Cena brasileira : preso, com a cabeça raspada, Gilberto Gil recebe, na cela, um violão de um sargento. Em seguida, uma convocação: quer fazer um show para a tropa ?
Um dos lugares-comuns mais renitentes sobre esta República Ensolarada é aquele que diz : “Isso só acontece no Brasil !”.
O pior é que é verdade. Há cenas que, por todas as razões, dificilmente seriam testemunhadas em outras paragens. Um exemplo, entre centenas : em que outro país um cantor popular - encarcerado num quartel no auge de uma onda de prisões promovida por uma ditadura militar - receberia um violão emprestado por um sargento e seria convocado pelo comandante da guarda para se apresentar para a tropa, numa noite, depois do jantar ? Um detalhe : dias antes de receber o violão e a convocação para o show improvisado, o cantor, cabeludo, tivera a cabeça raspada – um constrangimento que lhe provocara uma incômoda sensação de “humilhação”. Em questão de dias, ele sentiu na pele essa mistura brasileira de brutalidade ( ter a cabeleira raspada ) e delicadeza (receber de um sargento a oferta de um violão).
As cenas ocorreram com Gilberto Gil. Preso em São Paulo, dias depois da decretação ao célebre Ato Institucional Número 5 – que dava poderes totais e absolutos ao regime militar -, Gilberto Gil foi trazido de carro para o Rio de Janeiro, onde passou por três quartéis. O companheiro de desventura de Gilberto Gil neste périplo iniciado em São Paulo chamava-se Caetano Veloso. Do Rio, os dois seguiram para um período de prisão domiciliar em Salvador. Seis meses depois da prisão em São Paulo, levantaram vôo para um exílio de dois anos e meio em Londres. Voltaram ao Brasil no início de 1972.
Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram longos depoimentos para o nosso documentário “CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO” – que será exibido em três episódios de 50 minutos, terça,quarta e quinta desta semana, às dez da noite, no Canal Brasil. Produzido pela Multipress Digital – de Jorge Mansur – para o Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO traz também depoimentos de Jards Macalé e Jorge Mautner, além de uma participação especialíssima de Paulo César Peréio.
Eis um trecho do depoimento de Gilberto Gil, um retrato de como, no Brasil, as chamadas “relações pessoais” terminam se sobrepondo até a barreiras impostas entre carcereiros e prisioneiros numa ditadura militar….
CENA 1 : A “sensação de humilhação” : militares cortam os cabelos de Gilberto Gil e Caetano Veloso no quartel
Gilberto Gil : “Ficamos em celas coletivas. Caetano,numa; eu, em outra, em que estavam Antônio Callado, Ferreira Gullar, Perfeito Fortuna. Num dia desses, fomos chamados ao pátio do quartel onde, diante de um pequeno grupo de soldados e oficiais, nos rasparam as cabeças – a de Caetano e a minha. Tínhamos cabelos grandes naquela época. Era um dos símbolos da rebeldia juvenil. Fizeram questão de raspar nossas cabeças. Diziam algo como ”Vamos cortar esses cabelos ! Cabelo comprido….coisa horrorosa!”. Cortaram o de Caetano. Depois, cortaram o meu. Nós estávamos, ali, muito abatidos moralmente. Ao retornar à cela, ainda sob aquela sensação de humilhação, eu me lembro de Antônio Callado me dizendo : “Não se abata ! Você é um menino maravilhoso ! Cortar os cabelos de vocês não significa nada ! Não vão conseguir nada fazendo isso !”. Tentava nos dar uma injeção de ânimo. Antônio Callado foi o primeiro a se manifestar, mas os outros também, como Ferreira Gullar. Todos os outros nos confortaram e nos animaram muito naquele momento. Havia muita aflição, muita ansiedade em relação ao que pudesse nos acontecer :uma sensação permanente de sobressalto diante daquilo tudo. Eu não via como encontrar, em mim mesmo, energia para brigar ou para gritar ou para reclamar do fato”.
Cena 2 : um sargento oferece um violão a Gilberto Gil, dentro da cela. Em seguida, o comandante pergunta se Gil quer cantar à noite para a tropa reunida no pátio
Gilberto Gil: “Ali, na prisão, o sargento Juarez, um mulato muito refinado, muito cortês e muito sereno, numa conversa comigo, na cela, me perguntou se eu gostaria de ter um violão. Eu disse que gostaria, mas estranhei a existência da possibilidade. E ele: “Não! Eu trago um violão para você ! Tenho um violão em casa, muito simples, que posso trazer”. Dito e feito :ele me trouxe um violão – que ficou comigo na cela e com o qual eu tocava, cantava e fiz quatro músicas. Uma foi “Futurível”. A outra foi “Cérebro Eletrônico”. Fiz “Vitrines” – que também vim a gravar no disco que fiz logo que em seguida à saída da prisão. E uma quarta música – de que me esqueci completamente. Perdeu-se. Uma noite, me chamaram: o comandante da guarda me perguntou se eu gostaria de cantar para a tropa. Eu disse que sim. Tinham me visto com o violão ali. Permitiram,todos, que o violão ficasse comigo. O comandante reuniu a tropa depois do jantar, no pátio do quartel. E cantei várias canções, como “Domingo no Parque” – que havia sido premiada com o segundo lugar no festival de música. Era o meu carro-chefe. Cantei “Procissão” e outras canções do meu primeiro disco. Isso aconteceu depois de quase um mês de cárcere”.
PS: Duas ou três coisas sobre a realização do documentário CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO:
A quem interessar possa: bem ou mal, tento retomar, com CANÇÕES DO EXÍLIO, um caminho que abandonei lá atrás : o de possível documentarista. O locutor-que-vos-fala já é uma ruína cinquentenária. Vivo repetindo para mim mesmo os títulos daqueles editoriais clássicos do Correio da Manhã: “Chega!”, “Basta!”, “Fora!”. Cinco vezes ao dia, penso em apagar a luz do meu velho teatro mambembe, recolher as tralhas, devolver aos incautos o dinheiro da entrada, bater em retirada e ir morar num cubículo minimamente confortável na zona rural de Santa Maria da Boa Vista, cidade onde nunca estive, aliás, mas que elegeria como destino favorito, pelo belo nome. Quanto a todo o resto, dou por visto o espetáculo. Veredito definitivo: risível. A recíproca, eu sei, é verdadeira. Há uma síndrome que imagino comum em quem um dia resolveu sair de casa : depois de algum tempo, a gente não resiste à tentação de fazer a pergunta “fatal” : Deus do céu, o que diabos vim fazer aqui, no “estrangeiro” ? De qualquer maneira, como diz o lixo subliterário de autoajuda, “nunca é tarde” para retomadas. Decidi, então, nem que fosse como mera experiência, retomar o fio de uma meada interrompida. Fiz um documentário. Poderia ser um bom passatempo. Em um texto narrado por Paulo César Peréio – uma das vozes mais marcantes do Brasil – ,exponho, logo na primeira parte do primeiro episódio de CANÇÕES DO EXÍLIO, as dúvidas e vacilações que tive depois de gravar os depoimentos. Como usá-los ? O que fazer com tudo o que Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner contaram ? Resolvi correr o “risco” de dividir estas dúvidas com os possíveis espectadores . A exposição pública das dúvidas do documentarista pode até criar alguma estranheza em quem espera ouvir, logo no início de CANÇÕES DO EXÍLIO, a palavra do timaço de entrevistados. Mas vou logo avisando: depois que o narrador sai de cena, a palavra é passada, “radicalmente” , aos entrevistados. Ninguém interfere : nem o entrevistador. Desta vez, atuo atrás das câmeras. É minha opção favorita. Sempre foi. Estar diante de uma câmera é, para mim, um incômodo comparável ao de obturar um dente sem anestesia. Tenho horror. Teria imensa alegria se um dia recebesse uma ordem judicial que me obrigasse a manter uma distância de 500 metros de uma câmera: eis a minha visão do paraíso. Depois de ver e rever as gravações feitas com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner em 2010 , fiz uma opção radical : a de deixar que os entrevistados simplesmente falassem – sem interrupções, sem cortes desnecessários, sem concessões ao ritmo “frenético” e à ditadura do tempo na TV, em que um minuto é uma eternidade. Há falas de cerca de dez minutos. Por que não ? Por que cortá-las, mutilá-las, desossá-las, em nome de uma suposta agilidade ? Devo dizer que foi uma honra ter tido a chance de contar com Peréio como uma espécie de “alter ego”. Não se pense que esta ”divagação” sobre o que fazer com os depoimentos foi uma viagem em torno do próprio umbigo. ”Pas de tout !”. Pelo contrário. A exposição das dúvidas vem sempre acompanhada de informação jornalística. Exemplo : se digo que poderia reforçar o documentário com entrevistas tiradas do baú, apresento, por exemplo, o áudio da gravação que fiz com Caetano Veloso, no Recife, no remotíssimo ano de 1973. Eu tinha 16 anos de idade. Mr. Veloso tinha voltado do exílio havia pouco tempo. Tratei de guardar a fita cassete. Preservada por todo este tempo, a gravação virou relíquia. Ganhou status de documento jornalístico: o que um dos mais importantes nomes da Geléia Geral Brasileira dizia, ali, no começo dos anos setenta ? Feitas as contas, tudo o que CANÇÕES DO EXÍLIO quer é fazer algo que, tenho certeza, pode ter alguma utilidade : produzir memória. Vivo dizendo que produzir memória é uma das (poucas) coisas realmente úteis que o jornalismo pode fazer. Se fosse escolher entre Cinema e Jornalismo, aliás, eu escolheria Cinema, sem vacilar. Já tinha escolhido, lá atrás. Quando era “inocente, puro e besta”, como na letra de Raul Seixas, no Recife dos anos setenta, fazia meus filmecos em Super-8. Mas terminei exercendo o Jornalismo, por mil razões. É sempre assim: a correnteza vai nos arrastando. C´est la vie. Mas – de vez em quando - é possível dar umas braçadas para tentar evitar o precipício – de resto, inevitável. Independentemente de qualidade, CANÇÕES DO EXÍLIO é uma tentativa bem pessoal de fazer as duas coisas, juntar as duas pontas: o que é documentário, afinal , se não Jornalismo para Cinema ? A disponibilidade, o talento e a dedicação de Jorge Mansur, ex-editor de telejornalismo que resolveu investir suas energias numa produtora, abriram o caminho para que a ideia do documentário se materializasse. Posso garantir aos senhores jurados que os depoimentos, reunidos, formam um documento precioso sobre os chamados “anos de chumbo”: a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois grandes nomes que, com o Tropicalismo, tinham incendiado o cenário da música brasileira. Lá estão: Caetano Veloso descrevendo com detalhes o interrogatório, gravado, a que foi submetido assim que desembarcou no Brasil para uma visita negociada : os militares queriam, entre outras coisas, que ele compusesse uma música em louvor à rodovia Transamazônica; Jorge Mautner explicando como e por que defendia, no exílio londrino, a ideia de que a novidade planetária não viria da Europa: viria do Brasil; Jards Macalé revivendo a sensação inesquecível que teve ao desembarcar de volta ao Brasil, no auge do verão de 1972, depois de amargar invernos londrinos: era a tal “labareda que lambeu tudo”; Gilberto Gil revelando o sofrimento que teve, pouco depois da volta ao Brasil, para compor, com Chico Buarque, uma música que jamais conseguiu gravar: a bela “Cálice”. A frase “Pai, afasta de mim este cálice/de vinho tinto de sangue” foi escrita numa sexta-feira da paixão. Atormentado com a dificuldade que estava encontrando para demonstrar solidariedade a Chico Buarque, vítima das tesouras da censura, Gil se lembrou do sofrimento do Cristo. Não por acaso, a música foi proibida. Só foi gravada, pelo próprio Chico Buarque, anos depois, ao lado de Milton Nascimento. Em resumo : ao fazer CANÇÕES DO EXÍLIO, constatei, pela enésima vez, que não há assunto esgotado. É bom saber que o que interessa foi feito : CANÇÕES DO EXÍLIO produziu memória. A palavra de ordem, então, bem que poderia ser : pé na estrada, câmera na mão & luz na tela. Ponto. Faz bem à saúde correr riscos, apostar no incerto. Depois de exibido em três episódios de 50 minutos no Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO ganhará uma versão “cinematográfica”. Deve percorrer o chamado “circuito de festivais”. Já foi inscrito no Cine PE, o festival que reúne produções de todo o país em Pernambuco. Se for selecionado, terá, no Recife, a primeira exibição em tela grande. Missão cumprida. Próximo passatempo, por favor.
6 fevereiro, 2011 as 18:44
O Geraldo Azevedo passou por provocação (ou humilhação) semelhante…
6 fevereiro, 2011 as 19:01
Me admira o maranhense Ferreira Gullar, vítima da ditadura, que simpatiza e defende, hoje, José Sarney, o qual apoiou e teve laços estreitos com o regime militar.
O tal poeta precisa mesmo disso?
Será que seu passado não é grande o suficiente, a ponto de torná-lo autônomo e independente de qualquer mandonismo regional?
Pobre Maranhão, pobre de sua gente.
Sobre o documentário, estou ansioso para vê-lo. E sobre o fato do Gil fazer um show, um luau para a tropa, de fato a ARTE está acima de qualquer sistema. A essência humana precisa, ainda mais nesses períodos delicados.
Abraços Geneton e Parabens!
6 fevereiro, 2011 as 19:06
Muitos militares não eram a favor da ditatura, principalmente os praças. Encontravam e encontram nas forças armadas uma forma de ascensão social. Conheço militares que colaboravam, no anonimato, com dinheiro para as pixações de manifestações contra a ditadura. Nas forças armadas tem de tudo. São seres humanos normais.
6 fevereiro, 2011 as 21:16
Quanto mais conheço Gilberto Gil mais admiro a atitude artística e o caráter dele.
Uma vez, há uns 20 anos, fui assistir um show de Gil em Campina Grande-PB, no Spazzio, o maior espaço privado da cidade.
Era véspera de São João e o show concorria no horário com a abertura oficial dos festejos organizados pelo município. Resultado: só compareceram para o show de Gil umas 50 pessoas. Achei até que o show seria cancelado.
Mas, que nada. Ele subiu ao palco e deu um show como se estivesse diante de um Maracanã lotado.
Ainda hoje me emociono com a atitude profissional e artística dele naquela noite, diante daqueles 50 privilegiados, dos quais tive o prazer de ser um deles.
Não me espanta que a arte dele brilhe em qualquer lugar. Até numa noite escura da ditadura, dentro da prisão.
Gil, aquele abraço.
6 fevereiro, 2011 as 21:57
Mais um exemplo de como no Brasil houve uma “ditabranda”.
Com o tempo mais relatos como esse vão aparecer, desmitificar esse periodo de nossa história.
6 fevereiro, 2011 as 23:01
De fato, não sei bem o que dizer ao ler isso.
Por um lado, poderia dizer que é mais uma prova irrefutável da “esculhambação” que o Brasil sempre foi. Por outro, diria que o “chão de fábrica” do exército era formado por homens simples e, no fundo, de bom coração, que apenas seguiam ordens de cabeças malignas. Poderia ainda dizer que a arte está acima de qualquer ideologia.
Enfim, o que eu digo é só o seguinte: eis aí uma baita história.
7 fevereiro, 2011 as 10:43
Acredito que a postura nosso ex-ministro esteja acima de qualquer regime. O mesmo já não posso pensar de alguns que apesar de oprimidos pela ditadura, insistem em apoiar os Fidéis da vida.
20 fevereiro, 2011 as 15:09
PREZADO GENETON, VI O SEU DOCUMENTÁRIO FEITO EM PARCERIA COM O MANSUR NO CANAL BRASIL. POR MEIO DE UMA REPORTAGEM DO GLOBO TOMEI CONHECIMENTO DO TRABALHO E NÃO ME ARREPENDI DE TER GRAVADO NA SKY. SENSACIONAL, IMPERDÍVEL E TOCANTE, ESPECIALMENTE OS DEPOIMENTOS DE GIL. AS MENCÕES RECORRENTES À GLAUBER ROCHA E VIOLETA ARRAES SÃO ÓTIMAS E OS DEPOIMENTOS DE MACALÉ, MAUTNER, CAETANO E GIL SÃO MARAVILHOSOS PELA RIQUEZA DE DETALHES. PASSEI A RESPEITAR MUITO MAIS ESSES ÍCONES DE NOSSA MÚSICA QUANDO TIVE OPORTUNIDADE DE CONHECER O LADO HUMANO DELES NUM MOMENTO NEGRO E NEFASTO DE NOSSA HISTÓRIA.
O ENCERRAMENTO DO DOCUMENTÁRIO COM O DEPOIMENTO DE GIL SOBRE A CRIACÃO DE CÁLICE COM CHICO BUARQUE FOI EMOCIONANTE. A VIDA DELES ENTRELACADA COM A SUA CARREIRA DE JORNALISTA FOI UM FIO CONDUTOR MUITO BEM ALINHAVADO DO DOCUMENTÁRIO.
SE VCS NÃO VIRAM RECOMENDO…VEJAM
PARABÉNS GENETON. TALVEZ TENHA ME CONVENCIDO QUE VC É MAIS UM CINEASTA DO QUE UM JORNALISTA…
ABS MAGALHA