Um documentário sobre a víbora Joel Silveira nos faz perguntar: Jornalismo, “onde escondeste o verde clarão dos dias?”

qui, 31/01/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Aviso aos navegantes: Globonews exibe neste sábado, às 20:30, sem intervalos, “GARRAFAS AO MAR : A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS”, um documentário de uma hora e vinte minutos sobre o maior repórter brasileiro, Joel Silveira.

Sou  um azarado vocacional. Sempre fiz parte do time dos perdedores de sorteios. Mas posso dizer que, entre um e outro azar, tirei a sorte grande na loteria do Jornalismo: tive a chance de conviver intensamente, durante vinte anos, com aquele que é considerado “o maior repórter brasileiro”.

Uma vez, bati na porta do apartamento do ex-correspondente de guerra Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana, em  busca de uma entrevista. Nascia ali uma convivência que se estenderia por exatas duas décadas.

Joel Silveira e o aprendiz : horas e horas de gravações

Ficamos amigos. Mas, diante do grande repórter, preferi me comportar não apenas como amigo, mas também como repórter : gravei horas e horas de entrevistas com ele, em áudio e vídeo, ao longo desses anos todos. O gravador do aprendiz recolhia as palavras do mestre – um repórter que tinha ido a uma guerra, convivido com presidentes e retratado grandes figuras da vida brasileira.

Desse material, nasceu o documentário “GARRAFAS AO MAR : A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS”, o primeiro produzido pela Globonews. Digo que fazer jornalismo é produzir memória. É o que – modestamente, sem pretensões descabidas – tento fazer com este documentário: passar adiante a memória de uma convivência que, para mim, foi fértil.

O que vi e ouvi ali, naquele apartamento que chamo de Escola de Jornalismo da rua Francisco Sá, haverá de ser útil, também, a quem assistir ao documentário. “Vida aos outros legada”, como diria Carlos Drummond. Sou um mau narrador. Se dependesse de minhas habilidades como locutor para sobreviver, estaria morto de fome. Quem narra o texto que escrevi sobre a convivência com Joel é Raimundo Fagner. Eu queria uma voz que soasse nordestina. Sem vacilar, Fagner aceitou ”correr o risco” de virar narrador por um dia. Sou suspeito para falar, mas a leitura ficou como deveria: sóbria, sem afetação.

Os textos de Joel Silveira, recitados pelos grandes atores Othon Bastos e Carlos Vereza em GARRAFAS AO MAR, são uma “prova material” de que já se fez ”jornalismo literário” de alto nível no Brasil. Relatos que Joel Silveira – e Rubem Braga – enviaram da Itália para o Brasil, na Segunda Guerra Mundial, não ficam devendo nada, nada, nada ao melhor do chamado New Journalism. Eram exemplos ( raros ) de casamento feliz, felicíssimo entre Jornalismo e Literatura. Nem sempre é fácil dosar uma coisa e outra. Ferino, ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. Mas, para além do “veneno”, produzia textos belos. Isso: belos. Aqueles textos eram, no fim das contas, berros impressos contra o Exército da Mesmice.

Uma constatação incômoda incendeia nossas florestas interiores: alguma coisa de errado aconteceu na evolução da imprensa brasileira, porque textos “autorais”, como aqueles de Joel, dificilmente encontrariam lugar na nossa imprensa de hoje. O navio se chocou contra as pedras.

A “Ditadura da Objetividade”, instalada nos jornais para combater pragas como a subliteratura, o beletrismo, o academicismo, terminou parindo um monstro: textos áridos, chatos, anêmicos, soporíferos, iguais. Lástima, lástima, lástima. 

Meu demônio-da-guarda me sopra uma pergunta: agora que a imprensa passa por um ( bem-vindo ) vendaval provocado pela Internet, não teria chegado a hora de ressuscitar um jornalismo autoral ? Não seria saudável pichar em nossos muros imaginários algo como “abaixo a ditadura da objetividade” ?

O diplomata Marcos Azambuja citou, numa entrevista, o gesto anônimo de um pichador mexicano que, cansado de viver num planeta sem utopias, pediu:  “Chega de realizações ! Queremos promessas !”.

Se fosse se ocupar do jornalismo, o pichador bem que poderia dizer: “Chega de objetividade! As notícias já vi na internet e na TV! Quero vivacidade, imaginação, arrebatamento, ousadia!”.

Bem que o exemplo de Joel Silveira pode ser usado como porta-estandarte pela volta de um tipo de jornalismo que foi mandado para a Sibéria. Não é delírio: a luta por um Jornalismo mais vívido, mais atraente, mais iluminado faz parte da luta por um Brasil menos medíocre. Por que não ?

Eis dois exemplos do brilho do texto de Joel Silveira.

Aqui, ele descreve o menino morto que viu no Bogotazo, a revolta popular que se seguiu à morte de um líder popular colombiano, em 1948:

“Estive no Cemitério Central de Bogotá, em afazer de repórter,para ter uma ideia aproximada do saldo de mortos deixado pela explosão popular. Nunca, em toda minha vida, nem mesmo nos meses de guerra, estive diante de mortos tão mortos. Somente aquele menino – não mais de oito anos – morrera cândido, de olhos abertos, um começo de sorriso nos lábios.Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo. As mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. Um funcionário qualquer aproximou-se, olhou por alguns segundos o menino morto, procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos.Tentou em seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e limpos,os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre”.

Joel tentou mas não conseguiu uma entrevista com o então presidente Getúlio Vargas. Mas foi recebido por Vargas, no Palácio do Catete. Eis o que escreveu sobre a frustrada entrevista:

“Era a primeira vez que eu via Vargas assim tão de perto. “Como é pequeno” – pensei, enquanto estirava a mão ao encontro da que ele me estendia – uma mão delicada, quase feminina, de unhas bem tratadas(…) Eu não queria emprego.Queria uma entrevista. Tirei o papel do bolso. “Gostaria que Vossa Excelência respondesse a algumas perguntas”. O homenzinho levantou-se, esmagou no cinzeiro de cristal o que restava do charuto e desapareceu por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a mão.

Voltei ao boteco, a vários deles, durante horas amargando o fel da derrota.Lá para a meia-noite entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril”.

 Os jornais de hoje publicariam textos assim ?

O grande poeta Ferreira Gullar fez uma vez, num verso, uma pergunta que a gente bem que poderia repetir, contra o  cinzento da mesmice: “Onde escondeste o verde clarão dos dias?”.

Ah, Jornalismo: onde escondeste o clarão ?  

“CANÇÕES DO EXÍLIO” : a voz dos entrevistados, sem interrupções. Com a palavra, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner!

sáb, 05/01/13
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

GLOBONEWS EXIBE NESTE SÁBADO, ÀS 20:30, DOCUMENTÁRIO ‘CANÇÕES DO EXÍLIO”  – COM DEPOIMENTOS COMPLETOS DE GILBERTO GIL E CAETANO VELOSO SOBRE PRISÃO EM SÃO PAULO, PASSAGEM POR QUARTÉIS NO RIO, VIDA VIGIADA EM SALVADOR E IDA A LONDRES.

(AQUI, TEXTO ESCRITO QUANDO DO LANÇAMENTO DA SÉRIE DE QUATRO EPISÓDIOS – QUE DEU ORIGEM AO DOCUMENTÁRIO):

A quem interessar possa: bem ou mal, tento retomar, com CANÇÕES DO EXÍLIO, um caminho que abandonei lá atrás : o de possível documentarista.

O locutor-que-vos-fala já é uma ruína cinquentenária. Vivo repetindo para mim mesmo os títulos daqueles editoriais clássicos do Correio da Manhã: “Chega!”, “Basta!”, “Fora!”. Cinco vezes ao dia, penso em apagar a luz do meu velho teatro mambembe, recolher as tralhas, devolver aos incautos o dinheiro da entrada, bater em retirada e ir morar num cubículo minimamente confortável na zona rural de Santa Maria da Boa Vista, cidade onde nunca estive, aliás, mas que elegeria como destino favorito, pelo belo nome. Quanto a todo o resto, dou por visto o espetáculo. Veredito definitivo: risível. A recíproca, eu sei, é verdadeira.

Há uma síndrome que imagino comum em quem um dia resolveu sair de casa : depois de algum tempo, a gente não resiste à tentação de fazer a pergunta “fatal” : Deus do céu, o que diabos vim fazer aqui, no “estrangeiro” ? De qualquer maneira, como diz o lixo subliterário de autoajuda, “nunca é tarde” para retomadas. Decidi, então, nem que fosse como mera experiência, retomar o fio de uma meada interrompida. Fiz um documentário. Poderia ser um bom passatempo.

Em um texto narrado por Paulo César Peréio – uma das vozes mais marcantes do Brasil – ,exponho, logo na primeira parte de CANÇÕES DO EXÍLIO, as dúvidas e vacilações que tive depois de gravar os depoimentos. Como usá-los ? O que fazer com tudo o que Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner contaram ? Resolvi correr o “risco” de dividir estas dúvidas com os possíveis espectadores .

A exposição pública das dúvidas do documentarista pode até criar alguma estranheza em quem espera ouvir, logo no início de CANÇÕES DO EXÍLIO, a palavra do timaço de entrevistados. Mas vou logo avisando: depois que o narrador sai de cena, a palavra é passada, “radicalmente” , aos personagens. Ninguém interfere : nem o entrevistador. Desta vez, atuo atrás das câmeras. É minha opção favorita. Sempre foi.

Estar diante de uma câmera é, para mim, um incômodo comparável ao de obturar um dente sem anestesia. Tenho horror. Teria imensa alegria se um dia recebesse uma ordem judicial que me obrigasse a manter uma distância de 500 metros de uma câmera: eis a minha visão do paraíso.

Depois de ver e rever as gravações feitas com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner em 2010 , fiz uma opção radical : a de deixar que os entrevistados simplesmente falassem – sem interrupções, sem cortes desnecessários, sem concessões ao ritmo “frenético” e à ditadura do tempo na TV, em que um minuto é uma eternidade. Há falas de cerca de dez minutos. Por que não ? Por que cortá-las, mutilá-las, desossá-las, em nome de uma suposta agilidade ?

Devo dizer que foi uma honra ter tido a chance de contar com Peréio como uma espécie de “alter ego”. Não se pense que esta ”divagação” sobre o que fazer com os depoimentos foi uma viagem em torno do próprio umbigo. ”Pas de tout !”. Pelo contrário. A exposição das dúvidas vem sempre acompanhada de informação jornalística.

Exemplo : se digo que poderia reforçar o documentário com entrevistas tiradas do baú, apresento, por exemplo, o áudio da gravação que fiz com Caetano Veloso, no Recife, no remotíssimo ano de 1973. Eu tinha 16 anos de idade. Mr. Veloso tinha voltado do exílio havia pouco tempo. Tratei de guardar a fita cassete. Preservada por todo este tempo, a gravação virou relíquia. Ganhou status de documento jornalístico: o que um dos mais importantes nomes da Geléia Geral Brasileira dizia, ali, no começo dos anos setenta ?

Feitas as contas, tudo o que CANÇÕES DO EXÍLIO quer é fazer algo que, tenho certeza, pode ter alguma utilidade : produzir memória. Vivo dizendo que produzir memória é uma das (poucas) coisas realmente úteis que o jornalismo pode fazer.

Se fosse escolher entre Cinema e Jornalismo, aliás, eu escolheria Cinema, sem vacilar. Já tinha escolhido, lá atrás. Quando era “inocente, puro e besta”, como na letra de Raul Seixas, no Recife dos anos setenta, fazia meus filmecos em Super-8. Mas terminei exercendo o Jornalismo, por mil razões. É sempre assim: a correnteza vai nos arrastando. C´est la vie. Mas – de vez em quando – é possível dar umas braçadas para tentar evitar o precipício – de resto, inevitável.

Independentemente de qualidade, CANÇÕES DO EXÍLIO é uma tentativa bem pessoal de fazer as duas coisas, juntar as duas pontas: o que é documentário, afinal , se não Jornalismo para Cinema ?

A disponibilidade, o talento e a dedicação de Jorge Mansur, ex-editor de telejornalismo que resolveu investir suas energias numa produtora, abriram o caminho para que a ideia do documentário se materializasse.

Posso garantir aos senhores jurados que os depoimentos, reunidos, formam um documento precioso sobre os chamados “anos de chumbo”: a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois grandes nomes que, com o Tropicalismo, tinham incendiado o cenário da música brasileira.

Lá estão: Caetano Veloso descrevendo com detalhes o interrogatório, gravado, a que foi submetido assim que desembarcou no Brasil para uma visita negociada : os militares queriam, entre outras coisas, que ele compusesse uma música em louvor à rodovia Transamazônica; Jorge Mautner explicando como e por que defendia, no exílio londrino, a ideia de que a novidade planetária não viria da Europa: viria do Brasil; Jards Macalé revivendo a sensação inesquecível que teve ao desembarcar de volta ao Brasil, no auge do verão de 1972, depois de amargar invernos londrinos: era a tal “labareda que lambeu tudo”; Gilberto Gil revelando o sofrimento que teve, pouco depois da volta ao Brasil, para compor, com Chico Buarque, uma música que jamais conseguiu gravar: a bela “Cálice”.

A frase “Pai, afasta de mim este cálice/de vinho tinto de sangue” foi escrita numa sexta-feira da paixão. Atormentado com a dificuldade que estava encontrando para demonstrar solidariedade a Chico Buarque, vítima das tesouras da censura, Gil se lembrou do sofrimento do Cristo. Não por acaso, a música foi proibida. Só foi gravada, pelo próprio Chico Buarque, anos depois, ao lado de Milton Nascimento.

Em resumo : ao fazer o documentário CANÇÕES DO EXÍLIO, originalmente exibido pelo Canal Brasil no formato de quatro episódios, constatei, pela enésima vez, que não há assunto esgotado. É bom saber que o que interessa foi feito : CANÇÕES DO EXÍLIO produziu memória. A palavra de ordem, então, bem que poderia ser : pé na estrada, câmera na mão & luz na tela. Ponto. Faz bem à saúde correr riscos, apostar no incerto. Missão cumprida. Próximo passatempo, por favor.



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