O presidente do Brasil faz, no pé do ouvido do secretário de imprensa, uma pergunta inesperada numa solenidade no Palácio do Eliseu : “Você já viu mulher mais feia na vida?”

sáb, 26/02/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cochicha alguma coisa no ouvido do secretário de imprensa, Ricardo Kotscho, durante uma solenidade no Palácio do Eliseu, em Paris.  Os jornalistas brasileiros pressionam o secretário de imprensa: querem porque querem saber o que o presidente brasileiro teria confidenciado. Por acaso, alguma revelação sobre os diálogos com o então presidente da França, Jacques Chirac ? Quem sabe, algum desabafo sobre a agenda sobrecarregada ?  O secretário da imprensa desconversa, inventa uma desculpa, não diz o que ouviu . Se dissesse, certamente arrancaria risadas. Depois de ter apontado para uma madame que exibia um esplendoroso chapéu verde na cerimônia oficial no Palácio, o presidente Lula na verdade tinha dito o seguinte, ao pé do ouvido de Ricardo Kotscho:  “Você já viu mulher mais feia na vida ?”.

É Lula em “estado puro” : capaz de fazer, numa solenidade no palácio presidencial francês, um comentário que – verdade seja diga – qualquer um teria a tentação de fazer….Excepcionalmente, Ricardo Kotscho estava ali não como repórter, mas como secretário de imprensa de um presidente que, ao final do mandato, viria a se revelar como um fenômeno imbatível de popularidade. O repórter travestido de secretário teve de guardar o que ouviu, para não criar eventuais constrangimentos.  Agruras do cargo. Mas o “estado natural” de Kotscho, em qualquer situação, é o de repórter. Sempre foi assim. Passou dois anos como secretário de imprensa, mas terminou pedindo as contas e dizendo bye,bye, Brasília. Preferiu pegar o bloco de anotações e circular novamente pelas ruas e estradas do Brasil, em busca de personagens e histórias que mereçam ser contadas.  Voltou a atuar, nas páginas da revista Brasileiros e no blog Balaio do Kotscho.

Aos não iniciados no zoológico das redações, esclareça-se que a  rua é o único território em que um repórter de verdade se sente em casa. Pode parecer contraditório, mas é assim: o repórter só se sente em casa quando vai para a rua. São as loucuras da profissão. Os dois – o repórter e o sindicalista – tinham se conhecido na segunda metade dos anos setenta, quando o metalúrgico Lula mobilizava os “companheiros e companheiras” por melhores condições de trabalho. Ficaram amigos. Quando finalmente conquistou o direito de subir a rampa do Palácio do Planalto com a faixa de presidente no peito,  em 2002, depois de três tentativas frustradas, em 1989, 1994 e 1998, Lula tratou de convocar o repórter Ricardo Kotscho para o posto de secretário de imprensa. Deve ter sido uma experiência rica.

De volta à planície ( literalmente), Kotscho voltou a atuar como repórter e como blogueiro. É o que nunca deixou de ser. Quero declarar aos senhores jurados que considero elogiável a postura de jornalistas que, depois de anos e anos e anos de estrada, mantêm intocado, em algum ponto de suas entranhas, o DNA da reportagem : são seres que poderiam, perfeita e legitimamente, estar aboletados atrás de uma mesa de redação distribuindo ordens ou dando canetadas. Mas, não. Preferem a poeira das ruas. Joel Silveira era assim: octogenário, dizia, bem humorado, que, se houvesse justiça no mundo, os nomes dos repórteres deveriam aparecer antes do nome dos proprietários no expediente dos jornais. 

Acaba de chegar às livrarias uma nova investida editorial de Kotscho:  publicado com esmero pela Editora Escrita Fina, o livro “Vida que Segue” reúne textos que ele produziu originalmente para o blog.  Ao contrário do que podem supor espíritos equivocados, nem sempre o que se publica na Internet se dissolve no ar depois de quinze minutos. Textos nascidos no Planeta Internet podem migrar sem qualquer solavanco para as páginas de um livro. Eis um entre tantos outros exemplos.   

( A propósito:  Ricardo Kotscho é, também, um dos personagens de um livro-documento que já chegou às livrarias: “No Planalto,com a Imprensa”, uma publicação conjunta da Editora Massangana e da Secretaria da Imprensa da Presidência da República. Em dois volumes, “No Planalto, com a Imprensa” (o título é pouco inspirado, mas o conteúdo é valioso)  traz depoimentos de porta-vozes e de secretários de imprensa da presidência da República desde os tempos de JK até os de Lula. São cenas de bastidores, histórias interessantes, registros inestimáveis. O locutor-que-vos-fala voltará ao assunto. O fato de nossos jornais quase não terem se ocupado do lançamento funciona como o enésimo exemplo de que, todo dia, em todas as redações do planeta, há, com toda certeza, um editor entediado jogando no lixo histórias interessantes. Além de entrevistado para a série de depoimentos, Kotscho já tinha publicado, no livro  “Do golpe ao planalto – uma vida de repórter”(Companhia das Letras), parte de suas memórias como secretário de imprensa). 

O DOSSIÊ GERAL pergunta, Ricardo Kotscho responde:

Qual  são a primeira virtude e o pecado capital de um repórter ?

Kotscho: “Virtude: colocar-se no lugar do leitor e não ter vergonha de fazer todas as perguntas necessárias para contar uma boa história.  Pecado capital: a soberba, a arrogância, o ar de doutor sabe tudo, grande formador de opinião, mais importante do que o entrevistado, o fato e a notícia, um comportamento muito comum hoje em dia”.

De todos os personagens – nacionais ou internacionais – que você já ouviu, qual decepcionou você quando “visto de perto” ?

Kotscho: “O grande Leonel Brizola, de quem ficaria amigo, ao entrevistá-lo pela primeira vez num encontro da internacional socialista, em Hamburgo, fins dos anos 1970, quando eu era correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha. Ele inverteu os papéis e começou a me entrevistar sobre o cenário político internacional. Logo eu entenderia o motivo: Brizola ficou tanto tempo longe do mundo, criando ovelhas no interior do Uruguai, que queria se informar melhor sobre o que estava acontecendo no mundo, principalmente no Brasil, antes de voltar a dar entrevistas”.

O fato de você – por um período relativamente breve -  ter visto o poder “de dentro” desperta curiosidade sobre o que acontece nos bastidores. Qual a cena “impublicável” que você testemunhou no Palácio,não poderia divulgar na época mas hoje pode ?

Kotscho:  ”Se é “impublicável”, não posso te contar, por uma questão de ética e lealdade, já que eu ocupava um cargo de confiança junto ao presidente da república no Palácio do Planalto. Uma delas foi bem no início do governo, na primeira viagem do presidente Lula à Europa. Durante a conferência de imprensa ao lado Jacques Chirac, no Eliseu , ele me chamou para perguntar se eu tinha visto uma mulher de chapéu verde no fundo do salão. E me perguntou no ouvido: “Você já viu mulher mais feia na tua vida?”. Depois, tive que aguentar os coleguinhas:  todos queriam saber o que o presidente tinha me falado…

Outra que não me esqueço aconteceu no final de um encontro de presidentes no México. Lula ficou um tempão conversando com George Bush no fundo do salão, só os dois, sem intérprete. Ao voltarmos para o avião, perguntei ao presidente em que língua eles falavam e ele me respondeu se eu não sabia que o Bush era do Texas, só conhecia o México antes de ser presidente e, portanto, eles se entendiam em portunhol. E por que riam tanto? “Ah, isto eu não posso te dizer porque são segredos de chefes de Estado…”

Que pergunta você jamais faria ao ex-presidente Lula ?

Kotscho: “Como repórter e amigo, sempre fiz as perguntas que queria ao presidente Lula, sem nenhum problema ou constrangimento. Mas sei que ele não gostaria de ouvir perguntas sobre as calúnias que circulam sem parar na internet sobre a sua vida pessoal e a sua família, para desconstruir a imagem do melhor Presidente da República que o nosso país já teve”.

Quando Lula perguntou a você se você gostaria de um dia ser presidente, você respondeu que não , porque esta é “a pior profissão do mundo”. O que ele disse ao ouvir esta resposta  ?

Kotscho: “Não disse nada. Deu uma gargalhada e fez cara de quem diz: “Coitado, este rapaz não sabe o que é bom…” Pelo jeito, ele gostava muito de ser Presidente da República”

PS :  Faz tempo: ali pela metade dos anos setenta, o locutor-que-voz-fala era um jovem repórter da sucursal Recife do Estado de S.Paulo. O país vivia uma época de grandes expectativas políticas. Os exilados estavam desembarcando de volta ao Brasil. Miguel Arraes foi recebido com uma festa épica no Recife. Ulysses Guimarães transitava por Pernambuco em caravanas em que pedia redemocratização, já. Tive a chance de fazer a cobertura da primeira visita que o líder sindical emergente Lula fez à terra natal, Pernambuco, depois de ter ficado “famoso” em São Paulo. Hoje,as palavras daquele líder sindical parecem relíquias improváveis: incrivelmente, Lula dizia que não tinha “vocação política”. Já relatei, aqui, este encontro com o metalúrgico que viraria presidente:

https://g1.globo.com/platb/geneton/2009/09/29/o-dia-em-que-o-metalurgico-e-ex-tintureiro-luiz-inacio-confessou-que-nao-tinha-vocacao-politica/

Caetano revela: militares gravaram interrogatório a que foi submetido no Rio de Janeiro e pergunta: “Onde estarão estas fitas ?” E mais: o dia em que Chico Anysio se ofereceu para ajudar Caetano a voltar do exílio

ter, 08/02/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Pouco depois de chegar a Londres, para um exílio que duraria dois anos e meio, Caetano Veloso teve uma surpresa : recebeu uma carta em que o humorista Chico Anysio se oferecia para intermediar um possível retorno  ao Brasil.  O gesto  solidário de Chico Anysio comoveu Caetano – que tinha sido preso em São Paulo, juntamente com Gilberto Gil, duas semanas depois da decretação do AI-5, o ato que dava poderes absolutos ao regime militar. Trazidos ao Rio de carro, os dois passaram por três quartéis, até viajarem para Salvador, onde passaram seis meses sob regime de prisão domicilar. Em seguida, em meados de 1969, receberam autorização para sair do Brasil. Destino: Londres. Voltaram ao Brasil no início de 1972.

Diz Caetano:

“Chico Anysio me escreveu uma carta bem cedo, logo que eu tinha chegado a Londres. Respondi: “Chico, agradeço muito. Não há nada que eu queira mais do que voltar ao Brasil. Mas não quero dialogar com essas autoridades que trataram do jeito que me trataram….”. É a primeira vez que estou contando assim. Mas aconteceu. As cartas provavelmente estarão perdidas”.

A referência a Chico Anysio é parte do longo depoimento que Caetano Veloso gravou para o nosso documentário “CANÇÕES DO EXÍLIO: A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO” ( a ser exibido nesta terça, quarta e quinta, em três episódios de 50 minutos, no Canal Brasil. A negociação para a volta ao Brasil é parte do segundo episódio. Além de Caetano Veloso, o documentário, produzido pela Multipress Digital para o Canal Brasil, traz depoimentos de Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner – e participações especiais de Paulo César Peréio e Lorena da Silva).

Caetano Veloso,em CANÇÕES DO EXÍLIO: onde estão as fitas do interrogatório ?

Cerca de um ano depois da oferta de Chico Anysio, Caetano Veloso recebeu, por fim, uma autorização para uma viagem ao Brasil: iria comparecer à comemoração dos quarenta anos de casamento dos pais, na Bahia. Maria Bethânia, irmã de Caetano Veloso, se encarregou de fazer os contatos, numa operação que incluiu o empresário Benil Santos e – de novo – o próprio Chico Anysio. ”Bethânia estava trabalhando com o empresário Benil Santos – que trabalhava, também, com Chico Anysio”, diz Caetano, no documentário. “Chico se dispôs, através de Benil Santos, a ajudar Bethânia. De fato, ele ajudou Benil a ajudar Bethânia a conseguir”

A autorização foi dada para que Caetano Veloso permanecesse um mês em Salvador. Mas, ao desembarcar no Rio, uma surpresa esperava Caetano Veloso, ainda na pista do aeroporto :

“Vim com Dedé ( n: mulher de Caetano na época ). Quando chegamos ao Galeão, a gente desceu aquela escadinha. Já no pé da escada, tinha umFusca : me pegaram e dali mesmo saíram comigo. Levaram-se para um apartamento na avenida Presidente Vargas (centro do Rio) e, ali, me interrogaram. Estavam com um gravador de rolo. Onde estarão estas fitas hoje ? Gravaram tudo o que estavam perguntando e todas as minhas respostas. Isso durou seis horas. Queriam que eu fizesse uma canção louvando a Transamazônica. Disseram: “Alguns colegas seus estão colaborando conosco, fazendo músicas”… Pensei: “Voltei ao Brasil para ser preso de novo! Quase morro”.

As exigências apresentadas a Caetano Veloso: neste mês de permanência no Brasil, ele não deveria cortar o cabelo ou tirar a barba, para dar uma aparência de “normalidade”; não deveria sair da cidade de Salvador; ficaria sob a vigilância permanente de dois agentes; deveria fazer duas apresentações na TV.   As exigências foram cumpridas.   

Comando Militar do Leste informa : não há registros do “evento citado”

PS: Tentei, junto ao atual Comando Militar do Leste, obter alguma informação sobre o paradeiro das tais fitas que registraram o interrogatório de Caetano. A resposta que me foi enviada é um primor de concisão :  “Prezado jornalista: Em atenção à sua solicitação informamos que: não foram encontrados registros sobre o evento citado em sua mensagem”.

Fica a dúvida no ar: as fitas foram preservadas ? Algum oficial teve o cuidado de guardá-las ? Como o interrogatório não foi “oficial” – até porque não havia uma acvusação formal contra Caetano Veloso -, é improvável que um dia haja uma palavra oficial sobre as gravações. Mas, como tanta coisa fica nas mãos do acaso, pode ser que um dia, no fundo de uma gaveta, na prateleira empoeirada de uma estante ou, quem sabe, na casa de um militar da reserva, estas fitas apareçam. Com certeza, seriam um documento precioso sobre aqueles tempos conturbados : uma época em que um compositor popular, tido como ameaça  ao bem estar da República, era submetido a um interrogatório  que teve momentos de teatro do absurdo. Ou alguém imaginaria que, sob coação, o compositor fosse criar um hino de louvação à rodovia Transamazônica, um dos símbolos do chamado “Brasil Grande”  ?

Cena brasileira : preso, com a cabeça raspada, Gilberto Gil recebe, na cela, um violão de um sargento. Em seguida, uma convocação: quer fazer um show para a tropa ?

dom, 06/02/11
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Um dos lugares-comuns mais renitentes sobre esta República Ensolarada é aquele que diz : “Isso só acontece no Brasil !”.

O pior é que é verdade. Há cenas que, por todas as razões, dificilmente seriam testemunhadas em outras paragens. Um exemplo, entre centenas : em que outro país um cantor popular -  encarcerado num quartel no auge de uma onda de prisões promovida por uma ditadura militar -   receberia  um violão emprestado por um sargento e seria convocado pelo comandante da guarda para se apresentar para a tropa, numa noite, depois do jantar ?   Um detalhe : dias antes de receber o violão e a convocação para o show improvisado, o cantor, cabeludo, tivera a cabeça raspada – um constrangimento que lhe provocara uma incômoda sensação de “humilhação”. Em questão de dias, ele sentiu na pele essa mistura brasileira de brutalidade ( ter a cabeleira raspada ) e delicadeza (receber de um sargento  a oferta de um violão).

As cenas ocorreram com Gilberto Gil. Preso em São Paulo, dias depois da decretação ao célebre Ato Institucional Número 5 – que dava poderes totais e absolutos ao regime militar -, Gilberto Gil foi trazido de carro para o Rio de Janeiro, onde passou por três quartéis. O companheiro de desventura de Gilberto Gil neste périplo iniciado em São Paulo chamava-se Caetano Veloso. Do Rio, os dois seguiram para um período de prisão domiciliar em Salvador. Seis meses depois da prisão em São Paulo, levantaram vôo para um exílio de dois anos e meio em Londres. Voltaram ao Brasil no início de 1972.

Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram longos depoimentos para o nosso documentário “CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO” – que será exibido em três episódios de 50 minutos, terça,quarta e quinta desta semana, às dez da noite, no Canal Brasil.   Produzido pela Multipress Digital – de Jorge Mansur –  para o Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO traz também depoimentos de Jards Macalé e Jorge Mautner, além de uma participação especialíssima de Paulo César Peréio.  

Eis um trecho do depoimento de Gilberto Gil, um retrato de como, no Brasil, as chamadas “relações pessoais” terminam se sobrepondo até a barreiras impostas entre carcereiros e prisioneiros numa ditadura militar….

CENA 1 : A “sensação de humilhação” : militares cortam os cabelos de Gilberto Gil e Caetano Veloso no quartel

Gilberto Gil  : “Ficamos em celas coletivas. Caetano,numa; eu, em outra, em que estavam Antônio Callado, Ferreira Gullar, Perfeito Fortuna. Num dia desses, fomos chamados ao pátio do quartel onde, diante de um pequeno grupo de soldados e oficiais, nos rasparam as cabeças – a de Caetano e a minha. Tínhamos cabelos grandes naquela época. Era um dos símbolos da rebeldia juvenil. Fizeram questão de raspar nossas cabeças. Diziam algo como  ”Vamos cortar esses cabelos ! Cabelo comprido….coisa horrorosa!”.  Cortaram o de Caetano. Depois, cortaram o meu. Nós estávamos, ali, muito abatidos moralmente. Ao retornar à cela, ainda sob aquela sensação de humilhação, eu me lembro de Antônio Callado me dizendo : “Não se abata ! Você é um menino maravilhoso ! Cortar os cabelos de vocês não significa nada ! Não vão conseguir nada fazendo isso !”.   Tentava nos dar uma injeção de ânimo. Antônio Callado foi o primeiro a se manifestar, mas os outros também, como Ferreira Gullar. Todos os outros nos confortaram e nos animaram muito naquele momento. Havia muita aflição, muita ansiedade em relação ao que pudesse nos acontecer  :uma sensação permanente de sobressalto diante daquilo tudo. Eu não via como encontrar, em mim mesmo, energia para brigar ou para gritar ou para reclamar do fato”.

Cena 2 : um sargento oferece um violão a Gilberto Gil, dentro da cela. Em seguida, o comandante pergunta se Gil quer cantar à noite para a tropa reunida no pátio

Gilberto Gil:  “Ali, na prisão, o sargento Juarez, um mulato muito refinado, muito cortês e muito sereno, numa conversa comigo, na cela, me perguntou se eu gostaria de ter um violão. Eu disse que gostaria, mas estranhei a existência da possibilidade. E ele: “Não! Eu trago um violão para você ! Tenho um violão em casa, muito simples, que posso trazer”.  Dito e feito :ele me trouxe um violão – que ficou comigo na cela e com o qual eu tocava, cantava e fiz quatro músicas. Uma foi “Futurível”. A outra foi  “Cérebro Eletrônico”. Fiz  “Vitrines” – que também vim a gravar no disco que fiz logo que em seguida à saída da prisão. E uma quarta música – de que me esqueci completamente. Perdeu-se. Uma noite, me chamaram: o comandante da guarda me perguntou se eu gostaria de cantar para a tropa. Eu disse que sim. Tinham me visto com o violão ali. Permitiram,todos, que o violão ficasse comigo. O comandante reuniu a tropa depois do jantar, no pátio do quartel. E cantei várias canções, como “Domingo no Parque” – que havia sido premiada com o segundo lugar no festival de música. Era o meu carro-chefe. Cantei “Procissão” e outras canções do meu primeiro disco. Isso aconteceu depois de quase um mês de cárcere”.

PS: Duas ou três coisas sobre a realização do documentário CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO:  

A quem interessar possa: bem ou mal, tento retomar, com CANÇÕES DO EXÍLIO, um caminho que abandonei lá atrás : o de possível documentarista. O locutor-que-vos-fala já é uma ruína cinquentenária. Vivo repetindo para mim mesmo os títulos daqueles editoriais clássicos do Correio da Manhã: “Chega!”, “Basta!”, “Fora!”. Cinco vezes ao dia, penso em apagar a luz do meu velho teatro mambembe, recolher as tralhas, devolver aos incautos o dinheiro da entrada, bater em retirada e ir morar num cubículo minimamente confortável na zona rural de Santa Maria da Boa Vista, cidade onde nunca estive, aliás, mas que elegeria como destino favorito, pelo belo nome.  Quanto a todo o resto, dou por visto o espetáculo. Veredito definitivo: risível. A recíproca, eu sei, é verdadeira.  Há uma síndrome que imagino comum em quem um dia resolveu sair de casa : depois de algum tempo, a gente não resiste à tentação de fazer a pergunta “fatal” :  Deus do céu, o que diabos vim fazer aqui, no “estrangeiro”  ?  De qualquer maneira, como diz o lixo subliterário de autoajuda, “nunca é tarde” para retomadas.  Decidi, então, nem que fosse como mera experiência, retomar o fio de uma meada interrompida. Fiz um documentário. Poderia ser um bom passatempo. Em um texto narrado por Paulo César Peréio – uma das vozes mais marcantes do Brasil – ,exponho, logo na primeira parte do primeiro episódio de CANÇÕES DO EXÍLIO, as dúvidas e vacilações que tive depois de gravar os depoimentos. Como usá-los ?  O que fazer com tudo o que Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner contaram ? Resolvi correr o “risco” de dividir estas dúvidas com os possíveis espectadores . A exposição pública das dúvidas do documentarista pode até criar alguma estranheza em quem espera ouvir, logo no início de CANÇÕES DO EXÍLIO, a palavra do timaço de entrevistados. Mas vou logo avisando: depois que o narrador sai de cena, a palavra é passada, “radicalmente” , aos entrevistados. Ninguém interfere : nem o entrevistador. Desta vez, atuo  atrás das câmeras. É minha opção favorita. Sempre foi. Estar diante de uma câmera é, para mim, um incômodo comparável ao de obturar um dente sem anestesia. Tenho horror. Teria imensa alegria se um dia recebesse uma ordem judicial que me obrigasse  a manter uma distância de 500 metros de uma câmera: eis a minha visão do paraíso. Depois de ver e rever as gravações feitas com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner em 2010 , fiz uma opção radical : a de deixar que os entrevistados simplesmente  falassem – sem interrupções, sem cortes desnecessários, sem concessões ao ritmo “frenético” e à ditadura do tempo na  TV, em que um minuto é uma eternidade. Há falas de cerca de dez minutos. Por que não ?  Por que cortá-las, mutilá-las, desossá-las, em nome de uma suposta agilidade ?  Devo dizer que foi uma honra ter tido a chance de contar com Peréio como uma espécie de “alter ego”. Não se pense que esta ”divagação” sobre o que fazer com os depoimentos foi uma viagem em torno do próprio umbigo. ”Pas de tout !”. Pelo contrário. A exposição das dúvidas vem sempre acompanhada de informação jornalística. Exemplo : se digo que poderia reforçar o documentário com entrevistas tiradas do baú, apresento, por exemplo, o áudio da gravação que fiz com Caetano Veloso, no Recife, no remotíssimo ano de 1973. Eu tinha 16 anos de idade. Mr. Veloso tinha voltado do exílio havia pouco tempo.  Tratei de guardar a fita cassete. Preservada por todo este tempo, a gravação virou relíquia. Ganhou status de documento jornalístico: o que um dos mais importantes nomes da Geléia Geral Brasileira dizia, ali, no começo dos anos setenta ?  Feitas as contas, tudo o que CANÇÕES DO EXÍLIO quer é fazer algo que, tenho certeza, pode ter alguma utilidade :  produzir memória.  Vivo dizendo que produzir memória é uma das (poucas) coisas realmente úteis que o jornalismo pode fazer. Se fosse escolher entre Cinema e Jornalismo, aliás, eu escolheria Cinema, sem vacilar. Já tinha escolhido, lá atrás. Quando era “inocente, puro e besta”, como na letra de Raul Seixas, no Recife dos anos setenta, fazia meus filmecos em Super-8.  Mas terminei exercendo o Jornalismo, por mil razões. É sempre assim: a correnteza vai nos arrastando. C´est la vie. Mas – de vez em quando - é possível dar umas braçadas para tentar evitar o precipício – de resto, inevitável. Independentemente de qualidade, CANÇÕES DO EXÍLIO é uma tentativa bem pessoal de fazer as duas coisas, juntar as duas pontas:  o que é documentário, afinal , se não Jornalismo para Cinema ?  A disponibilidade, o talento e a dedicação de Jorge Mansur, ex-editor de telejornalismo que resolveu investir suas energias numa produtora,  abriram o caminho para que a ideia do documentário se materializasse. Posso garantir aos senhores jurados que os depoimentos, reunidos, formam um documento precioso sobre os chamados “anos de chumbo”: a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois grandes nomes que, com o Tropicalismo, tinham incendiado o cenário da música brasileira.  Lá estão:  Caetano Veloso descrevendo com detalhes o interrogatório, gravado, a que foi submetido assim que desembarcou no Brasil para uma visita negociada : os militares queriam, entre outras coisas, que ele compusesse uma música em louvor à rodovia Transamazônica; Jorge Mautner explicando como e por que defendia, no exílio londrino, a ideia de que a novidade planetária não viria da Europa: viria do Brasil; Jards Macalé revivendo a sensação inesquecível que teve ao desembarcar de volta ao Brasil, no auge do verão de 1972, depois de amargar  invernos londrinos: era a tal “labareda que lambeu tudo”;  Gilberto Gil revelando o sofrimento que teve, pouco depois da volta ao Brasil, para compor, com Chico Buarque, uma música que jamais conseguiu gravar: a bela “Cálice”. A frase “Pai, afasta de mim este cálice/de vinho tinto de sangue” foi escrita numa sexta-feira da paixão. Atormentado com a dificuldade que estava encontrando para demonstrar solidariedade a Chico Buarque, vítima das tesouras da censura, Gil se lembrou do sofrimento do Cristo. Não por acaso, a música foi proibida. Só foi gravada, pelo próprio Chico Buarque, anos depois,  ao lado de Milton Nascimento.  Em resumo : ao fazer CANÇÕES DO EXÍLIO, constatei, pela enésima vez, que não há assunto esgotado.  É bom saber que o que interessa foi feito : CANÇÕES DO EXÍLIO produziu memória.  A palavra de ordem, então, bem que poderia ser : pé na estrada, câmera na mão & luz na tela. Ponto. Faz bem à saúde correr riscos, apostar no incerto. Depois de exibido em três episódios de 50 minutos no Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO ganhará uma versão “cinematográfica”. Deve percorrer o chamado “circuito de festivais”.  Já foi inscrito no Cine PE, o festival que reúne produções de todo o país em Pernambuco. Se for selecionado, terá, no Recife, a primeira exibição em tela grande. Missão cumprida. Próximo passatempo, por favor.



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