Entrevista com Evandro Carlos de Andrade -7/ “Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo” ( e o dia em que o brigadeiro disse qual seria o remédio para o murro que Carlos Lacerda levou)

qui, 30/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O impacto produzido no país  pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas  não chegou a perturbar pessoalmente o repórter iniciante. Evandro começava ali, inconscientemente, a tecer em torno de si a couraça de “cinismo” que termina envolvendo a pele dos jornalistas :

- “ Não pude ficar horas e horas no Palácio do Catete logo depois do suicídio porque tinha que ir para o jornal o mais rápido possível para  fazer a matéria. Vi o corpo descer. Fiquei ali assistindo  ao velório. Testemunhei uma  comoção que, naquele momento, nem vinha de pessoas notáveis – mas do povo. Não verti nenhuma lágrima. A verdade é que o jornalista se torna – muito rapidamente- um cínico.  Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo, porque   estamos sempre vendo  o horror e a mentira. Mas um choque é sempre  um choque, como foi o suicídio do Getúlio. O que é que se faz uma hora dessas  ? Corre-se para a redação -  que é o ponto de referência. Logo em seguida, fui ao Palácio do Catete, para esperar a hora do início do velório”.

O Diário Carioca descreveria assim,em texto não assinado,na primeira página da edição de 25 de agosto de 1954  :

“Com a cabeça voltada para o quadro que representa o juramento da Constituição de 1891 e os pés para o quadro “Pátria”, a cuja frente se acha um crucifixo,o corpo do presidente Getúlio Vargas recebe,desde as 17: 30 horas de ontem, no salão do Gabinete da Casa Militar da Presidência da República, no Palácio do Catete,as despedidas de milhares de populares que vão lhe fazer a última visita.(…) –”Nada fazia crer que fosse o Presidente se matar”,disseram-nos o general Caiado de Castro e Jango Goulart, com os quais ele conversara minutos antes de se recolher. O sr. Getúlio Vargas se recolheu ao quarto, sem mais uma palavra. Passados uns minutos – o tempo normal para a troca de roupa- ouviu-se um disparo. Acudiu, incontinenti,o sr. N. Sarmanho, que se encontrava na janela da sala contígua (a do elevador privativo do presidente). Já o sr.Getúlio Vargas agonizava. Da janela, o sr.Sarmanho fez um sinal para um oficial, pedindo que fosse o general Caiado avisado de que o sr. Getúlio Vargas havia se matado.Logo em seguida, o general Caiado chegava ao quarto,onde, não resistindo ao impacto da tragédia, foi acometido de forte crise de nervos, sofrendo uma síncope. A seguir, correndo escada acima, o sr.Benjamin Vargas gritava :”Getúlio se matou!”. O Palácio ficou em pânico, a família do presidente acorreu,entre gritos e lágrimas. Também o sr.Oswaldo Aranha logo chegou .Junto à cama, chorando,exclamou :”Abusaram demais da bonda de desse homem !”.

Por que você diz que o Getúlio da ditadura do Estado Novo foi “melhor” que o Getúlio eleito democraticamente, em 1950, para um segundo governo ? – pergunto.

Evandro se anima a fazer um relato que mistura observação política com convivência familiar :

“O Getúlio do segundo governo era uma personalidade decadente”- responde. “O que era que acontecia ? A inflação estava crescendo;os ministros não tinham expressão. Tinha-se formado, entre as chamadas “classes dominantes”, um ressentimento contra o papel que  Getúlio Vargas representava – o de Pai dos Pobres. Já o Getúlio do Estado Novo convocou as principais personalidades políticas do país para fazer um governo sob a ditadura. Os ministros todos de Getúlio eram homens públicos honradíssimos, dedicados e competentes : a elite do Brasil  governando junto com o Getúlio  numa  ditadura. Getúlio pessoalmente era um homem intocável  : despachava em pé no Palácio do Catete olhando pela janela, porque não admitia que ninguém pusesse lhe pusesse as mãos. Com ele,não existia  “tapinha na barriga”. Não havia hipótese. Era um homem que se dava ao respeito -  extremamente conservador. O “revolucionarismo” de Getúlio era uma contingência, porque ele, na verdade, era um conservador extremado. Quando foi ministro da fazenda do governo Washington Luís, Getúlio era um padrão de conservadorismo. Não queria derrubar o Presidente”.

“Admiração pelo Getúlio da ditadura – não pelo Getúlio decadente do segundo governo – só vim a ter depois, ao me informar sobre quem eram as personalidades que o cercaram. O ambiente em minha casa era antigetulista. Minha família tinha índole udenista. Para dizer a verdade, era de índole integralista. Quando eu era menino,dizia anauê (N: saudação do Movimento Integralista). Eu tinha dois ou três tios engajados no integralismo : quando houve o putsch de 1938 (tentativa de golpe dos integralistas contra o governo de Getúlio Vargas), eles tiveram de fugir  para o interior do Mato Grosso”.

“Minhas simpatias iam para a UDN. Vou ser franco :  a minha alma é udenista.Isso ficou em mim. Sou um udenista, mas detestei o golpismo de Carlos Lacerda naquele período. Hoje,tenho admiração pela figura histórica de Lacerda, mas, naquele momento, eu o detestei”.

“Nunca tive paciência para ler “O Capital”, mas tive influências de leituras sobre o pensamento marxista, sobre a análise do capitalismo, sobre a formação do capital. O que eu abominava, sobretudo, era a idéia de golpe militar. Revi posições, mas, no fundo, sou um udenista”.

“O meu udenismo vem da família  : quando em 1945 se iniciou o processo do fim da ditadura do Estado Novo, minha família pendeu para a UDN. Fui junto. A queda de Getúlio obedeceu a uma espécie de progressão. Não foi de uma vez. Getúlio só caiu quando quis fazer do irmão, Benjamin Vargas, o Benja,chefe de polícia”.

“Quem era o meu ídolo entre os udenistas ? Vou dizer baixinho : era o Brigadeiro Eduardo Gomes. Eu via no Brigadeiro a figura de um herói, um homem de uma grande integridade. Nem sei se ele tinha a visão adequada de um Brasil efervescente,como era o país naquele momento. Mas era um homem absolutamente correto -  um padrão moral. Tinha arriscado a vida na revolta dos Dezoito do Forte. Contavam-se duas histórias engraçadas sobre o Brigadeiro. Um dia, ele disse que quem tomou o forte foram  13, não 18. Quando quiseram saber  “mas por que o senhor nunca disse que tinham sido 13 ? “, ele respondeu simplesmente :”Porque  nunca me perguntaram !”. Carlos Lacerda uma vez levou um murro dentro do elevador da Rádio Mayrink Veiga . Dizia-se quem mandou dar o murro foi  o marechal Mendes de Morais, prefeito do Rio de Janeiro na época. Lacerda sempre foi uma fera : comentarista da rádio, denunciava casos de corrupção e combatia o prefeito. Agredido violentamente, Lacerda ficou com um inchaço. Toda a UDN estava reunida na casa de Lacerda quando entra o Brigadeiro Eduardo Gomes. Fez-se silêncio. Todos esperavam que o Brigadeiro dissesse uma frase histórica sobre a agressão.  Mas o Brigadeiro chegou  bem perto do inchaço de Lacerda e disse :

-Bom pra isso é bife cru….. “

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade – 6/ “JK tinha uma notória amante. Não se falava sobre o assunto”

qua, 29/06/11
por Geneton Moraes Neto |
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Neste trecho da entrevista, o jornalista Evandro Carlos de Andrade relembra o dia em que viajou a Belo Horizonte com a missão de fazer uma entrevista com o candidato que viria a se tornar um dos mais populares presidentes da República :

“Tive a chance de fazer a primeira entrevista com Juscelino como presidente eleito. A entrevista não foi feita para o Diário Carioca, mas para a revista Manchete. Pompeu de Souza (chefe de Evandro no Diário Carioca) ficou enciumado. Diretor da Manchete, Otto Lara Rezende  me convidou para fazer a entrevista com Juscelino. Consultei Pompeu : “A Manchete me convidou. Algum problema ? “. Como ele disse que eu poderia atender ao convite, viajei para Minas Gerais, em companhia do fotógrafo Gervásio Batista,exclusivamente para fazer a entrevista. Quando voltei ao Rio, notei que Pompeu  tinha ficado enciumado, porque ele me disse : “Ah,não esperava que você fosse…”. Respondi  : “…Mas eu pedi autorização! E você é que deu !”.

“Juscelino estava tranqüilo quando o encontrei, em Belo Horizonte. Chegou a brincar quando eu disse que as projeções indicavam que ele vencera a eleição  : “Mas essas contas estão certas ?”. A contagem dos votos não tinha terminado. A apuração dava vantagem a Ademar de Barros mas não havia dúvida nenhuma de que Juscelino seria eleito para a Presidência da República. Eu tenho certeza de que ele estava cansado de saber que iria ganhar. Ainda assim, me perguntou:  “Como é que você fez esse cálculo ? “. Juscelino estava brincando. Era extremamente simpático e gentil.  Estava cansado, mas sorridente e eufórico. Quando o fotógrafo se preparava para fazer as primeiras fotos, amigos sugeriram que Juscelino trocasse por “um terno presidencial” a roupa meio amarrotada que ele usara na viagem do Rio a Belo Horizonte. Juscelino, então, se levantou. Quando voltou, estava de terno cinza-escuro, colete, gravata em minúsculo xadrez preto e branco e sapatos pretos, conforme registrei na reportagem. Quando ainda estava em desvantagem na contagem dos votos, Juscelino ouviu de um repórter, na saída de uma missa de ação de graças pelo aniversário de Dona Sara, uma perguntava sobre se não estava assustado com o resultado. Respondeu : “ Você nunca ouviu falar em Nossa Senhora do Bom Princípio. Porque o que existe é Nosso Senhor do Bonfim. E desse eu sou devoto !”.

“Não teve nem  cafezinho :  eu me sentei ao lado do presidente eleito, fiz a entrevista, fui embora para o Rio. Juscelino tinha estado na casa de um amigo. Era notoriamente amante da mulher do dono da casa”.

“Juscelino aproveitou a entrevista para mandar um recado aos que não queriam que ele tomasse posse. Quando perguntei se ele acreditava que o movimento contrário a ele iria recrudescer, respondeu   : “Considero esta pergunta totalmente superada. A eleição de três de outubro arrasou com qualquer veleidade de grupos que quisessem opor-se à vontade do povo. Nem considero esta pergunta como tema para dissertação. O eleito é ungido. Nenhuma força impedirá a posse”.

“Quando Juscelino assumiu a Presidência,passei a escrever uma coluna diária no Diário Carioca sobre o que acontecia no Palácio do Catete. A gente sabia da fama de Juscelino  : a de ser de mulherengo.  Tinha uma notória amante – uma mulher casada. Não se falava sobre esse assunto. Veja-se o próprio Getúlio Vargas. Quando eu soube que  Getúlio tinha sido amante de Virgínia Lane, tive uma surpresa. Eu não tinha nenhuma idéia de que  Getúlio fosse sexualmente praticante”.

“Juscelino não tinha intimidade com os repórteres que o acompanhavam. Era simpático, mas se dava ao respeito. Passei a campanha toda dentro do avião de Juscelino. Ainda assim, ele não me dava nenhum tratamento especial. Só raramente. Posso dizer que sofri quando fui distinguido com um convite. Quando Juscelino foi fazer uma viagem a Belo Horizonte por uma estrada de terra, prosseguimento da União Indústria, me convidou. O convite foi feito também porque o Diário Carioca o apoiava. Mas foi um horror, um tormento para mim. Viajei no quarto carro da comitiva. Alimentei-me de poeira durante doze horas”.  

“Tanto durante a campanha quanto durante o exercício da Presidência, Juscelino sabia ser espontâneo e comunicativo durante as entrevistas. Pode-se dizer que foi o primeiro homem público a usar bem a televisão,  no sentido pró-governo.Carlos Lacerda usou o poder demolidor da TV. Ao perceber o poder de fogo da TV, Juscelino –que tinha poderes para tanto – proibiu Lacerda de ter acesso à televisão”.

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade -5 / Cenas dos bastidores de uma campanha presidencial : jornalistas recebem revólveres para acompanhar o comício de JK no sertão de Pernambuco

ter, 28/06/11
por Geneton Moraes Neto |
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O Diário Carioca daria a um Evandro ainda verde na profissão a primeira grande chance de participar intensamente de uma cobertura importante. Quatro candidatos disputavam a Presidência da República : Juscelino Kubitschek (PSD/PTB); Juarez Távora (UDN/PDC); Ademar de Barros (PSP) e Plínio Salgado (PRP). Coube a Evandro a tarefa de acompanhar, para o Diário Carioca, a campanha de um candidato sorridente que, depois de ganhar no voto o governo de Minas Gerais, agora sonhava com a Presidência da República : Juscelino Kubitschek de Oliveira.

O relato de Evandro:

“Durante a campanha, enfrentamos situações de perigo  a bordo do avião que servia a Juscelino. Mas, diante de situações como, por exemplo, o incômodo do calor e da poeira no Nordeste, eu preferia estar voando a estar em terra. Parecia mais confortável. Mas devo dizer que o avião que Juscelino usou durante toda a campanha não podia ser mais desconfortável : o DC-3 não tinha pressurização, não tinha nada -  uma coisa horrível. Guardei o prefixo :  era um avião da Nacional Transportes Aéreos, PP-ANY. Houve cenas assim : Juscelino recebeu um aviso de que não deveria seguir de Manaus para Santarém, porque o tempo estava horroroso. Mas o avião tentou pousar, debaixo de tempestade. Além da chuva tremenda, o capim cobria a pista. Resultado :  o avião arremeteu  três  vezes. Quando o piloto tentava pousar, tinha de desistir da manobra, porque o capim e a tempestade atrapalhavam a visão do traçado da pista de pouso. Só conseguiu depois da terceira tentativa”.

“Depois, ao decolar, no interior do Rio Grande do Sul, o avião levantou um pouco , teve uma pane e caiu num banhado logo em seguida. Os pilotos Prates e Torres – que tinham sido da FAB – faziam coisas incríveis durante essa maratona da campanha. Viajamos de Salvador a Recife a quinze metros de altura – um vôo rasante pelo litoral. Os pescadores se abaixavam quando viam aquele bichão dando rasante. Era o avião de Juscelino. José Moraes, secretário de imprensa de Juscelino, se indispôs uma vez com um dos pilotos, em Santa Catarina. Como vingança, o piloto resolveu brincar com o avião. Fazia manobras quase na vertical. Quando pousamos, havia gente machucada a bordo. Juscelino não estava no avião, porque tinha embarcado num teco-teco para percorrer pequenas cidades do Estado. Eu escapei do susto porque, como cupincha dos pilotos, fui para a cabine. O engraçado é que, quando a gente passou por José Moraes – a quem os pilotos quiseram assustar com a manobra – ele estava lendo um livro de bolso. Sempre andava com um pocket book de ficção, em inglês. Lívido, sério, ele fazia de conta que estava absorvido pela leitura – mas o livro estava de cabeça para baixo. Fez de tudo para não passar recibo do susto. José Moraes era um bom sujeito. Bebia cachaça mas nunca tinha ressaca. Não ficava bêbado. Lá pelo segundo ano de governo, sentiu-se ligeiramente mal. Quando os médicos abriram, viram que ele estava todo corroído.Logo depois, ele morreu”. 

“Quando  íamos descer em Petrolina, no sertão de Pernambuco, para um comício, o operador   recebeu um recado : “Não venham, porque vocês vão ser recebidos a tiros !” . O aviso nos foi transmitido por rádio. A bordo, havia uma mala de couro, cheia de munição. Cada um de nós recebeu uma arma. Desembarcamos em Petrolina armados com revólveres, para o comício que Juscelino ia fazer. As armas nos foram entregues ainda dentro do avião. Um major deve ter distribuído as armas. Nosso grupo devia ter uns dez pessoas. ”Vamos em frente”. Juscelino não era nada truculento. Mas o grupo estava pronto para o que desse e viesse. Para dizer a verdade, eu estava com um medo desgraçado, porque nunca tinha dado um tiro na vida. Mas estava pronto para o pau- uma maluquice completa. A arma pesava. Tinha munição de verdade. Era para morrer heroicamente em Petrolina…. Não era possível saber o que nos esperava, ali, no alto sertão. Mas – felizmente - nada de anormal aconteceu. Juscelino fez um comício ótimo, numa praça linda . Quem organizava bem essas manifestações, com faixas para todo lado, era o Partido Comunista. Juscelino era um sucesso. As multidões iam vê-lo, empolgadas, porque ele transmitia simpatia. De qualquer maneira, a ameaça que tinha sido transmitida à comitiva  ainda no avião, antes do comício de Petrolina, nos assustou”.

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade – 4 :”Saber usar crase é um patrimônio tão importante que deve ser declarado no Imposto de Renda”

seg, 27/06/11
por Geneton Moraes Neto |
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Um novo trecho da entrevista inédita com o jornalista Evandro Carlos de Andrade (ver posts anteriores) :

“Como é que se chega ao jornalismo ? Quando é o caso, chega-se por  impulso político. Não foi o que aconteceu comigo. Nunca fui militante, nunca participei sequer de política estudantil. Chega-se ao jornalismo também por falta de vocação – o que é predominante. Somos jornalistas por falta de definição. Há também o fator  multivocacional :  o sujeito que acha que pode ser isso ou  pode ser aquilo  acaba se tornando jornalista, porque nossa característica fundamental é a superficialidade :  o jornalista tem um interesse – sempre superficial – por tudo. É o meu caso. Sempre me interessei por tudo, mas  muito superficialmente. Tudo me interessa -  pela rama. Se alguém  me perguntar : “ Você conhece todas as regras do futebol? “. “Eu ? Jamais ! Nunca li! “. Se alguém quiser saber de mim  “Você já leu toda a Constituição?”.  “Nunca ! Nunca !”.  Mas me interesso por tudo. É o que faz de mim jornalista. Hoje, reconheço que a curiosidade superficial por tudo é  uma qualidade  insuficiente :   todo jornalista deve se aprofundar em  um ramo do conhecimento. Mas  o jornalista em geral  se interessa pelo esporte, pela política, pelo crime, pela economia. É um traço da profissão. Eu me interesso por cada seção do jornalismo. De Otto Lara Resende ouvi pela primeira vez a autodefinição profissional : “Sou especialista em idéias gerais”. É o que nós, jornalistas, continuamos a ser”.

“Além de se interessar por tudo, o jornalista deve, obviamente, tratar bem o idioma. Saber usar a crase é um patrimônio tão importante que deve ser declarado ao Imposto de Renda. Quando for preencher o formulário, quem souber usar corretamente a crase deve dizer : “tenho casa,tenho carro e sei usar crase” . Porque é incrível a dificuldade que jornalistas – inclusive os antigos e experientes – enfrentam quanto ao uso  da crase. Ferreira Gullar disse que  “a crase não foi feita para humilhar ninguém”. Eu digo que a crase foi feita para humilhar quem não sabe usá-la.Uso a crase como símbolo do cuidado que os jornalistas devem ter com a língua” . 

Os olhos grandes de Evandro – ampliados pelas lentes dos óculos – parecem ainda maiores quando ele faz uma radiografia rigorosa do jornal que o empregou pela primeira vez :    

 - “O Correio Radical na verdade era um jornal chantagista e ordinário, porque tomava dinheiro de bicheiros. Era o que se fazia : o jornal denuncia o bicheiro. Em seguida, o bicheiro vai ao jornal para saber : “Quanto é ? “. O jornal diz, o bicheiro paga, o assunto morre ali. É o que se fez durante anos e anos, nesse tipo de imprensa. Eu não ganhava nada para trabalhar no jornal. Absolutamente nada : nem um centavo. A greve foi uma tentativa de receber algum pagamento”.

“A primeira reportagem que fiz foi um grande vexame. Fazia-se muito  “nariz de cera”.( N : gíria das redações para definir as introduções intermináveis que os redatores faziam ao redigir as reportagens). Minha tarefa era fazer uma matéria sobre o general Armando de Morais Âncora – que tinha sido nomeado por Getúlio Vargas para o posto de  diretor-geral do Departamento Federal de Segurança Pública, o DFSP, no Rio de Janeiro. Pediram-me que eu fizesse um   “nariz de cera” elogioso a ele.  Nomeado, depois, para o comando do I Exército no Governo João Goulart, foi transferido para a reserva logo após o golpe de 1964. Tinha ficado a favor de Jango. Terminou morrendo de câncer – que, como dizia Otto Lara Resende, é uma doença da alma. Houve vários casos de generais que tinham ficado a favor da legalidade – e morreram, doentes, pouco tempo depois de 64. Eu associo sempre a doença ao desgosto que sentiram”.

“Ao redigir o “nariz de cera” para o Correio Radical, escrevi que o general era reconhecido pelo “opróbrio”. O meu raciocínio era o seguinte : se probo é alguém honesto, então opróbrio é sinônimo de honestidade. Acontece que é exatamente o contrário. Opróbrio quer dizer desonra, ignomínia. Paguei esse grande mico”.

 “O pior é que o texto saiu. Alguém iria saber o que era opróbrio na redação ? Uma vergonha completa. Mas ninguém reclamou : nem o dono do jornal nem o general- com quem, aliás, não cheguei a falar antes de redigir a matéria. Não me encontrei com ele. O texto que o jornal iria publicar era uma badalação em cima do que já se sabia sobre o general. O acesso fácil de jornalista a autoridade é um fenômeno que só se espalhou depois da inauguração de Brasília. A acessibilidade que existe em Brasília é que criou uma convivência que, antes, não era a regra. Autoridade não olhava para repórter, não dava a menor pelota” .

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade – 3 (Ou: Pequeno roteiro de cenas “inconfessáveis” ocorridas na redação de um jornal

dom, 26/06/11
por Geneton Moraes Neto |
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 O noticiário anda árido ? A atriz não disse nada de aproveitável na entrevista ? Que se crie uma Milícia de Proteção aos Pombos para comover os leitores. Ou acrescente-se à entrevista da atriz uma frase bem-humorada que ela poderia até ter dito ao repórter – mas não disse. O jornalista iniciante Evandro Carlos de Andrade foi “testemunha ocular” de invenções cometidas na redação de um jornal importante, o Diário Carioca.

O DOSSIÊ GERAL publica um novo trecho da entrevista (inédita) que o locutor-que-vos-fala fez com Evandro Carlos de Andrade, jornalista que se notabilizou como comandante de redações ( ver posts anteriores). Faz exatamente dez anos que morreu, aos sessenta e nove anos de idade, vítima de uma doença de nome esquisito: Policitemia Vera. Quando saiu de cena, comandava a Central Globo de Jornalismo.

Logo no início da carreira, nos anos cinquenta, teve a chance de frequentar a redação do jornal que seria laboratório de uma revolução estilística na imprensa brasileira:  o Diário Carioca implantou a objetividade no texto jornalístico, até então marcado por academicismos, floreios, imprecisões. O editor Pompeu de Souza trouxe para o jornal o conceito americano de lead. Uma notícia deveria responder, já nos primeiros parágrafos, às seguintes perguntas básicas: “ Quem ?  O quê ? Quando ?  Onde ? Por quê ?”.

Mas….o jornal que entrou para a história da imprensa brasileira moderna por ter instaurado o reino da objetividade também cometia seus pecadilhos na busca pela atenção do leitor… 

Diz Evandro: 

“Assim que me apresentei ao jornal, conheci o chefe de reportagem Luís Paulistano, famoso criador da Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – uma invenção pura. Um fotógrafo tinha chegado à redação com a seguinte notícia : um gavião estava comendo os pombos da Candelária. Paulistano então deu a ordem : “Evandro, vá ver esse negócio.” Lá fomos nós – eu e o fotógrafo, Orlando. Tivemos de subir a cúpula da Igreja, aquela coisa imunda. Quando chegamos lá em cima, encontramos um diabo de um gavião. Orlando fez uma fotografia péssima – que teve que ser retocadíssima para que se pudesse ver do que se tratava. O Diário Carioca publicou a primeira matéria. Mas, nos dias seguintes, Paulistano resolveu inventar, porque queria manter o assunto vivo. Todo dia, ele escrevia sobre o gavião que estaria atacando os pombos – o que era pura ficção. Paulistano chegou a criar uma Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – a MPPC. Fez a sigla. Disse o seguinte: empresários da praça Mauá estão preocupados com os pombos. Tudo mentira, mentira, mentira, mas o assunto virou um ícone na imprensa do Rio. É inacreditável – mas as coisas aconteciam assim”.

A saga fictícia do gavião exterminador de pombos no centro do Rio de Janeiro não foi a única história “inconfessável” que Evandro Carlos de Andrade testemunhou na redação do Diário Carioca. Ruth Ellis, mãe de dois filhos, assassina confessa do amante, entrou para a crônica policial inglesa como a última mulher a ser condenada à morte no país – numa época em que a pena capital era o enforcamento. Os carrascos da prisão de Holloway , em Londres, cumpriram a sentença da justiça no dia 13 de julho de 1955. Ruth Ellis morreu sem saber que, num longínquo país da América do Sul, foi personagem de uma escandalosa fraude jornalística, na primeira página de um dos jornais da então capital federal – o Diário Carioca.

A testemunha Evandro Carlos de Andrade revela :

“Um dia, encantado com um texto que anunciava para o dia seguinte o primeiro enforcamento de mulher depois de décadas, Pompeu de Sousa quis publicá-lo acompanhado da fotografia da condenada. Não havia fotos. Pompeu mandou buscar no arquivo a pasta de fotos de pin-up girls, escolheu a mais bonita – de maiô e saltos altos- e publicou-a de cima a baixo na primeira página, como se fosse da mulher que seria enforcada horas depois. Otávio Malta, indignado, protestou na coluna da “Última Hora” em que fazia a crítica dos jornais, mas Pompeu, enquanto ria da reclamação, justificou-se : “Em jornalismo, não se pode ser acadêmico”.  Nunca me esqueci da frase de Pompeu – “em jornalismo,não se pode ser acadêmico” – mas devo dizer que a máxima não me serviu de lição porque nunca achei certo o que se fez ali. Sempre considerei aquilo engraçado, mas incorreto”.

“Pompeu fez uma dessas comigo quando fui fazer uma entrevista com uma starlet americana de segunda categoria que tinha vindo ao Rio. Ibrahim Sued viveu o que se pode chamar de “conjunção carnal” com ela. A atriz teve uma gravidez tubária. Teve de ser internada no Hospital dos Ingleses. Lá fui eu, com o inglês capenga que tenho até hoje, para entrevistar a starlet. Obviamente, o motivo real da internação jamais foi publicado. Quando cheguei lá, tirou-se aquela fotografia clássica do repórter ao lado da entrevistada. Fiz uma matéria – completamente irrelevante – porque não havia assunto a tratar com ela. O promoter de cinema americano Harry Stone é que trazia esses artistas para o Rio, geralmente para o carnaval. Quando abro o Diário Carioca no dia seguinte, vejo a foto em que apareço ao lado da atriz. Pompeu escreveu na legenda : “Em dado momento,a atriz perguntou ao repórter do Diário Carioca : “Você é primo de Burt Lancaster ?””. Era apenas uma gracinha de Pompeu comigo. Eu pensava : “Isso não tem o menor cabimento !”. A atriz foi operada. Assim que recebeu alta, foi embora. Assim como Jorginho Guinle, Ibrahim Sued, com perdão da má palavra, comia todas. Ninguém passava impune. A starlet  foi uma das conquistas de Ibrahim” .

“Pompeu de Sousa era um grande jornalista, mas exercia um estilo que, hoje, seria impossível : numa emergência, inventava. Era um homem engraçado. Vivia rindo da vida. Dava gargalhadas . Nunca o vi de mau humor.  Quando me apresentei pela primeira vez na redação, Paulistano me incumbiu de fazer uma reportagem sobre um promotor chamado Cordeiro Guerra – “é uma fera, consegue condenação de todo mundo”. Fui procurar Cordeiro Guerra. Depois, entrevistei os advogados mais famosos da época, como Evandro Lins e Silva e Romeiro Neto. Deixei a matéria na redação. Era um sábado. Quando chegou, Pompeu de Sousa, o chefe da redação, perguntou a Paulistano, como sempre fazia : “O que temos aí para a primeira página ?”. Paulistano disse a Pompeu que um foca tinha deixado com ele o material sobre o promotor. Sem ler, Pompeu passou a matéria para Armando Nogueira : “Reescreva aí…”. Como devia estar morto de preguiça, porque era sábado e ele queria ir embora, Armando leu aquilo e disse : “Não tem o que mexer; é só botar uns entretítulos”. Pompeu publicou a reportagem, assinada por mim, na primeira página de domingo. Quando entrei numa banca, no Grajaú, quase tive um enfarte ao ver o Diário Carioca”.

“Quem fazia o noticiário político era Carlos Castello Branco, autor das melhores entrevistas. Mas não era uma característica do Diário Carioca ficar publicando entrevistas. Logo no início, fui repórter de assuntos sindicais : a última página era dedicada a sindicatos.A cobertura, intensíssima, era feita por mim e por Mário Wellington Pita Ribeiro – um bom companheiro mas um sujeito esquisito. Grisalho, magro, andava armado – sempre de paletó e gravata, como todos nós. Além de trabalhar no Diário Carioca, trabalhava numa “agência”. “Que agência, Mário?” – a gente perguntava. E ele : “Ah, minha agência…”. Não sei que tipo de agência era aquela. A gente sempre achou que Mário tinha uma atividade suspeita e inconfessável. A vida sindical, no fim da era Vargas, era agitada. Havia pancadarias tremendas nas greves : quando a polícia entrava, baixava o porrete”.

“Os eventos nos sindicatos sempre ocorriam no fim da tarde. A cobertura era uma tarefa pesada : o ambiente era áspero, quente, abafado. Ouvíamos horas e horas de discursos para, depois, fazermos uma matéria de uma lauda. Meu horário de saída do jornal dependia do humor de Pompeu.  Ao fim de algum tempo, entusiasmado com minha dedicação, Pompeu passou a me chamar de “interno”, porque eu ficava no jornal todo dia até de madrugada. Comecei a receber pagamento do jornal – uma miséria : o piso era um salário-mínimo. Nem recebia regularmente : era vale. O piso salarial dos redatores eram dois salários mínimos”.

“A hora em que eu encerrava meu expediente na redação do Diário Carioca dependia do humor de Pompeu de Sousa. Os amores de Pompeu eram engraçadíssimos. Acompanhei tudo. Pompeu se casou duas vezes. Teve duas filhas no primeiro casamento. Depois,se casou com Otília, com quem teve quatro filhos. Otília tinha um ciúme louco : vivia colada em Pompeu”.

Otto Lara Resende fez,num texto de 1976 republicado em “O Príncipe e o Sabiá” (Companhia das Letras,1994), uma cobrança coletiva aos que passaram pela redação do Diário Carioca : que escrevessem a biografia do jornal. O Diário Carioca, dizia Resende, era um “ilustre morto de que é preciso fazer a biografia; inclusive pelo que representou no papel de modernizador da imprensa brasileira. Sobre isto, muitos são os que, desde aqueles tempos na Praça Tiradentes, ou depois, na praça Onze e na avenida Rio Branco,podem e devem depor : Carlos Castelo Branco, Nilson Viana, Evandro Carlos de Andrade, Armando Nogueira : cito só uns poucos de todos os que passaram pela risonha, franca e barulhenta escola de Pompeu de Sousa, em perfeito entendimento com a sempre polida e bem-humorada serenidade de Prudente de Morais,Neto”.

Evandro responde, parcialmente, à convocação do amigo, ao fazer um retrato falado dos tempos em que habitou a redação do jornal:

 “Pompeu de Sousa – diz Evandro – tinha trabalhado na Voz da América, nos Estados Unidos, onde ficou até o fim da guerra. De lá,trouxe um estilo novo de fazer jornalismo e o inaugurou no Brasil com um título que se tornaria marco de renovação : “Sai Dutra, entra Góes”.O anúncio da substituição de um ministro da Guerra, feito dessa maneira, chocava pela informalidade e pela concisão – duas características que, a partir daí,seriam o fundamento de um jornalismo em busca da objetividade. Não que Pompeu fosse tão objetivo assim. Seu impulso romântico, permanente, o impedia”.

“Pompeu avaliava matérias, dava títulos, contratava e demitia – mas quase não escrevia. A gente dizia que ele tinha um estilo proustiano, porque era minucioso. Os textos de Pompeu eram extensos, por que ele queria sempre contar os detalhes. Para mim, era um texto pesado .Mas ele trouxe para o nosso jornalismo o “lead”, importado dos Estados Unidos”.

 “Pompeu tinha ido para os Estados Unidos ainda no primeiro governo de Vargas, na ditadura do Estado Novo, mandado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – uma tática para afastá-lo, porque ele era um jornalista incômodo. Usava os telegramas de guerra para, nas entrelinhas, hostilizar a ditadura de Vargas. Dos Estados Unidos,Pompeu trouxe a visão de um jornalismo objetivo – que aplicou no Diário Carioca quando assumiu a direção do jornal” .

Entrevista com Evandro Carlos de Andrade II // O repórter testemunha a cena surpreendente : uma gota de sangue escorre da boca do Presidente morto

sáb, 25/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O DOSSIÊ GERAL publica desde ontem trechos do livro que  um dia será concluído ( ver post anterior ) :  uma longa entrevista com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001. Aqui, o repórter iniciante testemunha, no Palácio do Catete,  o choque provocado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas :                             

Demitido do jornal Correio Radical por ter participado de uma greve por melhores salários, o repórter Evandro Carlos de Andrade já tinha conseguido um novo emprego – no Diário Carioca  – quando testemunhou a cena inesquecível : uma gota de sangue escorrendo do canto direito da boca do presidente da República. A imagem atravessaria os próximos cinquenta anos guardada em algum escaninho da memória do repórter. Era impossível esquecê-la. Porque o Presidente estava morto.

                                   A gota de sangue dava um toque surreal  à maior tragédia da história republicana brasileira. Getúlio Dornelles Vargas tinha se suicidado com um tiro no peito, às oito e meia da manhã daquele 24 de agosto de 1954, em seus aposentos no terceiro andar do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O tiro no peito de Getúlio foi o “batismo de fogo” do repórter estreante. Evandro foi correndo ao Palácio. Depois da autópsia, o corpo seria exposto à visitação pública, no salão onde funcionava o Gabinete Militar da Presidência da República, no térreo. O caixão foi transportado  do pavimento superior ao andar térreo em meio ao empurra-empurra da multidão que ocupava cada centímetro do salão. O balanço do caixão deve ter provocado o movimento da gota de sangue no canto da boca  presidencial .Intimamente,o repórter ficou matutando sobre o surrealismo da cena : um corpo morto dava sinais (mínimos)  de atividade.

                              Em meio à confusão que se instalou no Palácio, Evandro bem que pode ter cruzado com um dos chefes de gabinete da presidência, o embaixador José Sette Câmara – que, quarenta anos depois, descreveria assim o que aconteceu no instante em que o caixão foi simbolicamente entregue à curiosidade popular :

                              -  Salas,salões,corredores fervilhavam de gente, num vozear aturdidor. Somente às cinco da tarde um rebuliço vindo do lado da escadaria indicava que chegara o momento em que Getúlio Vargas desceria pela última vez de seu claustro no terceiro andar. Corri à porta da ante-sala que dá para as escadas.Vi, então, um espetaculo inesquecível. As escadas apinhadas de gente não davam passagem para ninguém.  Emergindo do terceiro andar, o ataúde, que no ambiente estreito das escadarias se afigurava enorme e desproporcional, negro e maciço, descia de uma maneira fantasmagórica. Não era carregado por ninguém, pois a passagem pelas escadas à cunha era impossível. Deslizava por sobre as cabeças, movido por mil mãos amigas e carinhosas, escorregava lentamente, aos balanços, em meio a choros, gritos histéricos, lamentos, pedaços de frases, invocações, protestos de fidelidade, objurgatórias, tudo na excitação dos empurrões, cotoveladas e queixas da multidão comprimida que não podia se arredar um centímetro. Ao aparecer o negro caixão à porta do salão do Gabinete Militar, ocorreu uma explosão coletiva de dor, revolta, tristeza, indignação. Gritos excitados, soluços doridos, brados furiosos, tudo aquilo se misturou num guaiar gigantesco e desencontrado da multidão que ali se comprimia. O caixão prosseguia no seu fantástico escorregar sobre as cabecas do povaréu, em direção à essa armada no centro do salão. Alguém, na ânsia de vislumbrar o corpo de Getúlio Vargas, tentou em um salto pendurar-se num dos enormes lustres, que desabou com o fragor dos cristais quebrados, entremeado de gritos de dor dos que eram atingidos pelos pedacos do lustre despencado(…) Nós, funcionarios do Palácio, fomos os primeiros a aproximarmo-nos do caixão. Lá estava ele, debaixo da tampa de cristal. O lenço passado sob o maxilar e atado sobre a cabeca não tinha sido retirado. Notei que a tampa do caixão comprimia as suas mãos, embranquecidas no lugar da pressão. O terço de Apolonio Sales estava entre os seus dedos. Durante o velório,voltei várias vezes ao estrado para curvar-me diante da visão ainda inacreditável para mim de GetúlioVargas morto” .    

                                        As cenas de histeria da multidão,o horror desenhado no rosto dos ministros, o sentimento generalizado de incredulidade, tudo se dissipou na memória do repórter Evandro Carlos de Andrade meio século depois. Ficou a lembrança da gota de sangue no canto da boca : “memória seletiva”  em estado bruto.

                                         Evandro aproxima-se do gravador, ajeita-se na poltrona, descreve assim a imagem inesquecível : 

                                          “Sem dúvida,a lembrança mais forte que guardei do velório de Getúlio Vargas foi esta : a do momento em que conduziram o corpo  por uma escada estreita, em direção à sala apinhada de gente. Com o sacolejar, em meio ao tumulto de tanta gente chorando, vi uma gota de sangue escorrer da boca do presidente. Os médicos do Instituto de Medicina Legal tinham acabado de fazer a autópsia. Um detalhe me chamou a atenção  : vestido com uma jaquetão grafite ,Getúlio tinha os mãos cruzadas; eram mãos grossas, com dedos curtos e peludos. Pela primeira vez , eu via o presidente tão de perto. E ele estava morto. Quando menino, eu já tinha desfilado diante de Getúlio Vargas, na Avenida Rio Branco, pelo meu colégio. Batia surdo na banda da escola. Desfilávamos para o Presidente no chamado “Dia da Raça”. Vivia-se sob a ditadura do Estado Novo. Além de desfilar, participei também de um grande coro de estudantes que se apresentava para Getúlio Vargas, no estádio do Vasco da Gama,em São Januário,sob a regência do maestro Heitor Villa-Lobos. Cada turma do colégio tinha um canto. Eu tinha de cantar aqueles versos “oh, manhã de sol…..!” .Tínhamos de ensaiar tudo na escola, antes de sermos regidos pelo maestro” .        

                                           “Eu, que tinha desfilado para Getúlio Vargas como estudante, encontrei-o de novo no poder quando comecei a trabalhar em jornal. Quando  ouvi  pelo rádio a notícia da morte do presidente, eu estava em casa. Corri para a redação do Diário Carioca. Em pouco tempo,chega  Prudente de Morais, Neto -  que, com o pseudônimo de Pedro Dantas, assinava uma coluna política em que tinha feito uma grande campanha  contra a posse de Getúlio Vargas na presidência. Dizia que Getúlio só poderia ser   empossado se  alcançasse a maioria absoluta dos votos. A tese da maioria absoluta era uma invenção. Não havia nada assim na Constituição que impedisse a posse.  Mas Prudente de Morais,Neto lutou –e muito- na coluna contra a posse.  Agora, poucas horas depois do suicídio do presidente, ele estava ali, na redação do jornal. Lá estávamos eu, Pompeu de Souza, Carlos Castelo Branco.  Uma cena que  me chocou foi ver Prudente tomado por um ódio surpreendente – logo ele, uma pessoa doce, boníssima : quando entrava na redação, cumprimentava, um por um, todos os funcionários.  O que me chocou naquele momento foi  vê-lo  relhando os dentes e dizendo “Filho da puta !”, ao se referir a Getúlio.  Prudente  percebeu imediatamente que o suicídio de Getúlio Vargas iria mudar todo o rumo da política no Brasil”.

Um depoimento pessoal do jornalista que comandava redações: Evandro Carlos de Andrade (Ou : “Qual o sentido da vida ? Os filhos. Ponto final”)

sex, 24/06/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

                                                  

Tive a chance de gravar uma extensa entrevista com um jornalista que se notabilizou como comandante de redações: Evandro Carlos de Andrade. Não me lembro de ter feito tantas perguntas a um só entrevistado. A entrevista se estendeu por vinte horas, divididas em dez sessões de duas horas cada. O homem tinha histórias a contar sobre Getúlio Vargas, JK, Jânio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, o regime militar, os bastidores da política e do jornalismo  ( Evandro testemunhou, como jornalista iniciante, a revolução provocada pelo Diário Carioca, o jornal que trouxe para o Brasil as modernas técnicas jornalísticas americanas . Atuou durante anos como repórter político em Brasília. Chefiou a redação do jornal O Globo entre 1972 e 1995. Depois,  comandou por seis anos o jornalismo da TV Globo ).   Meses depois de encerrada a maratona de gravações, Evandro Carlos de Andrade morreu, aos sessenta e nove anos de idade, no dia 26 de junho de 2001.  Faz exatamente dez anos, portanto.  

O Dossiê Geral publica, nestes próximos dias, trechos do depoimento.

 Tenho três ”dívidas” graves com a memória do jornalismo. Tomara que me sobre tempo para pagá-las:  quero “botar no papel”  as gravações que fiz com três pesos pesados  -  Joel Silveira (com quem convivi durante vinte anos, na privilegiada condição de aprendiz daquele que era considerado o maior repórter brasileiro), Paulo Francis (o “lobo hidrófobo” que deu uma contribuição nem sempre reconhecida à evolução da prosa jornalística brasileira)  e Evandro Carlos de Andrade. 

Eis um bom passatempo para um repórter: bem ou mal, tentar produzir memória. É uma das (poucas) coisas realmente úteis que um jornalista pode fazer. Não tenho planos de escrever teses ou divagações sobre o jornalismo. A longa entrevista com Evandro Carlos de Andrade um dia será publicada porque deixá-la no fundo da gaveta, à espera do mofo e das traças, seria um crime de lesa-memória.  Poderá servir, quem sabe, como matéria-prima para os que se ocupam da história da imprensa num período conturbado da vida brasileira. Já disseram que cabe ao jornalismo fazer o primeiro rascunho da história. Voilá.

A quase totalidade do depoimento se concentra no jornalismo e na política. Mas um trecho que trata de uma experiência pessoal vivida por Evandro Carlos de Andrade sempre me vem à memória. O motivo: depois de passar horas e horas falando sobre grandes acontecimentos, presidentes, pompas, poderes, dramas, glórias, fracassos e planaltos, ele chegava a uma conclusão surpreendentemente singela : “O sentido da vida são os filhos”.

Eis um trecho do livro que um dia será concluído:     

O início da carreira coincide com um acontecimento de natureza íntima que Evandro considera “doloroso” : a perda da fé religiosa. Sem saber, Evandro experimentava, na prática,um sentimento que o filósofo Bertrand Russel já tinha descrito em tese. Num texto escrito em 1932, Russel constatava : para um jovem que teve formação religiosa ,a perda da fé pode ser uma fonte permanente de infelicidade. Já quem nunca teve de fé não sofre tanto :

 - A crença em Deus e no outro mundo torna possível atravessar a vida com menos coragem estóica do que a necessária aos céticos. Muitos e muitos jovens perdem a fé nesses dogmas numa idade em que o desespero é fácil e têm então de enfrentar uma infelicidade muito mais intensa do que a que se abate sobre aqueles que não tiveram uma criação religiosa – diria Russel, um intelectual que considerava as religiões perniciosas porque todas  se baseiam no temor humano – “medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte”.

 Evandro descreve assim o abalo que sofreu justamente quando começava a exercer o jornalismo como profissão :

-“A descrença se instalou em mim. Quando fui escalado pelo jornal para fazer a cobertura do Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, eu me lembro de ter feito a Dom Hélder Câmara um desafio para que ele restabelecesse a minha fé. Porque a perda da fé é a maior perda que alguém pode ter. Quando alguém se torna materialista, renuncia a toda metafísica. Passa a descrer totalmente em outra vida, o que é um tremendo empobrecimento. Repito : é a pior perda. Mas, quem começa a pensar começa também a destruir dogmas. Nada atrapalha tanto a fé quanto os dogmas religiosos. Um dia, dogmas como a ascensão de Jesus Cristo ou a assunção da Virgem começam a incomodar, porque são de uma impossibilidade absoluta. Tornam-se absurdos. É impossível alguém ascender aos céus fisicamente. Não há o menor cabimento.  Quando alguém é obrigado a crer em dogmas como esses, começa a se sentir incomodado.  A partir daí,o que é que se faz ? Passa-se a reler e a rever toda a História. Porque a vida é uma coletânea de histórias. Quando se começa a raciocinar -em termos lógicos- sobre as histórias que fundamentam as religiões, vê-se que todas elas podem ser revistas de uma maneira objetiva – jornalística,  até. Todos os dogmas caem.  A perda da fé é um sentimento que afeta –e muito – a vida de quem o experimenta. Passei por esta experiência quando estava começando no jornalismo. Vivi uma transição. Comecei a ler, a alimentar dúvidas. Vim de uma família extremamente católica e praticante. Minha mãe foi à missa até morrer. Eu ia à missa quase todo dia, às cinco horas da manhã, com a minha avó, na Igreja de Santo  Afonso. A perda da fé não estava ligada a um eventual rompimento com a família. Porque eu não via na minha família nenhum fator negativo. Mas era, sim, uma família fechada e preconceituosa. Chegava a ser anti-semita. Passei a ter, depois, um sentimento oposto a esse anti-semitismo, não como represália ou como vingança contra a família, mas como conseqüência do fato de que, quando se descobre que se foi enganado na infância, passa-se a buscar o outro lado. Há quem veja a perda da fé como uma conquista. Eu vejo como o que ela realmente é : uma perda. Por quê  ? Porque a perda da fé estreita  o universo;reduz o sentido da vida `a terra;cria o sentimento de que tudo é uma vivência material que se encerra totalmente com a morte. Arthur Dapieve desenvolveu , numa crônica publicada no Globo, um raciocínio que achei brilhante : “Já estivemos mortos antes de termos nascido, eu não me lembro de nada, você também não, é tudo”. Ou seja : todos nós estivemos mortos por milhões e milhões de anos. Nossa existência é brevíssima. Somente o DNA permanece.  Quem crê na existência de vida eterna pode nem dar um sentido lógico a essa fé, mas encontra um consolo enorme”.

 “O que move os artistas e os criadores é o  impulso, o desejo de permanecer. Toda manifestação artística traz  um ardor,uma necessidade de exprimir o conflito do autor com o real. Desse choque, nasce o gênio – que  não se conforma com o que é real  no mundo. A essência da arte é essa. Eu – pelo contrário -  me conformo até bastante. Não estou em conflito. Não estou brigando com  minha pobre existência. A perenidade que vejo é a biológica. Fiz uma vez uma especulação. Um primo distante meu, Juliano Macedo Soares, estudou a ascendência de minha família. Lá estavam todos os ascendentes diretos da minha mãe – até o século XVI. Eu poderia até estender a pesquisa, no Livro do Tombo, em Lisboa. Fiz a regressão para deixar para meus filhos e netos. Somente até o século XVI, uma família – a minha – tem cinqüenta mil ascendentes diretos !  Se a multiplicação continuar a ser feita, onde é que o cálculo vai parar ? Dá bilhões !. Vai englobar a população da terra. O mais remoto negro da África equatorial, o mais distante esquimó, os chineses, os aborígenes, todos estão lá “.

 “Não cheguei a procurar uma base filosófica para a perda da minha fé. Mas bastava que se olhasse  para o progresso da ciência – que destruía dogmas e ia tornando absurdas crenças desenvolvidas pelo catolicismo, a religião em que fui criado. Não acredito que a  perda da fé aflija tanto a quem cresceu como fiel de outras religiões que não se vêem obrigadas a acreditar em coisas que hoje são tolas, como a ascensão de Cristo ou a assunção das Virgem. São tolices” .     

“Quem perde a fé, como eu, pode até ganhar racionalidade. Mas é uma racionalidade que vai se fechar comigo. Quando eu morrer, adeus. Não tenho nenhuma ilusão quanto ao que virá depois. O que sei com certeza é que a minha permanência já foi transmitida aos meus filhos e netos. Os genes é que ligam todos os homens – uns aos outros. É o que digo há anos em casa. Basta fazer a projeção matemática de nossa ascendência. Quem fizer essa conta – relativamente simples – verá que , ao fim desses vinte séculos da era cristã, terá um número de ascendentes que correspondente à população da Terra ! Em resumo : cada um de nós descende de todos. É ridículo, então, falar de raças entre os homens. Somos impregnados de todas as raças . O que muda é a proporção de cada uma em cada um de nós.  É claro que a hereditariedade imediata atua como uma força presente. Mas tudo, toda a história da terra pode ser lida no nosso DNA. É aí que se manifesta nossa perenidade. Quem se reproduz para continuar não é a espécie humana. É o gene. Então, o gene é que tem de continuar. Como ele continua  ? Através dos descendentes”.

“Tenho seis filhos: cinco do primeiro casamento – Lúcia, Patrícia, Márcia, Guilherme e Bruno – e um do segundo – Leonardo. Quero dizer o seguinte : qual é o sentido da vida ? Os filhos. Ponto final ”.



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