O dia em que diplomatas britânicos chegaram à conclusão de que é impossível traduzir o que significa o “jeito brasileiro”. Quem se habilita ?

qui, 23/12/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

                            A diplomacia é feita – também – veneno ( ver post anterior). Em um dos mergulhos que dei na papelada armazenada no Public Record Office, em Londres, terminei encontrando uma pérola, misturada a relatórios secretos sobre momentos dramáticos da vida política brasileira : um relatório em que diplomatas de Sua Majestade informam a seus chefes que é tecnicamente impossível traduzir a brasileiríssima expressão “dar um jeito”.

                           Quem diria: o “jeito” ocuparia as atenções da diplomacia britânica.

                           Pode parecer uma banalidade. Mas não é: se quiser mergulhar no “universo mental” brasileiro, um diplomata terá de entender o que significa esta instituição que tanto pode ser louvável quanto detestável. O “jeito” é louvável quando – por exemplo – o brasileiro reinventa uma criação estrangeira – o futebol, por exemplo. Mas pode ser detestável quando significa frouxidão moral e falta de compromisso.  Quem conseguiria traduzir com fidelidade o que significa o “jeito brasileiro” ? 

                             Atenção, sociólogos, antropólogos  e pitaqueiros em geral:  eis um tema à espera de um estudo sério. Já que diplomatas estrangeiros acham que o jeito é uma instituição  ”intraduzível”, bem que um pesquisador nativo poderia tentar esmiuçar esta grande invenção brasileira. O que diabos é “dar um jeito” ? Onde é que termina a criatividade e começa a enganação ?  Qual é o exemplo mais espetacular de um “jeito brasileiro” ?  ( a história política traz uma coleção de exemplos:  os militares estavam querendo evitar que o vice-presidente João Goulart tomasse posse no lugar do presidente que renunciou ?  O “jeito”  foi adotar um regime parlamentarista para diminuir os poderes do presidente.  Não deu certo ? O “jeito” foi convocar um plebiscito para que o povo decidisse entre parlamentarismo e presidencialismo. E assim por diante).

                                       A Embaixada britânica enviou a Londres, no dia 17 de agosto de 1962, um relatório em que informa que os brasileiros poderiam dar um “jeito” na crise crônica que marcava o governo Goulart :

                                         “O único sinal de conforto que ouso oferecer é dizer que os brasileiros têm uma palavra para descrever a habilidade em encontrar uma saída para suas dificuldades : “jeito”, uma palavra intraduzível em qualquer outra língua, mas que significa, genericamente, um estratagema ou acordo de bastidores. Com frequência, “dar um jeito” não é nem sério nem inteiramente moral,mas é bastante eficiente. Tenho estado no Brasil por tempo suficiente para não afastar a possibilidade de que um “jeito” será encontrado para resolver a crise atual”.

                                                  (A quem interessar possa: o documento foi publicado no nosso livro “Dossiê Brasil”, já esgotado, mas encontrável nos sebos…O Dossiê Geral publicará, nas próximas semanas, trechos de despachos diplomáticos “venenosos” : são documentos que, depois de passarem décadas mantidos em sigilo, são finalmente abertos à consulta pública)

Veneno puro: diplomatas escrevem em relatórios secretos tudo o que não dizem em voz alta( mas, um dia, o segredo acaba )

dom, 19/12/10
por Geneton Moraes Neto |

O vazamento sistemático de documentos confidenciais produzidos por diplomatas foi uma das sensações de 2010. O responsável: o site Wikileaks.

O que o Wikileaks faz é antecipar a publicação de documentos confidenciais  que,um dia, seriam divulgados, em parte ou na íntegra, pelos governos que os produziram.

Todo ano, o governo britânico libera, à sanha de repórteres e pesquisadores, documentos secretos que passaram décadas protegidos pelo sigilo.

Já enfrentei longas jornadas na sede do Public Record Office, em Londres, em busca de documentos venenosos sobre o Brasil.

Não saí de mãos abanando.

Vasculho meus arquivos não tão implacáveis.

Eis uma amostra da colheita:

Quem ? Lindolfo Collor ? “Político ambicioso e inescrupuloso, Sem dúvida, lembra desagradavelmente os políticos nefandos que a Revolução de 30 pretendia varrer do mapa”. O escritor e diplomata Gilberto Amado ? “Nordestino típico,baixo e feio. Excessivamente mal-educado”. Lourival Fontes,o braço direito de Getúlio Vargas na área da propaganda ? “Aboslutamente detestável. Corcunda, zarolho,interesseiro e impopular”. O chanceler Oswaldo Aranha ? “Bem conhecido pelas atenções que dá a mulheres fora do ambiente doméstico”. O general Goes Monteiro, chefe do Estado Maior das Forças Armadas ? “Um tremendo bebedor”. O general Flores da Cunha,”o mais poderoso político do Rio Grande do Sul” ? “Inescrupuloso”, “um jogador inveterado”. O deputado,senador, ministro e governador baiano Otávio Mangabeira ? “Um mulato de família pobre que enriqueceu através da política”. Assis Chateaubriand, o fundador do império jornalístico dos Diário e Emissoras Associados ? “Personalidade perigosa e intrigante”. O duas vezes ministro da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida ? Descobriu tanta maracutaia no Ministério que ficou incapaz de “distinguir o que é bom e o que é mau”. O jornalista Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa ? “Um homenzinho parecido com um macaco”. Luís Carlos Prestes ? “Um revolucionário profissional”. O marechal Cândido Rondon ? “Proprietário de enormes extensões de terra no interior, particularmente em Goiás e Mato Grosso, que adquiriu por meios dúbios e desonestos”. O ministro Félix Pacheco ? “Aumentou enormemente a fortuna pessoal graças às suas transações com o Banco do Brasil para a compra do Jornal do Brasil”. O ex-presidente da República Epitácio Pessoa ? “Sempre pronto, em troca de vantagens, a colocar seus grandes conhecimentos jurídicos a serviço de corporações britânicas em dificuldades com as leis brasileiras”. Amaral Peixoto ? “Sua maior credencial para a fama deve-se ao fato de que namora com uma das filhas do presidente”. O general Eurico Gaspar Dutra ? “Não muito inteligente. Cão de guarda”. O ex-ministro Francisco Sá ? “Conseguiu encher os bolsos confortavelmente” quando no governo. Francisco Campos, o ministro da Justiça que inventou um arremedo de Constituição para a ditadura do Estado Novo ? “Um fanático totalitário. Personalidade de temperamento arrogante e desagradável”. O conde Matarazzo ?  “Tirava proveito da  legislação protecionista para “vender seus produtos a preços elevados”. Os brasileiros ? “Vivem macaqueando todos os modismos materiais ou intelectuais”.

Não sobra pedra sobre pedra. Diatribes desse calibre renderiam uma pilha de processos de injúria,calúnia e difamação se um dis tivessem chegado ao conhecimento dos personagens atingidos. Não chegaram. Jamais chegarão. A maioria dos personagens já virou nome de rua, em  qualquer capital brasileira que se preze. O veneno impresso em letra de forma não foi cometido por nenhum panfletário interessado em reduzir a pó a elite política brasileira. Não. O autor deste manual de iconoclastia política foi,quem diria, o Senhor Embaixador do Reino Unido da Grã-Bretanha no Brasil, aquele mesmísssimo diplomata que,nos salões oficiais, brindava com salamaleques figuras que eram arrasadas nos relatórios secretos despachados para Londres. Os relatórios passaram meio século trancados nos arquivos do governo britânico, longe do alcance de aventureiros dedicados à tarefa de bisbilhotar os segredos da diplomacia de Sua Majestade. Somente depois de esgotado o veto de cinquenta anos imposto à divulgação dos documentos é que foi possível saber o que a diplomacia britânica pensava dos brasileiros, numa época em que Londres era o endereço da sede de um império. Os papéis secretos expõem julgamentos que jamais um embaixador pronunciaria em voz alta, sob pena de causar embaraços diplomáticos, políticos, éticos e, até, jurídicos.Mas o que é a diplomacia,  se não esse jogo de dissimulações em que elogios mútuos são desmentidos em relatórios secretos ?   Tudo o que a diplomacia inglesa pensava – mas não dizia em voz alta – sobre figurões desta República era cuidadosamente alinhavado em relatórios secretos que cruzavam o mar para se aninhar nos gabinetes do Foreign Office, o ministério das Relações Exteriores do Reino Unido da Grã-Bretanha. Ali, depois de digeridos, eram despachados para o Public Record Office, a repartição encarregada de guardar todos os papéis que o governo inglês considera dignos da posteridade. O mecanismo guarda um lado cruel: julgamentos arrasadores sobre figuras públicas brasileiras jamais foram desmentidos, simplesmente porque não podiam ser divulgados. Quem mereceu adjetivos pouco abonadores nos documentos secretos morreu sem direito a réplica. Hoje, “para todos os efeitos”,esses papéis ganharam status de documentos históricos. 

Meu mergulho no mar de documentos secretos produzidos tanto pelo governo britânico quanto pelo governo americano terminou rendendo dois livros, ambos (feliz ou infelizmente)  já esgotados ,mas encontráveis em sebos : “Nitroglicerina Pura” ( de onde retirei o texto publicado acima) e “Dossiê Brasil”.  Fiz “Nitroglicerina Pura” em parceria com aquele que era considerado o maior repórter brasileiro: Joel Silveira. Fiquei encarregado de mergulhar nos papéis em Londres e em Washington. Joel produziu um texto memorialístico sobre a escuridão da ditadura do Estado Novo.

A divulgação de documentos secretos do governo britânico obedece a uma escala de vetos de duração variada. Há documentos que sofrem um veto de vinte e cinco anos. O veto pode se estender a cinquenta anos ou,até, a cem. Depende do teor de nitroglicerina que os documentos carregam.

O Wikileaks subverte as regras do sigilo oficial. Vive de vazamentos. Em alguns casos, desnuda, hoje, o que seria desnudado daqui a meio século.

O que será que os relatórios confidenciais terão dito sobre a Era Lula ?  Fazia tempo que a política brasileira não produzia um personagem tão improvável e tão surpreendente. Com que palavras os diplomatas estrangeiros o retrataram em documentos que só serão divulgados daqui a décadas ?

Lobão, prato cheio para os “cães” que caçam manchetes, não é apenas o roqueiro que já cometeu um catálogo de extravagâncias ( é o artista que nunca abriu mão da inquietude)

seg, 13/12/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Quando já não podia esconder que estava com AIDS, o ator Rock Hudson finalmente concordou em mandar um comunicado aos repórteres que batiam na porta do hospital em busca de notícias. Um texto, curto, foi redigido por um assessor. Hudson ouviu em silêncio. Autorizou a divulgação do comunicado com uma frase curta: “Podem dá-lo aos cães”.

A cena foi registrada na biografia de Hudson.

Ah, os cães : era assim que o astro Hudson via os repórteres.

Eu diria: o bicho tinha uma ponta de razão. Almas puras devem achar que  jornalistas são uma matilha de caçadores de escândalos, detalhes sórdidos, tropeços, escorregões.

São, sim.

Diante deste tribunal imaginário, arrisco-me a fazer a seguinte declaração, baseada em anos & anos & anos de observação do zoológico que habito :  os jornalistas que desenvolvem  um faro especial para os detalhes mais incomuns, mais “escandalosos”, mais surpreendentes e mais esdrúxulos são, justamente, os melhores. Já os entediados que, diante de uma boa história, exibem a pálpebra semi-cerrada  pelo tédio são, não por acaso, os mais burocratas, os mais cinzentos, os mais nocivos à profissão.

É o que notei desde que pus as patas pela primeira vez numa redação – faz séculos e séculos.

Sorry about that, crianças, mas é assim que caminha a humanidade.

Em qualquer lugar do planeta, a guerra surda entre estas duas facções provoca faíscas nas redações. É interminável o embate entre os derrubadores de matérias (aqueles que jogam um belo assunto no lixo sob o argumento de que “fulano de tal já deu a matéria…”, como se o público fosse formado por maníacos que passassem o dia comparando o que  jornais,rádios,sites e tvs publicam…) e os levantadores ( os ingênuos que acreditam que existirá sempre uma maneira atraente de transmitir uma informação para o público).

A diferença básica, portanto, é a seguinte : jornalista que faz Jornalismo para jornalista prestaria um grande serviço à Humanidade se mudasse imediatamente de profissão. Já jornalistas que fazem Jornalismo para o leitor ( ou o espectador ) merecem cada centavo do que ganham.

Não adianta fazer de conta que não : jornalista de verdade quer ver o circo pegar fogo. 

O grande Paulo Francis dizia o seguinte : “Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.

Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por esta divagação sobre os desvãos do jornalismo:  a recém-lançada autobiografia do cantor Lobão, “50 Anos a Mil”, escrita em colaboração com Cláudio Tognolli, poderia se prestar perfeitamente a um belo exercício de escândalo jornalístico.

Um resenhista – ou entrevistador – atento poderia (e deveria) avançar sobre os pontos mais “chamativos” do livro.

Algo assim:

UM IMPACTO NO CONSULTÓRIO MÉDICO  :  LOBÃO DESCOBRE UM “IRMÃO GÊMEO” DENTRO DA CABEÇA

“Tinha uma consulta marcada para aquela tarde.Tinha que retirar um cisto que havia nascido bem no centro de minha cabeça. O procedimento cirúrgico é muito simples e rápido. Logo o médico está em poder de um vidrinho com o negócio dentro….e ele me diz :”Rapaz,você está ótimo! Isso aqui que foi retirado da sua cabeça é um cisto embrionário !…Isso deve ser o que restou de seu irmãozinho gêmeo!”. Aquilo  me impactou profundamente”.

UMA SEMANA DE CHORO : O BEATLE TINHA MORRIDO

“A morte de Lennon teve um efeito devastador. Parecia que tinha perdido alguém muito próximo(…) Chorei copiosamente por uma semana…Nâo podia acreditar naquele absurdo…John Lennon estava morto”.

UMA VISITA-SURPRESA DE ROBERT DE NIRO, EMBALADA POR COCAÍNA 

“Estava no meu quarto cheirando umas fileiras quando o Neville me aparece na portaria a me chamar. Nós havíamos combinado com nossas respectivas ex-esposas ir juntos para a Sapucaí. Só que tem um detalhe. Neville me manda: “Lobão, posso subir, é que eu estou com o Bob, um amigo meu que gostaria de te conhecer”. Em alguns minutos, toca a campainha com Neville e o Bob….Robert de Niro. Bob,que estava tentando engordar para fazer um filme de época (The Mission), colocou uma pedra de pó debaixo da língua”.

O SUMIÇO DA FITA QUE ELZA SOARES GRAVOU SOB O IMPACTO DA MORTE DO FILHO

“Estava chegando o grande momento: Elza topou participar! Vem o domingo e, à noitinha, assistindo ao Fantástico, recebo pela proa a trágica notícia: Garrinchinha morreu num acidente de carro. Chega a segunda-feira e,com o coração partido, telefono para Elzinha. Tinha acabado de chegar do enterro do filho. Para meu espanto e admiração, Elza me diz o seguinte: “Lobão, faço questão de ir agora mesmo para o estúdio, me espera lá que estou chegando”(…) Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Em segundos, Elza se reeditou, se recompôs e,como uma fênix saída das cinzas, já era aquela garotinha sapeca que ela nunca deixou de ser (…) Pedi à gravadora a fita em que Elza realizara aquele improviso inesquecível, mas me disseram que a fita se perdeu”.

POLICIAIS DÃO FLAGRANTE EM LOBÃO – E FICAM COM O QUE RESTOU DA DROGA

“Estamos no terraço de um hotel, avec élégance, quando aparecem dois policiais com mandado de prisão, busca e apreensão. Os policiais tiveram a pachorra de selecionar na minha cara qual droga escolheriam para dar o flagrante. Escolheram uma quantidade ínfima o bastante para me incriminar….O resto…ficou com eles! “.

TORTURADO, O TRAFICANTE É JOGADO DENTRO DA CELA DE LOBÃO

“Quando começa a amanhecer, Zaca está sendo arrastado pelos braços, todo fudido. Estava num estado lastimável. Ele é jogado para dentro da nossa cela e aí é que percebemos o estrago: tinha todas as unhas arrancadas – dos pés e das mãos. O corpo todo queimado de ponta de cigarro e uma fratura exposta na canela”.

A POLÍCIA CHEGA AO MORRO. LOBÃO PEGA A ARMA. E MANDA BALA

“Estava lá no Buraco Quente quando acontece o inevitável : uma severa operação policial, um sacode no morro (…) Eu,que já estava virado de três dias, não quis ficar acocorado debaixo da mesa,esperando a morte chegar, enquanto meus companheiros levavam uma uma saraivada de chumbo, portanto, não titubeei: peguei um três-oitão em cima da mesa, uma caixa de munição e saí pra varanda a dar pipoco pra tudo quanto é lado”.

UM SUSTO NOS EUA : LOBÃO VAI AO HOSPITAL PENSANDO QUE ESTAVA COM AIDS

“Lá fui eu pedir socorro : “Tô com Aids!”.(…) Fomos colocados de avental ( aqueles com que a gente fica de bunda de fora), nos puseram numa maca e fomos ser examinados por um médico que, ao contarmos nosso histórico de sintomas, começou a rir na nossa cara. Disse que estávamos com uma puta ressaca. A coceira era a pele reagindo à umidade baixíssima daquela região desértica”.

UMA MOTO A TODA VELOCIDADE. UMA VARANDA SOBRE O NADA. LOBÃO TENTA SE MATAR

“Desmotivado, confuso, reativo, desestruturado, revoltado com o mundo, só me restou a autodestruição. Comecei a andar de moto de forma suicida (…) A moto desliza na poça e vai reto de encontro ao poste. Eu alço vôo e me espatifo de cara no meio-fio”.

“Tomei um porre de lascar, peguei um monte de calmantes e engoli, cortei os pulsos com a serrinha do meu canivete suíço e,em completo estado de delírio, correi para o parapeito da varanda para me atirar do último andar. Desses últimos momentos, eu já não me lembrava mais nada, não fosse a Regina pra me segurar. Quase morri, devido à hemorragia nos pulsos e, mais uma vez, acordei num quarto de hospital”.

Em resumo: Lobão é um prato cheio para aquela raça que Rock Hudson chamava de “cães”  ( sem qualquer cinismo nem autocomiseração, declaro-me representante desta raça. Poderia ter tentado fazer Cinema, por exemplo, mas terminei caindo no Jornalismo, por “comodidade” e por falta de habilidade para executar tarefas realmente importantes. Dentro do Jornalismo, alisto-me na sub-categoria dos que apostam no poder de uma manchete atraente. Qual é o problema ?  Só me arrependo parcialmente de ter mergulhado na profissão. O Jornalismo pode ser útil quando cria memória, por exemplo. Pode ser fascinante quando flagra a Grande Marcha dos Acontecimentos. Mas é lamentável,sim, quando exercido por ególatras incuráveis, burocratas entediados, derrubadores contumazes e todas as variações do gênero).  

Lobão é  prato cheio para os cães – entre os quais, como disse, me alisto.  Diante de um relato de suas  diatribes, eu tenderia, portanto, a carregar as tintas nas histórias mais estridentes. Por que não ? Não é pecado fazer manchetes chamativas. 

Mas, surpreendentemente, eu diria que o Lobão de verdade não é aquele personagem que protagoniza  tantas das extravagâncias transformáveis em manchetes.

O Lobão de verdade emerge lá no final do livro: “Sempre acabo tirando proveito de minhas tragédias(…) O aconchego com que minha avó Lula tanto cuidava em nos envolver hoje está dentro de mim (…) Só percebi que possuía este trunfo quando relaxei dessa angustiante tentativa de correr atrás de volta ao Lar, de correr atrás do que se perdeu pelo caminho(…) Eu me tornei o meu lar, minha vida interior e a alegria me nutriram e, por mais que possa parecer  ser eu uma personalidade destrutiva, é pura ilusão de ótica(…) A gente aprende que,antes de qualquer coisa, o nosso trabalho é a nossa maior fonte de cura e crescimento, nos rejuvenesce e nos dá mais entusiasmo”.

Entendo perfeitamente quando Lobão esperneia por ser vítima do que ele chama de “clichês jornalísticos”.  Em entrevista recente, ele disse: “Sou um artista e gostaria de ser tratado como tal. O  livro pra mim é uma hercúlea tentativa em deixar de ser caricaturado”.

O “clichê jornalístico” reduz Lobão à caricatura do roqueiro enlouquecido dos anos oitenta. Eu poderia, agora, alinhavar vinte manchetes escandalosas sobre o assunto. Mas, feitas as contas, o Lobão que emerge de “50 Anos a Mil”  não é o roqueiro extravagante; é o artista que não abre mão de uma energia fundamental: o fogo da inquietude.  É algo absolutamente indispensável nas apenas à Arte, mas à vida. ( Que se saiba: Lobão já mergulhou numa depressão suicida simplesmente porque um ex-empresário o aconselhou a fazer um disco fácil, só com músicas que seriam “tiros certos”. By the way: a qualidade poética de tantas das letras de Lobão não deve passar sem registro).  É bom saber que a “vida interior” e a “alegria” salvaram Lobão de cair nas armadilhas da loucura ou – pior ainda – do conformismo estéril.

É a lição possível: a desgraça ou a salvação não estão “nas estrelas” ou em algum recanto indecifrável, mas dentro de cada um de nós, em algum pomar, algum canteiro, algum hectare de nossas florestas anteriores – não importa que estejam calcinadas por velhos incêndios que fugiram do nosso controle.  Parece banal,mas é cem por cento verdade. O caminho da salvação – pelo  menos no caso de Lobão - foi a “vida interior” e a “alegria”.  Por acaso haverá um outro ?

É prudente apostar que não.

Em suma: em última instância, o que move a máquina do mundo é a inteligência rebelada, não é o conformismo burro. Nunca foi. Se o combustível da inteligência for a alegria, melhor ainda.

Próximas pedradas, por favor.

O lamento de Paulo César Peréio: “A mediocridade é eterna.Os gênios são perecíveis”

sex, 10/12/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

A GLOBONEWS exibe neste sábado, às 21:05, uma entrevista especial com o polêmico, o desbocado, o irritado, o irascível, o explosivo Paulo César Peréio. O programa será reprisado na terça, às 11:05

Peréio: "A mediocridade é eterna!"

 

Paulo César Peréio completou setenta anos de idade em 2010.

O fato de um brasileiro completar setenta anos poderia parecer uma feliz banalidade, se o dono dos setenta anos não se chamasse Paulo César – o Peréio.

Neste caso, os 70 anos deixam de ser uma banalidade para se transformar num milagre da natureza.

Pergunto se ele se considera um sobrevivente. O bicho responde que se considera um “resistente”.

A escolha da palavra não é casual. Depois de desafiar a resistência do corpo com um catálogo de extravagâncias que faria Keith Richards soltar uma exclamação de sincero espanto, Peréio chega “são e salvo” aos setenta. Resistiu exemplarmente aos sacolejos, turbulências e terremotos da travessia.

Ainda bem.

Surpreendentemente, confessa que só depois dos sessenta é que teve momentos de legítima serenidade.

Se não tomar cuidado, terminará contratado para anunciar planos de saúde para a terceira idade.

É uma figura onipresente nas telas. Estava no elenco de ”Terra em Transe”, o clássico de Glauber Rocha. Brilhou como um cafajeste em “Toda Nudez Será Castigada”, grande filme de Arnaldo Jabor. Em “Tudo Bem” e “Eu Te Amo”, ambos igualmente dirigidos por Jabor, Peréio dá show de bola.

O rosto exibe aquele ar de tédio. A voz merece, como poucas, o adjetivo “inconfundível”.

Aquele ruído que Peréio produz no fim das frases sempre me intrigou. Eu nunca soube se o ruído é um comentário crítico sobre a espécie humana, um grunhido de espanto contra a conspiração mundial da mediocridade ou um suspiro de tédio diante do estado geral das coisas. Quem saberá ?

Parto em direção à fera, numa gravação marcada para as dependências da produtora Multipress Digital, em plena muvuca da rua República do Líbano, no centro do Rio.

Peréio não perdoa: ataca.

Uma entrevista com Peréio é sempre um espetáculo televisivo: o homem eleva a voz, faz pausas dramáticas, emite suspiros enigmáticos, encara a câmera com um olhar irônico que vale por mil palavras.  Um dos melhores momentos: quando Peréio faz uma antologia de situações que viveu ao lado de um gênio brasileiro – Nélson Rodrigues, morto há exatamente trinta anos, em dezembro de 1980. Peréio escala,também, Glauber Rocha na galeria de gênios brasileiros. Não são tantos.

Trechos da entrevista:

“Gênio não é eterno. Depois que ele morre, jamais nascerá outra coisa igual. O medíocre a gente nem percebe que morreu. E, já no dia seguinte à morte de um medíocre, aparece um igualzinho no lugar. A mediocridade, então, é eterna!  O gênio, não: todos os gênios são perecíveis”.

 “Durante a filmagem de “A Dama do Lotação”, faltou luz. Não tinha luz nem  para filmar nem para o ar-condicionado. Eu e Sônia Braga ficamos pelados na cama, no calor, à espera de que a luz voltasse. Éramos amigos:  a nudez passa a ser coisa de irmão. Não tinha essa carga de erotismo que o proibido dá. Nem eu nem Sandra botamos roupa,então. Estava coçando o saco. De repente, chegam Nélson Rodrigues e Jorge Dória- que diz: “Meu Deus, o que é aquilo? “.  E Nélson: “Peréio é acima de nossa compreensão! Diante de Sônia Braga,aquele monumento, ele fica coçando aquele saco cor-de-rosa! ” .  Repare o detalhe do cor de rosa!  Nélson não saiu falando “Peréio ficou coçando o saco”. Disse: “Coçando aquele saco cor de rosa!”. Que fantástico! Detalhes assim é que davam a genialidade a Nélson”.

“Trinta dias depois de a peça “Anti-Nélson Rodrigues” entrar em cartaz, Nélson quis mudar o título para “Sexo é Para Operário”. Nélson odiava o fato de eu ter chamado José Wilker para fazer o papel de Oswaldinho, o personagem principal. Nélson me dizia: “José Wilker é autor. E nenhum brasileiro consegue ser autor de teatro sem, primeiro, me achar uma besta…”.

 “Nélson ia ao meu camarim para fumar e tomar cafezinho escondido, porque a médica não deixava. Dizia coisas como “Peréio, todo canalha é magro!”. Respondi : “Todo magro é canalha ? Isso é arbitrário!”. E ele: “Em noventa e sete por cento das vezes em que sou arbitrário,  eu estou certo”. Ou seja: Nélson nos dava três por cento de gorjeta….”

 “A relação que tenho com outros atores – no cinema, na TV,no teatro ou na puta que o pariu – é de simpatia ou antipatia. Há atores que não considerados do c……mas detesto. Por exemplo: odeio Sean Penn. Não gosto daquela boquinha que ele faz. Mas dizem que é um baita de um ator. Aliás, parece que ele andou dando porrada em Madonna. Eu,então, até livro a cara de Sean Penn por conta disso….Também não suporto Elizabeth Taylor”.

 “Eu me considero um resistente. Vou dizer uma coisa: eu recomendo os setenta anos ! Não me lembro de ter sido tão equilibrado. O desequilíbrio sempre produz certa ansiedade. Tenho momentos de calmaria que são muito bons. Baboseiras de que “minha infância foi uma coisa muito boa”…. picas! A juventude só é boa porque a gente tem tesão e não brochou. Mas serenidade, tranqüilidade e a ideia de momentos felizes passei a ter depois dos sessenta anos. E tenho melhorado! Tenho muito orgulho de ter saúde, apesar de tudo o que fiz”.

 “A fama (de criador de casos, maldito e cafajeste) é merecida. Mas é uma coisa cultivada . Construo este mito,para ser pouco incomodado.  É uma espécie de self-art. Peréio, na terceira pessoa, é obra minha. Posso ser considerado no Brasil uma celebridade. As pessoas me reconhecem na rua. Mas posso me dar ao direito de sair sozinho por aí, subir morro, andar na banda podre e na baixa sociedade, tranquilamente. Sei como não ser vítima disso. Conheço atores brasileiros que têm de fingir que são outra pessoa para sair na rua”.

 “Sou temperamental. Fico puto. Depois, perdoo. Brigo, me encrespo. Mas baixo a bola e volto para o meu estado de falta de felicidade – que não quer dizer sofrimento nem dor”.



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