Ministro que comandou Planejamento nos “anos de chumbo” diz que tem dúvidas sobre se general Médici sabia ou não de tortura nos quarteis
O DOSSIÊ GLOBONEWS exibe neste sábado, às nove e cinco da noite (com reprise no domingo, às cinco e cinco da tarde), uma entrevista com um ex-ministro que durante nada menos de dez anos ocupou um gabinete no Palácio do Planalto, durante o regime militar. O economista Reis Velloso comandou a pasta do Planejamento nos governos Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
O mínimo que se pode dizer é que foi testemunha privilegiadíssima dos bastidores do poder nos chamados “anos de chumbo”.
Homem de confiança dos generais Médici e Geisel, o ex-ministro confessa que, até hoje, alimenta dúvidas sobre se Médici sabia ou não da existência de tortura. Diante dos ministros, o general disse que não sabia.
Intimamente, o homem que durante anos comandou o Planejamento não conseguiu chegar a uma conclusão.
Aos 81 anos, o ex-ministro diz que, desde o início, sabia que a construção da rodovia Transamazônica não daria certo. O projeto, grandioso, pretendia atrair para áreas despovoadas da Amazônia agricultores vindos de todas as partes do país.
Técnicos sabiam que a terra na Amazônia era imprópria para a agricultura. O problema é que, ao apresentar o projeto numa reunião ministerial, o general Garrastazu Médici já deu a construção da Transamazônica como fato consumado. Quem era contra o projeto tratou de engolir o sapo.
Os técnicos tinham razão : a Transamazônica deu no que deu.
Um trecho da entrevista que a GLOBONEWS levará ao ar:
O senhor era ministro do Planejamento do governo Médici quando foi lançada a ideia da construção da rodovia Transamazônica, um projeto de grande repercussão. Alguém disse que aquilo poderia dar errado ?
Reis Velloso: “Não havia dúvidas: os solos da Amazônia não são apropriados para a agricultura. Mas havia m sonho – e cho que realmente era um sonho – de que aquilo iria produzir um grande efeito. Por isso, se construiu a Transamazônica. Numa reunião, o presidente Médici apresentou como um fato consumado que a Transamazônica iria ser construída. Já tinha sido convencido pelo Mário Andreazza ( ministro dos Transportes ) e por toda a área militar”
O governo Geisel praticamente abandonou o projeto da Transamazônica. O que é que o senhor, como ministro, dizia ao general Geisel sobre a rodovia ?
Reis Velloso: “Que não deveria ter sido feita ! Eu quase morri, aliás, na Transamazônica. Ainda no dia da inaguração, logo que terminou o almoço, eu e Andreazza fomos tomar um helicóptero para ir para Altamira. Como levantou muita poeira. Quando o helicóptero quis subir, o piloto, em lugar de continuar subindo, jogou o helicóptero contra um barranco. Eu disse para Andreazza: “Sai de cima de mim e te manda! Porque vamos morrer aqui dentro, carbonizados!”. Nós saímos correndo. Quando olhamos para trás, o helicóptero explodiu. Eu já nçao gostava da ideia da Transamazônica. Depois dessa, fiquei gostando menos ainda. Eu disse : “Presidente,nós podemos perfeitamente esquecer da existência da Transamazônica. Vamos cuidar de outras coisas para a Amazônia. Eu, sinceramente, acho que o programa para a Amazônia até hoje não foi feito: estratégia para a região da Amazônia, como um todo, é aproveitar a biodiversidade – que é a maior do mundo”.
A Trasamazônica terminou se transformando num grande motivo de propaganda para o governo militar. Qual foi a reação do presidente Geisel quando o senhor disse a ele que aquele projeto era inviável ?
“O presidente estava convencido de que realmente não fazia sentido, porque já tínhamos estudos de especialistas que mostravam não serem os solos da Amazônia próprios para a agricultura”.
O senhor diz, no depoimento ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas, que,m durante um almoço, perguntou ao general Humberto de Souza Melo, comandante do II Exército, um homem da linha-dura, sobre tortura. Que resposta ele deu ao senhor ?
Reis Velloso: “Eu me sentei em frente a ele. Perguntei: “General, está havendo tortura ?”. Ele disse : “Não!”. O general era linha-dura, comandante do II Exército. Numa reunião de ministério do governo Médici, o ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barbosa, perguntou: “Presidente, está havendo tortura ? “. O presidente, na frente de todos os ministros, respondeu: “Não, não está havendo tortura”.
Isso significa que ou ele estava alheio e não foi verificar bem se estava havendo ou não tortura ou….. não sei. O certo é que ele, muito claramente, disse isso”.
Que interpretação o senhor dá ? O presidente Médici não sabia realmente da existência da tortura e o comandante do II Exército também não ? Os dois estavam mal informados ?
Reis Velloso: “É difícil acreditar que o comandante do II Exército não sabia. A explicação que ele me deu fazia sentido: disse que o “pessoal”, quando sabe que existe uma célula subversiva, comunista, não sei qual foi a expressão, já vai dizendo: “Larguem as armas ou serão mortos!”. Isso ele me falou.
Mas não creio que fosse verdade….Eu acho que ele, realmente, ou não procurou verificar ou sabia e deixou que os porões funcionassem. Isso quanto ao general Humberto.
Quanto ao presidente Médici: tenho que pensar, porque há o seguinte : ele delegava demais. Eu sei bem na área econômica: tínhamos despachos com ele. Eu tinha uma vez por semana. Outros ministros de quinze em quinze dias. Mas a gente tratava dos assuntos era com o chefe do gabinete civil, Leitão de Abreu - que gostava de poder.
Eu me pergunto até hoje qual era realmente a causa de o presidente Médici ter dado aquela resposta ao ministro Gibson numa reunião ministerial” ( Reis Velloso se refere ao dia em que, ao responder a uma pergunta específica do ministro das Relações Exteriores sobre o assunto, o presidente Médici disse aos ministros que não havia tortura ).
O senhor tem dúvidas então sobre se o presidente Médici sabia ou não da existência de tortura ?
Reis Velloso : “Tenho dúvidas, tenho dúvidas….”
O senhor – que sempre teve um perfil técnico – sentiu em algum momento desconforto por estar atuando num regime ditatorial ?
Reis Velloso : “Só quem não é inteligente é que não tem dúvidas sobre o que fez”.