iluminar este palco fascinante e sofrido por onde se move o Brasil. O que se quer, em uma palavra, é luz. Lastimavelmente, luz não rima com “autorização” para o exercício do jornalismo (biografia é um produto jornalístico).

Sou razoavelmente insuspeito para falar. Faço jornalismo há quatro décadas (uma língua maldosa perguntaria: não seria hora de procurar um estábulo confortável para repousar os ossos cansados? ). Não tenho, no entanto, contemplação com o jornalismo. Falo aqui, em nome “estritamente pessoal”. Jornalistas cometem uma vasta coleção de pecados. Jogam, despudoradamente, notícia no lixo. Julgam-se, na maioria, muitíssimo mais importantes do que realmente são. Pecam pela pretensão delirante ou pela vaidade descabida. Mas, independentemente desse rol de pecados, a maioria esmagadora toma cuidado com o que faz.

Já deixei de publicar trechos de uma entrevista de Roberto Carlos porque ele pediu. Minha pergunta tocava num tema pessoal: um trauma sofrido por ele na infância. Em respeito à privacidade do entrevistado, o trecho ficou de fora. Engoli o sapo. Ainda assim, entrei na “lista negra” do Rei. Uma produtora me disse que Roberto Carlos não me daria outra entrevista. Acontece.

Já ouvi indiscrição de Caetano Veloso. Não publiquei porque a indiscrição foi dita fora da entrevista. Poderia ter publicado. Resisti à tentação. Engoli o auto-sapo.

Chico Buarque não gostou nem um pouco de ver uma chamada do “Fantástico” trombeteando uma declaração inofensiva que ele me dera numa entrevista: confirmou que tem um meio-irmão alemão – a quem nunca encontrou. Bem humorado, disse: “Meu pai teve um filho alemão antes de se casar. Depois, perdeu-o de vista, porque voltou ao Brasil, onde se casou. Uma vez, quando eu estava em Berlim, tive a impressão de estar vendo um irmão em alguma parte – alguém que parecesse comigo ou com ou com o meu pai. O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele: “Por acaso o senhor é filho de alemão?. E ele dizia: “Não. Sou pai de um…”

Quando me preparava para a entrevista, vi esta história sobre o meio-irmão num perfil de Chico Buarque publicado num número antigo da revista “Realidade”. Perguntei. Chico Buarque respondeu – mas quando, dias depois, viu a chamada do programa com a voz de trovão de Cid Moreira, quase caiu para trás. Se ele tivesse pedido para que este trecho – inofensivo – não fosse incluído, eu teria tirado. A entrevista foi ao ar. Chico cortou relações – já quase inexistentes – com o “Fantástico”, programa em que eu trabalhava, na época. Reclamou de sensacionalismo. Engoli o sapo. Acontece. Com ou sem entrevista, o importante não é o que ele disse ou deixou de dizer. É o que ele compôs. Por fim: jornalistas (por extensão, biógrafos) respeitam a privacidade, sim.

Feitas estas ressalvas e cometidas estas pequenas confissões sobre cenas de bastidores do jornalismo, pergunta-se: os artistas que defendem a autorização para publicação de entrevistas estão equivocados? Estão equivocadíssimos. Agarraram-se a um monstrengo que abre o caminho para o silêncio e a proibição.

O terrível, o dramátrico, o trágico – para o Brasil, para o jornalismo e para a história – é que, na prática, a exigência de autorização prévia para publicação de biografias, defendida por tantos artistas, pode servir para proteger ditadores, políticos corruptos, torturadores etc.etc. Eis um efeito colateral danoso.

O STF pode declarar inconstitucional o tal artigo que sujeita as biografias à autorização de biografados e herdeiros. Tomara que declare. O Congresso pode derrubá-lo. Tomara que derrube.

Tudo deveria ser tão simples. Primeiro: que se liberem as biografias. Segundo: que se respeite incondicionalmente a privacidade, a imagem, a honra, seja o que for. Quem cometer abuso que responda diante da lei. É assim em todas as democracias. Por que diabos teria de ser diferente aqui?

Do jeito que foi concebida, a lei é uma imensa pedra no meio do caminho do Brasil. Não é exagero: uma imensa pedra no meio do caminho. Poeta Drummond, acorde! Venha tirar esta pedra. Venha repetir aqueles belos versos:

“À sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido…”

É o que resta fazer.

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(*) Publicado no Globo Online

Por quanto tempo o Brasil vai continuar produzindo esquisitices, exotismos, monstrengos e aberrações como a Lei da Mordaça Biográfica? Com a palavra, o STF: ministra Cármen Lúcia, não decepcione o Brasil!

dom, 13/10/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Artigo 1º : Ah, não. O Brasil já sofreu com a censura federal. Quase três décadas depois da volta da democracia, não pode ficar refém de algo que, na prática, é uma censura privada.

 Artigo 2º:  O Brasil é o país das meias palavras. Mas  chega de eufemismos. ”Autorização prévia” é sinônimo de ”censura prévia”. Com censura prévia, não se faz jornalismo, não se faz história, não se faz nada. Faz-se oba-oba. 

Artigo 3º : Em nenhuma outra democracia do planeta, existe algo parecido com a censura prévia a biografias. Pergunta-se: todos os países estão errados e só o Brasil certo? Claro que não. 

 Artigo 4º:  Para que existem leis, afinal?  Se alguém se sentir prejudicado por uma biografia, que recorra à justiça. É assim em qualquer lugar do mundo - menos no Brasil, é claro. Por quanto tempo o Brasil vai continuar produzindo esquisitices, exotismos, monstrengos e aberrações como a lei da mordaça biográfica?

 Artigo 5º: Alguém já parou para pensar no enorme dano que esta legislação absurda causou à história, à cultura, à vida brasileira? Durante os tais “anos de chumbo”, os livros eram censurados depois de publicados. Hoje, sequer são publicados!  Quantas e quantas biografias deixaram de ser publicadas porque esta lei ameaça proibi-las? Quantos e quantos projetos vão mofar no fundo das gavetas? Vergonha vergonha, vergonha. 

 Artigo 6º: É óbvio que todos os brasileiros, sem exceção, sejam eles anônimos ou famosos, têm direito à privacidade. É garantia da Constituição. Mas a liberdade de informação também é direito de todos. Não foi fácil consegui-la. Não se trata de publicar fofoca pessoal, mas de retratar a história de um país – que passa, sim, por trajetórias pessoais. E liberdade de informação não existe com censura prévia. Nunca existiu. Jamais existirá. 

Artigo 7º: Não é uma questão financeira. Nunca foi. É uma questão de liberdade de informação. De qualquer maneira, eis uma curiosidade contábil: ainda não nasceu um autor que tenha ficado rico escrevendo biografias. O autor ganha dez por cento do preço da capa de cada exemplar vendido. A tiragem média no Braasil é de três mil exemplares. Se o autor vender três mil exemplares a quarenta reais cada, vai ganhar 12 mil reais depois de meses e meses de trabalho.  

 Artigo 8º: A ministra Cármen Lúcia – do STF – vai se pronunciar sobre o caso. O Congresso Nacional também. Ou estamos todos loucos ou nunca houve um caso tão simples:

O Brasil espera que a Justiça e os políticos declarem inconstitucional a censura prévia a biografias. Ponto. Quem cometer algum abuso responderá perante a lei. Isso é o que se chama de civilização. A liberdade é civilizatória. A censura - qualquer que seja- é barbárie. 

 Artigo 9:º  Uma vez, um estudante rebelado pichou num muro da universidade, na França: “E se a gente incendiasse a Sorbonne?”. Simbolicamente, é hora de perguntar: e se o STF e o Congresso incendiassem a lei da mordaça biográfica? Com toda certeza, o Brasil iria amanhecer melhor no dia seguinte. 

PS: Texto levado ao ar no Jornal das Dez – da Globonews – no dia 12/10: 

https://goo.gl/Mi7228

 PS2: A discussão sobre a Lei da Mordaça Biográfica ficou centrada nos artistas que apoiam a manutenção desta  aberração. Mas o problema maior não é a biografia de artistas. O problema maior é o seguinte: hoje, se um autor brasileiro quiser publicar - por exemplo -  a biografia de um ditador, um torturador, um corrupto, terá de pedir autorização aos próprios – ou aos herdeiros. Risível. Estúpido. Indefensável. É óbvio que tal autorização jamais será dada. Neste caso, a censura estará instalada.  A palavra maldita volta à cena: censura, censura, censura. Como alternativa, a publicação será “negociada”, o que é uma vergonha.  Tudo será tratado como uma questão financeira. É o tal “comércio da honra” a que se referem os editores de livros. Quem sai perdendo?  O Brasil. Defender a manutenção da mordaça biográfica  é, em última instância, defender a manutenção de um atentado contra o jornalismo e a história -  ou imaginar que os biógrafos brasileiros são um bando de picaretas irresponsáveis que entopem os bolsos de dinheiro às custas de escândalos. Não são. Nunca foram. As biografias publicadas nos últimos anos foram, em geral, trabalhos de alto nível jornalístico. O triste, o lamentável é imaginar a quantidade de biografias importantes que deixaram e deixarão  de ser escritas e publicadas, se o STF ou o Congresso não derrubarem a mordaça. Tristes trópicos.

Ministra Cármen Lúcia: a senhora poderá fazer história – para o bem ou para o mal. Tomara que não escolha o caminho maldito – o da manutenção de uma aberração jurídica que abre espaço para o silêncio e a censura. Senhores deputados: não decepcionem – de novo – a plateia !

Pai de três desaparecidos políticos comove plateia, diz que jamais perdoará militares mas lança o debate: se “forças insurgentes” tivessem triunfado, “estaríamos dominados por milícias”, “empobrecidos” e “estagnados”

sex, 04/10/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Rafael Belaustegui, pai de três desaparecidos políticos: passagem rápida e comovente pelo Brasil ( Foto: Geneton Moraes Neto)

Onde estão as legiões de ouvintes que deveriam estar aqui e agora para escutar a palavra do homem que é um grande símbolo das vítimas da ditadura militar argentina? Onde estão os militantes para gritar “nunca mais, nunca mais, nunca mais”? Onde estão os neo-rebeldes para bradar “presente!”, enquanto alguém pronunciaria os nomes de Martin, José e Valéria?  Onde estão os repórteres com seus blocos de anotações implacáveis, suas perguntas impertinentes e aquela sede por boas histórias? Onde estão todos? “Estão todos dormindo”, diria o poeta. Ou, quem sabe, estão todos mergulhados na estupenda banalidade de um começo de noite de quinta-feira na cidade do Rio de Janeiro, ocupados com a tarefa prioritária de tocar suas vidas. Ah, tocar a vida, tocar o barco, tocar pra frente.

A vida segue assim – mas pequenos grandes acontecimentos podem quebrar a cadeia da banalidade.

Por exemplo: um homem de barba branca por fazer caminha anônimo pelos corredores do Shopping Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, em meio à indiferença de casais que passam apressados para não perder a sessão do cinema, crianças que arrastam as mães para as lanchonetes, jovens que contemplam vitrines recheadas de tênis, fregueses que lotam lojas que vendem celulares. Uma bengala o ajuda na caminhada. Dentro da Livraria da Travessa, ele busca apoio no corrimão enquanto vence os degraus rumo ao acanhado auditório do primeiro andar. Carrega consigo uma pasta plástica esverdeada, em que guarda um texto recheado de emendas e palavras grifadas.

Se soubessem quem este homem é, alguns dos passantes certamente teriam a curiosidade de abordá-lo, porque ele é um personagem extraordinário. Quem sabe, um dos casais que correm para o cinema ou uma das mães que se aboletam no balcão da lanchonete ou um dos jovens que contemplam vitrines ou um dos fregueses que testam celulares teria o ímpeto de ouvi-lo. Mas não, ninguém lhe dirige a palavra. Rafael Belaustegui passa despercebido.

Já o punhado de frequentadores que se instalou no auditório para ouvi-lo, numa sessão da Quinzena de Literatura Latino-americana, sabe quem é aquele homem: o argentino Rafael Belaustegui viveu um drama indizível. É pai de três desaparecidos políticos: Martin, José, Valéria. O primeiro a sumir foi Martin, no dia 26 de julho de 1976, quando completava vinte anos de idade. Valéria – de 24 anos – desapareceu no dia 13 de maio de 1977. Duas semanas depois, no dia 30, foi a vez de José. Os três militavam na clandestinidade contra a ditadura militar instalada em 1976 na Argentina. Valéria estava grávida. Rafael jamais soube o que aconteceu com o neto: pode ter nascido na prisão, pode ter morrido junto com a mãe. A namorada de Martin – nora de Rafael, portanto – também estava grávida quando sumiu. Não se sabe que destino teve o bebê. Além dos três filhos, Rafael perdeu dois netos também, além das noras e do genro. O horror, o horror, o horror, diria aquele personagem de O Coração das Trevas. Uma cena novelesca aconteceu em meio ao massacre: quando foi presa, grávida, Valéria, filha de Rafael, tinha um bebê de um ano e dois meses. O bebê foi levado também. Dias depois, foi deixado numa rua. Trazia um aviso, manuscrito: “Sou filha de Valéria Belaustegui”.  Criada pelos avós paternos, Tânia, a neta que escapou da morte, teve, recentemente, filhos gêmeos. Vive nos Estados Unidos.

Rafael viajou de Buenos Aires ao Rio porque acha que falar do desaparecimento dos filhos é uma “missão”. Tive a chance de entrevistá-lo em Buenos Aires, para a Globonews, em 2010. Vivi, na entrevista, uma cena que me comoveu profundamente. Terminada a gravação, Rafael me chamou para uma dependência do apartamento, para que eu visse “os filhos”. Falava como se os três estivessem ali, vivos. Dentro do quarto, ele apontou para a parede: lá estava uma foto ampliada de Valéria, José, Martin e a mãe dos três, Matilde – que morreria, doente, tempos depois. Os filhos eram um retrato na parede. Quando o programa foi ao ar, ele me enviou uma mensagem igualmente comovente: disse que o testemunho que ele me deu na gravação ficaria como “herança” para seus filhos. Sim, Rafael voltaria a ser pai depois da tripla tragédia.

Teve três outros filhos, num segundo casamento. Por uma coincidência inacreditável, os nascimentos seguiram a mesma sequência dos nascimentos dos filhos desaparecidos: uma menina e, em seguida, dois meninos. Detalhe: o intervalo entre os nascimentos dos três filhos do segundo casamento foi igual ao intervalo entre os nascimentos dos três primeiros. Rafael se apressa a dizer que não é místico, mas deixa reticências quando fala da extraordinária coincidência: era como se, por algum capricho inexplicável, a vida lhe desse a chance de começar tudo de novo, depois do mergulho nas profundezas do abismo mais escuro.

Os três filhos de Rafael e a mulher, Matilde: foto tirada dias antes do primeiro desaparecimento

Quando Benjamin Magalhães, organizador da Quinzena, me perguntou se eu teria um nome a sugerir, pensei imediatamente na figura deste argentino que, já octogenário, quer falar de Martin, José e Valéria não para espalhar comoção, mas para tocar a consciência de quem o ouve.

Quem perdeu a passagem de Rafael Belaustegui pelo pequeno auditório da Livraria da Travessa deixou de viver um momento memorável. Não há outra maneira de descrever o encontro: a emoção estava “à flor da pele”. ( Repórter deve deixar transparecer a emoção? Em situações normais, talvez não. Mas confesso que hoje, pela primeira vez, não consegui completar uma frase ao falar da saga deste argentino. O nó na garganta foi maior. Aconteceu.)

Como se não bastasse, Rafael acrescentou, à emoção, uma declaração que pode provocar polêmica: disse que é hora de reconhecer que, se as forças insurgentes tivessem tomado o poder nos anos setenta, certamente não implantariam regimes democráticos. Mas, antes que algum ouvinte apressado imagine que ele esteja querendo relativizar a culpa dos militares, Rafael se apressa a dizer que o “terrorismo de Estado” é um “inadmissível” crime de “lesa-humanidade”.

Quem se deu ao trabalho de ir ouvir o pai dos três desaparecidos não se arrependeu  ( uma equipe da Globonews foi a única que esteve no auditório, pouco antes do debate, com a repórter Maria Paula Carvalho, a serviço do Jornal das Dez. O outro repórter presente estava a serviço da própria curiosidade: Lúcio de Castro. Pelo que deu para ver, that´s all . Uma dúvida –  quiçá razoável – agitava minhas florestas anteriores: e se ali, em vez do pai de três desaparecidos – que se aboletou de Buenos Aires para o Rio unica e exclusivamente para este encontro com brasileiros –  estivesse uma daquelas peruas siliconadas que se expõem em realities shows?  Com toda certeza, haveria fotógrafos amontoados, algazarra, explosão de flashs. Assim caminha a humanidade).

Perguntado, Rafael Belaustegui jamais se  nega a dar detalhes.

O horror começa assim: com um telefonema às duas da manhã

Dirá, por exemplo, que estava no Brasil quando recebeu um telefonema da primeira mulher, Matilde, às duas horas da manhã, com a notícia do primeiro desaparecimento: “Aconteceu uma coisa terrível – disse ela. Levaram Martin!”. Jamais imaginaria que dos outros desaparecimentos se seguiriam.

Contará o incrível encontro que teve com um dos integrantes da junta militar argentina, o almirante Emilio Massera, já depois do fim da ditadura, cena digna de um roteiro cinematográfico. Por um acaso absoluto, os dois estavam no mesmo avião. Rafael sentou ao lado do almirante. Disse que era pai de três desaparecidos. O almirante mentiu: garantiu ao pai que os filhos estavam bem guardados em algum lugar. Rafael iria receber notícias. Não recebeu jamais. Quando sumiram, os filhos de Rafael estavam ligados ao Exército Revolucionário do Povo ( ERP ).

( em outro momento, Rafael provocará reações de espanto na plateia ao narrar a desfaçatez do militar que, irônico, disse a ele que havia filhos de militares que também tinham desaparecido: um sumiu esquiando, outro num acidente etc.etc.)

O pai de três desaparecidos vai a um restaurante em Buenos Aires na esperança de encontrar o neto que nunca viu

Descreverá a cena que viveu recentemente: recebeu a informação de que o maitre de um restaurante em Buenos Aires era o neto nascido na prisão. Correu ao restaurante. Olhou para o rosto do maitre. Viu as feições da filha – Valéria. Chegou a falar com a mãe do maitre, mas ela não quis levar adiante a conversa. Rafael desistiu. Imaginou que, se insistisse, poderia criar um drama em outra família. Vai passar o resto dos seus dias alimentando a dúvida: aquele rapaz é ou não o neto que ele queria tanto conhecer?

Pronunciará uma definição marcante sobre a tragédia dos desaparecidos: “Desaparecer é matar a morte. E matar a morte é voltar a ter vida. Os meninos, assim, estarão sempre vivos – na memória e na eternidade“. Rafael conseguiu a proeza de extrair do horror absoluto um clarão de luz: quem desaparece mata a morte! Eis aí a única saída possível para conviver com o que aconteceu.

Responderá que jamais poderá perdoar os autores do sequestro e desaparecimento dos filhos, porque estes são crimes de lesa-humanidade, “imprescritíveis” e “atemporais”. O tempo, neste caso, não revogará o horror.

Por fim, puxará da pasta o texto que digitou um texto. Tocará num ponto polêmico: dirá que hoje, tanto tempo depois, “defende a pluralidade dos relatos, porque creio que também nas forças que se insurgiram houve maldades”.

Eis quatro pontos  que o pai dos três desaparecidos usou para estimular o debate sobre os erros cometidos também pelos que combateram o horror:

“As Forças Armadas usurpadoras decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda – matando a todos os esquerdistas”

1

“O terrorismo de Estado é inadmissível. Seus crimes são de lesa-humanidade e, portanto, transnacionais e imprescritíveis. Cometeu-se um genocídio na Argentina. O que as Forças Armadas usurpadoras do poder fizeram foi mais do que combater os violentos: decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda matando a todos os esquerdistas. Queriam, pela morte, fazer desaparecer estas ideias. Mas um presidente argentino do século XIX, Domingo Faustino Sarmiento, tornou célebre esta máxima: as idéias não se matam”.

2

“É hora de deixar a memória do passado a cargo da investigação histórica e começar a pensar no que fazer. É hora de uma pensamento crítico que traga idéias e projetos para a superação das ideologias que deixaram de ter vigência. O que é hoje a esquerda? O que é hoje a direita? Lênin uma vez perguntou: o que fazer? Já havia questionado o que chamou de infantilismo da esquerda, os extremismos que não levavam a uma melhoria das condições das classes marginalizadas da sociedade(…) “.

3

“Poderíamos perguntar o que teria acontecido se as forças que se insurgiram tivessem triunfado nos países de nossa região. Teríamos o cerco das potências ocidentais? Estaríamos dominados por milícias civis uniformizadas, empobrecidos e estagnados economicamente? Creio que sim. Não era no que acreditava em minha juventude. Isto, para meus filhos, soaria como uma heresia, como também para jovens utópicos de hoje”.

4

“A geração dos anos setenta, marcada pelo golpe de 24 de março de 1976, acreditou ser possível instaurar uma ordem definitivamente justa. Em nome desta crença, matou e morreu. Morreu muito mais do que matou. Estou citando a socióloga Cláudia Hilb, renomada pesquisadora argentina: diz que hoje se pode fazer uma reflexão sobre a responsabilidade da esquerda dos anos setenta no advento do horror. Pode-se equiparar a responsabilidade dos militares com a dos militantes? Não. A violência política dos militantes ocorreu sob a forma de assassinatos seletivos ou de atentados ( menos seletivos ), muito poucos. Não se pode equiparar às formas de violência que ocorreram nos campos de concentração, as loucuras, as mortes, o rapto de bebês e o ato de embarcar prisoneiros em aviões e jogá-los vivos no rio da Prata. Os trinta mil desaparecidos deixaram um vazio. Eram o melhor desta geração perdida”.

Termina a sessão da Quinzena Latino-americana. O ator Carlos Vereza levanta-se do lugar que ocupava na primeira fila para beijar a mão de Rafael.
O pai de Valéria, José e Martin posa para fotos. A pequena plateia se retira. Acompanhado de duas cicerones da Livraria da Travessa, Rafael caminha novamente pelos corredores. Cruza com funcionários de lojas que estão apressados porque querem ir embora. O expediente acabou – para Rafael e para eles. Amanhã, os funcionários começam tudo de novo. Rafael também – porque jamais dará por encerrada a missão de manter viva a memória de Valéria, José e Martin. Que importa o tamanho das plateias?  Pode chegar o dia em que os auditórios de Rafael estarão desertos. Pode chegar, sim.  Os terráqueos, certamente, estarão ocupados com outras tarefas, sem tempo de ouvir relatos sobre desaparecidos. Não é absurdo imaginar. Quando esse dia chegar, quem sabe, Rafael estará fazendo o que me disse que espera fazer:  ”Vou estar em algum lugar do Uruguai, certamente em Punta del Este, em companhia de um amigo – um cachorro. Bastará um perro.  Não vivem dizendo que ele é o melhor amigo do homem?”.



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