Quando já não podia esconder que estava com AIDS, o ator Rock Hudson finalmente concordou em mandar um comunicado aos repórteres que batiam na porta do hospital em busca de notícias. Um texto, curto, foi redigido por um assessor. Hudson ouviu em silêncio. Autorizou a divulgação do comunicado com uma frase curta: “Podem dá-lo aos cães”.
A cena foi registrada na biografia de Hudson.
Ah, os cães : era assim que o astro Hudson via os repórteres.
Eu diria: o bicho tinha uma ponta de razão. Almas puras devem achar que jornalistas são uma matilha de caçadores de escândalos, detalhes sórdidos, tropeços, escorregões.
São, sim.
Diante deste tribunal imaginário, arrisco-me a fazer a seguinte declaração, baseada em anos & anos & anos de observação do zoológico que habito : os jornalistas que desenvolvem um faro especial para os detalhes mais incomuns, mais “escandalosos”, mais surpreendentes e mais esdrúxulos são, justamente, os melhores. Já os entediados que, diante de uma boa história, exibem a pálpebra semi-cerrada pelo tédio são, não por acaso, os mais burocratas, os mais cinzentos, os mais nocivos à profissão.
É o que notei desde que pus as patas pela primeira vez numa redação – faz séculos e séculos.
Sorry about that, crianças, mas é assim que caminha a humanidade.
Em qualquer lugar do planeta, a guerra surda entre estas duas facções provoca faíscas nas redações. É interminável o embate entre os derrubadores de matérias (aqueles que jogam um belo assunto no lixo sob o argumento de que “fulano de tal já deu a matéria…”, como se o público fosse formado por maníacos que passassem o dia comparando o que jornais,rádios,sites e tvs publicam…) e os levantadores ( os ingênuos que acreditam que existirá sempre uma maneira atraente de transmitir uma informação para o público).
A diferença básica, portanto, é a seguinte : jornalista que faz Jornalismo para jornalista prestaria um grande serviço à Humanidade se mudasse imediatamente de profissão. Já jornalistas que fazem Jornalismo para o leitor ( ou o espectador ) merecem cada centavo do que ganham.
Não adianta fazer de conta que não : jornalista de verdade quer ver o circo pegar fogo.
O grande Paulo Francis dizia o seguinte : “Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.
Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por esta divagação sobre os desvãos do jornalismo: a recém-lançada autobiografia do cantor Lobão, “50 Anos a Mil”, escrita em colaboração com Cláudio Tognolli, poderia se prestar perfeitamente a um belo exercício de escândalo jornalístico.
Um resenhista – ou entrevistador – atento poderia (e deveria) avançar sobre os pontos mais “chamativos” do livro.
Algo assim:
UM IMPACTO NO CONSULTÓRIO MÉDICO : LOBÃO DESCOBRE UM “IRMÃO GÊMEO” DENTRO DA CABEÇA
“Tinha uma consulta marcada para aquela tarde.Tinha que retirar um cisto que havia nascido bem no centro de minha cabeça. O procedimento cirúrgico é muito simples e rápido. Logo o médico está em poder de um vidrinho com o negócio dentro….e ele me diz :”Rapaz,você está ótimo! Isso aqui que foi retirado da sua cabeça é um cisto embrionário !…Isso deve ser o que restou de seu irmãozinho gêmeo!”. Aquilo me impactou profundamente”.
UMA SEMANA DE CHORO : O BEATLE TINHA MORRIDO
“A morte de Lennon teve um efeito devastador. Parecia que tinha perdido alguém muito próximo(…) Chorei copiosamente por uma semana…Nâo podia acreditar naquele absurdo…John Lennon estava morto”.
UMA VISITA-SURPRESA DE ROBERT DE NIRO, EMBALADA POR COCAÍNA
“Estava no meu quarto cheirando umas fileiras quando o Neville me aparece na portaria a me chamar. Nós havíamos combinado com nossas respectivas ex-esposas ir juntos para a Sapucaí. Só que tem um detalhe. Neville me manda: “Lobão, posso subir, é que eu estou com o Bob, um amigo meu que gostaria de te conhecer”. Em alguns minutos, toca a campainha com Neville e o Bob….Robert de Niro. Bob,que estava tentando engordar para fazer um filme de época (The Mission), colocou uma pedra de pó debaixo da língua”.
O SUMIÇO DA FITA QUE ELZA SOARES GRAVOU SOB O IMPACTO DA MORTE DO FILHO
“Estava chegando o grande momento: Elza topou participar! Vem o domingo e, à noitinha, assistindo ao Fantástico, recebo pela proa a trágica notícia: Garrinchinha morreu num acidente de carro. Chega a segunda-feira e,com o coração partido, telefono para Elzinha. Tinha acabado de chegar do enterro do filho. Para meu espanto e admiração, Elza me diz o seguinte: “Lobão, faço questão de ir agora mesmo para o estúdio, me espera lá que estou chegando”(…) Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Em segundos, Elza se reeditou, se recompôs e,como uma fênix saída das cinzas, já era aquela garotinha sapeca que ela nunca deixou de ser (…) Pedi à gravadora a fita em que Elza realizara aquele improviso inesquecível, mas me disseram que a fita se perdeu”.
POLICIAIS DÃO FLAGRANTE EM LOBÃO – E FICAM COM O QUE RESTOU DA DROGA
“Estamos no terraço de um hotel, avec élégance, quando aparecem dois policiais com mandado de prisão, busca e apreensão. Os policiais tiveram a pachorra de selecionar na minha cara qual droga escolheriam para dar o flagrante. Escolheram uma quantidade ínfima o bastante para me incriminar….O resto…ficou com eles! “.
TORTURADO, O TRAFICANTE É JOGADO DENTRO DA CELA DE LOBÃO
“Quando começa a amanhecer, Zaca está sendo arrastado pelos braços, todo fudido. Estava num estado lastimável. Ele é jogado para dentro da nossa cela e aí é que percebemos o estrago: tinha todas as unhas arrancadas – dos pés e das mãos. O corpo todo queimado de ponta de cigarro e uma fratura exposta na canela”.
A POLÍCIA CHEGA AO MORRO. LOBÃO PEGA A ARMA. E MANDA BALA
“Estava lá no Buraco Quente quando acontece o inevitável : uma severa operação policial, um sacode no morro (…) Eu,que já estava virado de três dias, não quis ficar acocorado debaixo da mesa,esperando a morte chegar, enquanto meus companheiros levavam uma uma saraivada de chumbo, portanto, não titubeei: peguei um três-oitão em cima da mesa, uma caixa de munição e saí pra varanda a dar pipoco pra tudo quanto é lado”.
UM SUSTO NOS EUA : LOBÃO VAI AO HOSPITAL PENSANDO QUE ESTAVA COM AIDS
“Lá fui eu pedir socorro : “Tô com Aids!”.(…) Fomos colocados de avental ( aqueles com que a gente fica de bunda de fora), nos puseram numa maca e fomos ser examinados por um médico que, ao contarmos nosso histórico de sintomas, começou a rir na nossa cara. Disse que estávamos com uma puta ressaca. A coceira era a pele reagindo à umidade baixíssima daquela região desértica”.
UMA MOTO A TODA VELOCIDADE. UMA VARANDA SOBRE O NADA. LOBÃO TENTA SE MATAR
“Desmotivado, confuso, reativo, desestruturado, revoltado com o mundo, só me restou a autodestruição. Comecei a andar de moto de forma suicida (…) A moto desliza na poça e vai reto de encontro ao poste. Eu alço vôo e me espatifo de cara no meio-fio”.
“Tomei um porre de lascar, peguei um monte de calmantes e engoli, cortei os pulsos com a serrinha do meu canivete suíço e,em completo estado de delírio, correi para o parapeito da varanda para me atirar do último andar. Desses últimos momentos, eu já não me lembrava mais nada, não fosse a Regina pra me segurar. Quase morri, devido à hemorragia nos pulsos e, mais uma vez, acordei num quarto de hospital”.
Em resumo: Lobão é um prato cheio para aquela raça que Rock Hudson chamava de “cães” ( sem qualquer cinismo nem autocomiseração, declaro-me representante desta raça. Poderia ter tentado fazer Cinema, por exemplo, mas terminei caindo no Jornalismo, por “comodidade” e por falta de habilidade para executar tarefas realmente importantes. Dentro do Jornalismo, alisto-me na sub-categoria dos que apostam no poder de uma manchete atraente. Qual é o problema ? Só me arrependo parcialmente de ter mergulhado na profissão. O Jornalismo pode ser útil quando cria memória, por exemplo. Pode ser fascinante quando flagra a Grande Marcha dos Acontecimentos. Mas é lamentável,sim, quando exercido por ególatras incuráveis, burocratas entediados, derrubadores contumazes e todas as variações do gênero).
Lobão é prato cheio para os cães – entre os quais, como disse, me alisto. Diante de um relato de suas diatribes, eu tenderia, portanto, a carregar as tintas nas histórias mais estridentes. Por que não ? Não é pecado fazer manchetes chamativas.
Mas, surpreendentemente, eu diria que o Lobão de verdade não é aquele personagem que protagoniza tantas das extravagâncias transformáveis em manchetes.
O Lobão de verdade emerge lá no final do livro: “Sempre acabo tirando proveito de minhas tragédias(…) O aconchego com que minha avó Lula tanto cuidava em nos envolver hoje está dentro de mim (…) Só percebi que possuía este trunfo quando relaxei dessa angustiante tentativa de correr atrás de volta ao Lar, de correr atrás do que se perdeu pelo caminho(…) Eu me tornei o meu lar, minha vida interior e a alegria me nutriram e, por mais que possa parecer ser eu uma personalidade destrutiva, é pura ilusão de ótica(…) A gente aprende que,antes de qualquer coisa, o nosso trabalho é a nossa maior fonte de cura e crescimento, nos rejuvenesce e nos dá mais entusiasmo”.
Entendo perfeitamente quando Lobão esperneia por ser vítima do que ele chama de “clichês jornalísticos”. Em entrevista recente, ele disse: “Sou um artista e gostaria de ser tratado como tal. O livro pra mim é uma hercúlea tentativa em deixar de ser caricaturado”.
O “clichê jornalístico” reduz Lobão à caricatura do roqueiro enlouquecido dos anos oitenta. Eu poderia, agora, alinhavar vinte manchetes escandalosas sobre o assunto. Mas, feitas as contas, o Lobão que emerge de “50 Anos a Mil” não é o roqueiro extravagante; é o artista que não abre mão de uma energia fundamental: o fogo da inquietude. É algo absolutamente indispensável nas apenas à Arte, mas à vida. ( Que se saiba: Lobão já mergulhou numa depressão suicida simplesmente porque um ex-empresário o aconselhou a fazer um disco fácil, só com músicas que seriam “tiros certos”. By the way: a qualidade poética de tantas das letras de Lobão não deve passar sem registro). É bom saber que a “vida interior” e a “alegria” salvaram Lobão de cair nas armadilhas da loucura ou – pior ainda – do conformismo estéril.
É a lição possível: a desgraça ou a salvação não estão “nas estrelas” ou em algum recanto indecifrável, mas dentro de cada um de nós, em algum pomar, algum canteiro, algum hectare de nossas florestas anteriores – não importa que estejam calcinadas por velhos incêndios que fugiram do nosso controle. Parece banal,mas é cem por cento verdade. O caminho da salvação – pelo menos no caso de Lobão - foi a “vida interior” e a “alegria”. Por acaso haverá um outro ?
É prudente apostar que não.
Em suma: em última instância, o que move a máquina do mundo é a inteligência rebelada, não é o conformismo burro. Nunca foi. Se o combustível da inteligência for a alegria, melhor ainda.
Próximas pedradas, por favor.