Lembranças de um país em que eleição direta para presidente era apenas um brilho nos olhos do comandante da oposição
Do caderno de anotações imaginário:
Quando, no dia 17 de janeiro de 1976, o operário Manoel Fiel Filho foi morto sob tortura nas dependências do II Exército, em São Paulo, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do MDB e, portanto, chefe da oposição, estava no Recife.
O “Doutor Ulysses” – era assim que todos o chamavam – tinha feito uma tumultuada viagem a Caruaru, no agreste do Estado, para participar de uma espécie comício fora de época. Não deu certo. Por ordem do Ministério da Justiça, o governo de Pernambuco mandou avisar que estavam proibidas reuniões políticas em praça pública. Assim, o tal comício foi transferido, às pressas, para um ambiente fechado – um auditório que ficou superlotado.
Eu me lembro de que Ulysses Guimarães, um orador que produzia frases de efeito em série, levou o auditório ao delírio ao lançar o nome do senador Marcos Freire como candidato das oposições ao governo de Pernambuco. Todos sonhavam com uma eleição direta em 1978. Não houve eleição direta em 1978 : os governadores só voltariam a ser escolhidos pelo voto do povo em 1982. ( Tempos depois, ao entregar ao país uma nova Constituição, ele diria: “Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades”). As ruas do centro de Caruaru ficaram povoadas de guardas, equipados com armas e cães.
De volta ao Recife, depois da aventura em Caruaru, o “Doutor Ulysses” estava se preparando para embarcar para Sergipe quando estourou a notícia de que o presidente Ernesto Geisel tivera uma reação surpreendente diante da morte do operário : decidira punir,com demissão, o comandante do II Exército, general Ednardo D`Ávila. Havia, obviamente, uma crise militar no ar.
Repórter da sucursal Recife do jornal “O Estado de S.Paulo”, fui convocado, às pressas, para embarcar no avião que, dali a minutos, levaria o Doutor Ulysses para Aracaju, a próxima parada do périplo nordestino.
Fiz a primeira abordagem ainda no corredor do Aeroporto. O Doutor Ulysses leu,com ar grave, o telex que eu lhe entregara, com informações sobre a demissão do comandante do II Exército. Disse que falaria a bordo.
Depois do embarque, pegou um jornal para ler. Vi perfeitamente quando, ao tentar atravessar os parágrafos de um editorial, Doutor Ulysses tropeçou – e caiu gloriosamente nos braços de Morfeu. Pegou no sono, sem largar o jornal.
Desde então, uma dúvida incendiária passou a agitar minhas florestas interiores : para que servem, realmente, os editoriais dos jornais, além de provocar um desabamento incontrolável das pálpebras de quem os lê ? Sono,sono, sono.
Quanto à declaração : raposa, o Doutor Ulysses sentiu a gravidade do momento. Quando acordou, me pediu que o procurasse depois do pouso. Lá embaixo, iria falar. Uma multidão o aguardava no Aeroporto. O homem escapou. Durante a coletiva, ninguém tocou no assunto da demissão do general. Fiz a pergunta, porque já estava, literalmente, “correndo contra o relógio”. Doutor Ulysses respondeu com frases cuidadosas. Disse que o MDB não tinha prevenção contra militares. Fez questão de lembrar que o partido já tinha sido presidido por um general reformado, o senador Oscar Passos. Ou seja: o comandante da oposição pisava em ovos, porque sabia que, em época de crise militar, o terreno estava minado. O homem não queria, ali, atiçar a fúria do Olimpo verde-oliva.
Ao deixar a sala onde dera a entrevista coletiva, na Assembléia Legislastiva de Sergipe, Doutor Ulysses apertou minha mão e cochichou, no meu ouvido, uma frase que, até hoje, não sei se foi uma queixa ou um cumprimento: “Você soltou o seu petardo !”.
De madrugada, quando chegou ao hotel, Ulysses foi cercado de novo pelo matilha de repórteres que seguiam seus passos – o locutor-que-vos-fala, inclusive. Topou falar, à beira da piscina deserta. Disse que temia que, se houvesse uma crise, a oposição poderia ser levada a recorrer a “soluções de força”.
Horas depois, ao sair do hotel bem cedo, em direção ao aeroporto, Doutor Ulysses pediu à recepção que um dos repórteres – que também estavam hospedados ali – fosse chamado. Um colega, a serviço do Jornal do Brasil, foi acordado. Ouviu,então, um apelo do Doutor Ulysses: por favor, ele pedia, retirem do texto da entrevista a expressão “soluções de força”. O pedido foi retransmitido a todos os repórteres. Assim foi feito.
Nem faz tanto tempo: o Brasil era um país em que o comandante da oposição enfrentava, literalmente, cães no meio da rua. Não se podia promover aglomeração política em praça pública. Não se votava nem para governador. O que dirá para Presidente da República ? (tempos depois do entrevero em Caruaru, cães avançariam sobre o comandante do MDB em Salvador. Lá, ele pronunciaria a frase célebre: “Baioneta não é voto! Cachorro não é urna!”).
Independentemente de qualquer coisa, é sempre bom saber que, já há um quarto de século, o país vive numa democracia em que cenas como aquelas - o presidente do partido da oposição se refugiando num auditório para escapar dos cães da polícia – só teriam lugar num roteiro de ficção.
Então: às urnas, cidadãos !
E ”atenção para o refrão” : numa democracia, independentemente de coloração ideológica, a única coisa que não se pode tolerar é a intolerância com adversários. Ponto.
Longa vida às urnas !