Chico Buarque de Holanda um dia pegou um par de chuteiras, calção, camisa e foi se apresentar no campo de Juventus de São Paulo, na rua do Javari, 117. Pensou que ia ser aprovado com louvor, porque se considerava um craque. Viu que não é assim que a banda toca: o número de candidatos a uma vaga era desanimador. Como se não bastasse, os olheiros do Juventus concluíram que o tipo físico daquele adolescente não era apropriado aos gramados. O Brasil perdia, ali, um candidato a craque.
A jogada de Chico Buarque dera errado: iludido, achou que, se procurasse um clube pequeno, as chances de ser aproveitado seriam maiores do que se batesse às portas do Santos, Palmeiras, Corinthians e São Paulo. Que nada.
Teve de voltar ao violão. Mas, se tivesse a chance de escolher entre a bola e a música, certamente ficaria com o futebol. Não deu. O jeito foi criar uma espécie de carreira imaginária: em viagens pelo exterior, mentia descaradamente : nem faz tanto tempo, em passeios pela África, ele dizia a motoristas de táxi que tinha sido reserva de Sócrates no timaço do Brasil que disputou a Copa de 82. Os ouvintes da mentira deslavada exibiam um ar de compreensível incredulidade.
Já que o Brasil se prepara para passar um mês falando de futebol, o DOSSIÊ GERAL vasculha os arquivos implacáveis em busca do texto integral de uma (rara) entrevista que o locutor-que-vos-fala teve a chance de fazer com o ex-futuro craque do Juventus:
Quem tentar extrair do entrevistado Chico Buarque de Holanda circunvoluções teóricas sobre a Música Popular Brasileira ou sobre a Poesia ou sobre a Política certamente voltará para casa de mãos abanando. Porque Chico Buarque, tímido profissional, usará a timidez como escudo para escapar pela tangente. O homem não é dado a digressões – nem um pouco. Diante de jornalistas em geral, Chico é um caso clássico de Síndrome do Silêncio Compulsivo : em situações normais, prefere se calar. Só fala – provavelmente incomodado – quando enfrenta a rodada de entrevistas programadas pela gravadora para badalar um novo lançamento. Fora daí, o assessor de imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello , trabalha dobrado para ir se livrando dos incontáveis pedidos de entrevistas. Estrela de primeira grandeza, Chico Buarque pertence à constelação de personalidades que despertam atenção em qualquer época, sob qualquer circunstância – não apenas quando lança um disco. Ninguém precisa ser psicólogo profissional para constatar que Chico Buarque dispensaria de bom grado essa honraria.
Fora dos palcos e estúdios, tenta levar uma vida que nem de longe lembra a de uma estrela. Observadores sortudos podem flagrar monsieur Buarque empenhado em fazer caminhadas solitárias pelo calçadão da praia do Leblon – cenário que escolheu para manter a forma desde que se mudou do Jardim Botânico. Volta e meia é personagem de uma cena tipicamente carioca,como esta, testemunhada pelo locutor-que-vos-fala : Chico Buarque chega sozinho para almoçar em um self-service do Jardim Botânico, o Fazendola. Como qualquer mortal, enfrenta a fila do caixa com a bandeja na mão. Depois, flana pelo salão em busca de uma mesa vazia. As testemunhas da cena cumprem com louvor o papel que lhes cabe : todo mundo faz de conta que Chico Buarque não é Chico Buarque. Deve ser um sósia. Assim, a estrela pode almoçar em paz, sem ser importunado por estranhos. Em outro território, certamente a presença de Chico provocaria compreensível alvoroço. Não aqui. A aparente indiferença faz parte do Código de Conduta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando já se dirigia ao portão de saída do self-service , Chico Buarque foi abordado pela primeira vez desde que chegou para o almoço. Quatro moças pedem autógrafo. O pedido é atendido em guardanapos.
Se um dia resolvesse escrever um livro de memórias – remota possibilidade que ele, no entanto, não descarta inteiramente – Chico Buarque teria assunto para encher mil páginas. Se quisesse, reuniria cenas incontáveis da convivência com gente que,como ele,virou mito. O que dizer da amizade com Garrincha no exílio,na Itália ? Chico serviu de motorista de luxo para o gênio das pernas tortas.Enquanto circulavam, Garrincha ia confessando uma surpreendente admiração por João Gilberto.
Nesta entrevista, Chico revisita cenas marcantes como as que viveu em companhia de Garrincha. Fala da primeira e única vez em que viu o então ditador Emílio Garrastazu Médici. Desmente um mito : o de que teria escrito os versos “você não gosta de mim,mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel. Diz qual é a música de outro compositor que lhe desperta um sentimento parecido com a inveja.
O poeta que prefere não falar vai responder, a partir de agora, a quarenta perguntas. São lembranças que poderiam preencher um capítulo do livro de memórias que, possivelmente, jamais será escrito.
Gravando !
GMN : Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito ?
Chico Buarque : “Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.Mas existem músicas que amo.Gosto mais do que as minhas.Eu não gostaria de ter feito uma música alheia.É uma coisa que não me ocorre.Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa.Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro,então,sentir o prazer que sinto a cada composição minha,por menor que seja”.
GMN : Você poderia,então,citar uma música de outro autor que você inveja ?
Chico Buarque : “Um milhão de músicas.Não tenho uma preferida,mas agora que você falou,me bateu uma na lembrança : “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito,porque é impossível que eu fizesse uma música dessa.É outra cabeça.Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação,assim como músicas de Noel Rosa,Cartola,Caetano Veloso,Gilberto Gil,Milton Nascimento. Recorro a um recurso : tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom.Ao me fazer parceiro,eu crio a música com eles.Ao fazer a letra para uma música alheia,eu estou me apropriando um pouco dessa música – que não é minha”.
GMN : Depois de fazer “Paratodos”,você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas.Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos ?
Chico Buarque : “Pior ! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando.O trabalho vai ficando mais difícil mas também mais prazeroso.Quando termina,você se sente cansado,mas satisfeito.As músicas saem,talvez,com menos espontaneidade,com mais intensidade” .
GMN : A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro ?
Chico Buarque : “Talvez a música popular seja uma arte de juventude.Imagino que seja,porque o consumidor de música popular é,sobretudo,o adolescente,o jovem de vinte a trinta anos.Depois,começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra,mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos,você tem um baú de música inéditas. Depois,as músicas vão escasseando.Você fica mais exigente.Chega,então,um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem.Depois,o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.Talvez seja melhor procurar outro afazer,outra ocupação”.
GMN : Não é o que você vem fazendo nos últimos anos,com a dedicação cada vez maior à literatura ?
Chico Buarque : “A literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso : ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude – que é o motor da música popular”.
GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?
Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental.Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.
GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?
Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.
GMN : Quando estava exilado na Itália,você teve contato com Garrincha.É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?
Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música….Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma.A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória,mais ingênua,talvez. Mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.
GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?
Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações, se referia a detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto.Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor. Não é um compositor. Talvez seja mais do que compositor,porque inventa a partir de uma música alheia. E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava -talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado,como “Os Pés da Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reiventava um samba”.
GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?
Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma.Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat.Era impressionante.As pessoas paravam na rua.Garrincha era muito popular.Isso aconteceu entre 1969 e 1970.Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo.Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962.Mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.
GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?
Chico Buarque : “Nunca escolhi ser músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão.Mas eu tinha essa ilusão,na época,com bastante segurança.Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque
permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja”.
GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?
Chico Buarque : “Eu,que jogava tanto, um dia fui ao Juventus, na rua Javari,em São Paulo, para fazer um teste. Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste….Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar,esperar e esperar,fui embora.Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste, porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.
GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande, como o Palmeiras, o Corinthians ou o São Paulo ?
Chico Buarque : “Porque eu achava que,num time mais fraco,eu teria uma vaga na certa….(ri)”.
GMN : “Você,como especialista em futebol,jogador amador,técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama,poderia escalar a seleção brasileira de tods os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?
Chico Buarque : “É impossível.A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira.Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos.Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos.É uma comparação absurda”.
GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro, por exemplo….
Chico Buarque : “Canhoteiro,Pagão.Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mane Garrincha,Didi,Pagão,Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares,aqueles que a gente pensa que são só nossos,porque ninguém conhece.Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar.Quando eu morava em São Paulo,via jogadores como Canhoteiro e Pagão.Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio,então,não conhecia esses jogadores.Quando falo de Canhoteiro e Pagão,nem sempre conhecem,aqui no Rio.Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo,depois de passar férias no Rio,por volta de 1955,antes da Copa,portanto,eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.
GMN : Quando criança –ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?
Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo,porque morava perto do estádio do Pacaembu.Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada.Fui lá peruar,ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”.Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa.A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe,durante os jogos.Ver de perto um jogador era um acontecimento”.
GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?
Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus. Eu estava ali de boca aberta,com cara de babaca, olhando os jogadores. Almir,então,começou a caçoar de mim. Depois de ter sido chamado na primeira convocação, num grupo de quarenta e quatro jogadores,Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.
GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?
Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade.Mas me deixou assustado,porque ouvi o jogo pelo rádio.O Maracanã,”o maior estádio do mundo”,era um sonho na minha cabeça.Eu me lembro exatamente de que o locutor,chamado Pedro Luís,disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo,com duzentas mil pessoas.Não prestei atenção ao jogo.Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.
GMN : Quem levou ao estádio ,em São Paulo,para ver o jogo do Brasil contra a Suiça pela Copa de 50 ?
Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol”.
GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro,mas aparece pouco como tema de músicas. É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que ?
Chico Buarque : ”Não sei.O futebol é próximo da fita do brasileiro,assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos.Jogador de futebol tem mania de batucar,canta na concentração.Isso não é de hoje,existia já nos anos cinqüenta.Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.
GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol,vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?
Chico Buarque : “Não é só música.Há pouca literatura tratando de futebol,há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente,traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema.Prometo fazer mais umas duas ou três”.
GMN : Quando joga futebol,que posição você ocupa ?
Chico Buarque : “Jogo em todas.Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.
GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?
Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol. É uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então,eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “….Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.
GMN : O pessoal acreditava ?
Chico Buarque : “Não !” (rindo)
GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse, então, que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?
Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado,não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo.Se você tem qualquer problema,dê uma caminhada -porque ajuda,inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem ,a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama.Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.
GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?
Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar,criar e compor”.
GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?
Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá, porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais.Mas caminhando tive a idéia de várias coisas.A verdade é a seguinte : você compõe com o violão,mas quando o momento em que o processo fica encrencado,você tem de sair andando. Não pode ficar parado,com o violão,a vida inteira. Então,para resolver impasses,o melhor é caminhar”.
GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?
Chico Buarque :”Eu nunca disse isso.As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura,a política interferia na criação,o que nos incomodava.Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”,não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.
GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?
Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã.De repente,chegou uma turma de batedores,com sirenes,com a truculência que é um pouco própria de autoridades,mas na época,era muito mais acentuada.”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro.Fiquei vendo de longe aquele figura”.
GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?
Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.
GMN : Em 1978,você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso,em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro,Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo.Como é que você recebeu essa crítica ?
Chico Buarque : “Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão. Parece que fiquei ofendido.Não. É normal,é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento.É da natureza de um político.Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser.Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar.Mas é a opinião de um político.Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim. Antes,gostava”.
GMN : É verdade que você tem um irmão alemão ?
Chico Buarque : “Eu tenho um meio- irmão alemão.Não sei se ainda tenho.Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar.Depois,perdeu de vista,porque voltou para o Brasil,onde se casou.Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve na Alemanha.A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração.O meu pai providenciou.Depois da guerra,não teve notícias”.
GMN : Você chegou a procurar esse irmão ?
Chico Buarque : “Uma vez,quando fui a Berlim,tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu.Não se a mãe não contou a ele quem era o pai.A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo.Um pai alemão pode te-lo adotado.O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele : “Por acaso o senhor é filho de alemão ? “. E ele dizia : “Não.Sou pai de alemão”.
GMN : O seu pai disse, num artigo, que você, quando era estudante, gostava de desenhar cidades. Havia sempre uma fonte no meio da praça,nas cidades que você desenhava. Você,que já foi estudante de arquitetura,ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas ?
Chico Buarque : “Desenho cidades enormes,gigantescas,com fontes,com praças,com nomes,com ruas.Quando não desenho,penso.Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço.Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino.São as melhores de todas”.
GMN : Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias ?
Chico Buarque : “Não vou contar.
As cidades têm nomes.Mas não posso nem pronunciar aqui.Vou passar vergonha” .
GMN : Por quê ?
Chico Buarque : “Porque são nomes que têm consoantes que nem existem.São idéias bobas”.
GMN : Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio.Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz ? É o assédio dos fãs,a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa ?
Chico Buarque : “Assédio de fãs,no meu caso,não existe,porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito.Se você andar como uma pessoa qualquer,você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem,dizem “olá,Chico,tudo bem ? “.Não passa disso.Não vou dizer que é mau.É bom,é simpático,é gostoso.Não tenho nada contra”.
GMN : Mas a imprensa incomoda você de vez em quando…
Chico Buarque : “Quando quer,a imprensa incomoda” .
GMN : É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres ?
Chico Buarque : “Eu falo bastante.Falo mais do que devia.Já estou falando aqui há meia-hora com você ! Mas é que não tenho tanto assunto.Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas”.
GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?
Chico Buarque(rindo) :”Êpa !. Não sei.Podia ser “ êpa”….
GMN : Com interrogação ou com exclamação ?
Chico Buarque : “Com interrogação.A primeira palavra seria : êpa ? “.
(Entrevista gravada em 1998)