Especial/Carl Bernstein ATENÇÃO, ESTUDANTES DE JORNALISMO! EIS AS LIÇÕES DO REPÓRTER QUE DERRUBOU UM PRESIDENTE!

seg, 26/04/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

BERNSTEINUMDSC01894Carl Bernstein é um repórter que consegue ser ídolo de repórteres. Não é por acaso: o homem é co-autor da série de reportagens que, em última instância, terminaram obrigando um presidente dos Estados Unidos a renunciar.

Ah,o sonho secreto de todo repórter : derrubar um presidente, seja lá de que for.

Quando Bernstein passou pelo Brasil, em 2007, para fazer uma conferência em São Paulo e se divertir no Rio de Janeiro, persegui a fera. Valeu a pena. Tive uma aula sobre jornalismo. O que ele disse – especialmente, sobre jornalismo investigativo – renderia um seminário.

Desta vez, pretendo dar férias a Mr.Bernstein. Já o importunei suficientemente. Mas, a quem interessar possa, eis o resultado da nossa Maratona Bernstein. O post é grande. Que seja assim.  Porque é preciso tirar partido de uma conquista: a Internet derrubou a ditadura do espaço. A Bastilha que horrorizava repórteres ruiu. Já não há, diante de nós, um editor-açougueiro com uma faca afiada nas mãos e gosto de sangue na boca, disposto a cortar,cortar,cortar. Então, allons, enfans de la patrie. Le jour de gloire est arrivé: é hora de ter uma aula gratuita com Mr.Bernstein. Voilà : 

BERNSTEINDOISVALEDSC01887

 Quem ? Carl Bernstein e Bob Woodward. O quê ? Publicaram no Washington Post reportagens que levaram um presidente dos Estados Unidos a renunciar. Quando ? Entre 1972 e 1974. Onde ? Em Washington. Por quê ? Porque são repórteres puro-sangue.

Se o Quarto Poder existe, ei-lo , então: os cabelos estão cem por cento grisalhos; os olhos fixam com firmeza o interlocutor; o sorriso parece sincero e cativante; a mão esquerda exibe uma aliança; a barriga ligeiramente saliente clama por uma boa dieta. Nome da fera: Carl Bernstein. Se fosse dado a bravatas, Bernstein poderia bater no peito e dizer que, em parceria com Woodward, derrubou um presidente americano. Jamais alguém encarnou com tanta propriedade, portanto, o chamado “Quarto Poder”.

Quando o Washington Post começou a publicar insistentes reportagens sobre o arrombamento dos escritórios do Partido Democrata no Edifício Watergate, a dona do jornal, Katharina Graham, ficou intrigada com o desdém com que outros jornalistas tratavam do assunto. Perguntou ao editor-chefe Ben Bradlee:

“Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?”.

O arrombamento – ocorrido no dia dezesseis de junho de 1972 – parecia um caso policial sem importância. Mas a persistência dos repórteres do Washington Post expôs um escândalo: os arrombadores estavam, na verdade, fazendo espionagem política, a serviço de assessores do presidente Richard Nixon. A Casa Branca estava envolvida no jogo sujo.

O escândalo revelado pelos repórteres terminou obrigando o presidente a renunciar. Mas ali, no início de tudo, ninguém seria capaz de imaginar a dimensão que o escândalo alcançaria. O que havia eram apenas indícios, pistas, fumaça. O fogo apareceria adiante.

 “Cadê o resto da imprensa ?”

Não se sabe. Mas, aos vinte e oito anos de idade, Carl Bernstein estava no território que é o habitat natural de todo repórter: a rua. Sob a bênção de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres puro-sangue, buscava pistas que esclarecessem o arrombamento do Edifício Watergate, sede do Partido Democrata – que fazia oposição ao presidente Richard Nixon, eleito pelo Partido Republicano.

O fio da meada não demorou a ser descoberto: um dos arrombadores do Edifício Watergate trazia, no bolso, um pedaço de papel com a anotação “W. House”. Parecia ser a abreviação de White House, Casa Branca. E um nome: Howard Hunt.

Bob Woodward arriscou: deu um telefonema para a Casa Branca, para checar se por acaso existiria algum sr. Hunt entre os servidores. A telefonista disse que sim. Iria transferir a ligação. Ninguém atendeu no ramal. A ligação voltou para a telefonista – que informou a “Talvez o sr. Hunt esteja no escritório do sr. Colson”.

Tratava-se de Charles Colson, um dos principais assessores do presidente.

Washington Post 1 x Nixon 0.

A descoberta provocaria uma “nova descarga de adrenalina” na equipe do Washington Post– diria, tempos depois, o editor-chefe Bem Bradlee, ao descrever a cena.

Quando finalmente conseguiu falar com Hunt, o repórter foi direto ao assunto: “Como é que o nome do senhor foi parar numa anotação encontrada com os arrombadores do Edifício Watergate ?”.

O assessor de Nixon fez silêncio, antes de suspirar, desolado:

“Meu bom Deus…..”

Washington Post 2 x Nixon 0.

O caminho estava aberto para que o jornal estabelecesse uma ligação indesmentível entre o governo do presidente Nixon e os arrombadores que tentavam instalar equipamentos de escuta na sede do Partido Democrata, no Edifício Watergate.

Carl Bernstein juntou as duas pontas do fio que provocaria um curto-circuito fatal no governo Nixon: com ajuda de um investigador que estava trabalhando no caso por conta própria, descobriu que as notas de dólar – novas em folha – encontradas com os arrombadores tinham saído de um banco em Miami.

 Próximo passo: descobrir se algum dos arrombadores tinha conta na agência. Tinha. Bernard Barker, um dos homens presos na sede do partido, tinha aberto não apenas uma, mas duas contas.

Cartada final: quem tinha abastecido esta conta ? Descobriu-se um cheque de vinte e cinco mil dólares, emitido por um certo Kenneth H. Dahlberg. Depois de uma nova e frenética busca nos catálogos telefônicos, os repórteres conseguem encontrar mister Dahlberg – que informa: como simpatizante de Richard Nixon, tinha recolhido doações em dinheiro para a campanha de reeleição do presidente. As doações foram transformadas em cheque, devidamente encaminhado ao chefe do Comitê de Reeleição do Presidente. Dali, o dinheiro foi parar nas mãos dos homens que tentavam espionar a sede do Partido Democrata.  Washington Post 3 x Nixon 0. Placar final.

“Bingo!”, escreveria Bradlee.

O cerco tinha se fechado. A partir daí, em meio a uma crise política que se arrastou por dois anos, o Escândalo de Watergate engoliu o governo Nixon. Gravações de diálogos entre Nixon e assessores provaram que o presidente tinha conhecimento das operações de espionagem e sabotagem de adversários políticos. A Suprema Corte obrigou o presidente a divulgar as gravações.

O Senado abriu uma investigação que, fatalmente, levaria ao impeachment do presidente. Nixon convocou uma rede nacional de rádio e televisão para as nove horas da noite de de oito de agosto de 1974 para entregar os pontos: anunciou que, ao meio-dia do dia nove, entregaria o cargo ao vice-presidente Gerald Ford.
A dupla Woodward-Bernstein ganhou fama, dinheiro e reconhecimento. Em dois livros de sucesso internacional – “Todos os Homens do Presidente” e “Os Últimos Dias” – os dois descreveram a saga iniciada com a cobertura de um arrombamento que parecia banal.

Dirigido por Alan Pakula, o filme baseado no livro “Todos os Homens do Presidente” virou um clássico do cinema político. Os atores foram escolhidos a dedo entre o primeiro time de Hollywood: Dustin Hoffman encarnou Carl Bernstein nas telas. Robert Redford fez o papel de Bob Woodward.
 

O autor de um perfil biográfico de Bernstein notou que, em apenas dois anos, a vida do repórter sofreu uma transformação inimaginável. O anônimo repórter que, até então, se ocupava da cobertura de assuntos locais, como arrombamentos sem grande importância, viu-se transformado em modelo de um dos maiores atores do cinema: Dustin Hoffmann passou a freqüentar a redação do Washington Post para observar os maneirismos de Bernstein.

A dupla virou espelho de uma geração inteira de jornalistas. O chefe dos dois, Ben Bradlee, diz que, nos anos seguintes ao Escândalo de Watergate, se divertia com a voracidade demonstrada por jovens repórteres na redação do jornal. Inspirados pelo rigor que a dupla Woodward-Bernstein demonstrava na apuração de informações, os aprendizes voltavam da cobertura de um incêndio banal, num subúrbio remoto, dizendo coisas como “descobri que o chefe dos bombeiros era anti-semita!”.

Bradlee diz que a mitologia criada em torno dos dois repórteres teve um efeito positivo: atraiu para o jornalismo “jovens, brilhantes e talentosos homens e mulheres que poderiam ter se encaminhado para outras profissões”.

Ao contrário de Woodward – que, na vida pessoal, fez a opção pela discrição – Bernstein enfrentou turbulências pós-fama: teve problemas com álcool, torrou o dinheiro que ganhou com os livros e o filme sobre o escândalo, freqüentou as páginas dos tablóides como personagem de fofocas.

Três décadas depois de Watergate, no entanto, os dois exibem um fôlego admirável: não deixaram de ser repórteres. Permanecem produzindo.
Bob Woodward pediu e, surpreso, recebeu autorização para freqüentar os bastidores da Casa Branca porque queria documentar o que levou o governo Bush a intervir militarmente no Iraque, em nome do combate ao terrorismo. Resultado: o livro “Plano de Ataque”.

Bernstein lançou, nos anos noventa, uma alentada biografia do Papa João Paulo II, em parceria com um jornalista italiano. Em seguida, embarcou numa empreitada ambiciosa: a biografia da ex-primeira dama Hillary Clinton, lançada em 2007.

A grande lição que o repórter Bernstein dá pode ser resumida em poucas linhas: quando vai apurar uma reportagem, o repórter não deve cair, jamais, na tentação de fazer pré-julgamentos sobre fatos e personagens. Bernstein é claro e direto: os jornalistas devem reaprender a ouvir. É uma obsessão que ele cultiva. Diz que só obteve sucesso na investigação sobre o Escândalo de Watergate porque ouvia,ouvia e ouvia ( daqui a pouco, na entrevista, ele falará sobre esta virtude que todo repórter deve cultivar incondicionalmente). Ao contrário do que tantos jornalistas fazem, não se comportava como se fosse um político: não simpatizava, claro, com as tramóias armadas por integrantes do Partido Republicano nos bastidores do governo Nixon, mas tratou de cultivar fontes de informação importantíssimas entre os republicanos. É assim que se faz jornalismo. Bernstein é inimigo do jornalismo engajado.

O papel do repórter, diz, é e sempre será o de apurar os fatos com rigor para apresentar ao público “a melhor versão possível da verdade”. Numa apuração, todo detalhe é importante. Bernstein e Woodward poderiam cair na tentação de articular teses grandiosas sobre a renúncia de Nixon. Mas, não. Em “Os Últimas Dias”, eles apegam-se aos fatos: informam, por exemplo, que o presidente dormiu apenas três horas no dia em que anunciaria ao mundo que iria renunciar ao cargo. Ocupado na preparação do discurso que faria em rede nacional de rádio e TV, o presidente disparou um último telefonema para um assessor às 5 e 14 da manhã. Três horas depois, Richard Nixon estava de pé. O café da manhã, informam os repórteres, foi à base de cereal, leite e um suco de laranja. Milton Pitts, o barbeiro que há anos atendia a Nixon, recebeu às dez da manhã um telefonema da Casa Branca: o presidente queria que ele estivesse lá às dez e quinze. Pitts chegou na hora. Ficou sozinho com o presidente durante o tempo em que durou o corte de cabelo: vinte e dois minutos.

Terminada a sessão, Nixon estava pronto para o mais longo dos dias: pela primeira vez na história, um presidente americano renunciaria ao cargo. Os últimos dias de Nixon na Casa Branca foram registrados minuciosamente por Bernstein e Woodward nas 470 páginas de “The Final Days”. Os dois produziram o que o jornalismo faz: o primeiro rascunho da História.

Agora, ei-lo, numa passagem rápida por São Paulo e pelo Rio de Janeiro. Resolvo embarcar numa Maratona Bernstein, com um gravador, um bloco de anotações e uma câmera. Missão: importunar o repórter do Caso Watergate. A Maratona se dividiu em três frentes. Primeira: uma entrevista exclusiva com Bernstein – que desembarcara em São Paulo para fazer uma conferência na Câmara Americana do Comércio. Segunda: um encontro no Rio de Janeiro, a convite do próprio Bernstein, numa noite que reservaria pelo menos uma cena surpreendente. “O repórter que derrubou um presidente” empunhou uma guitarra para tocar clássicos do rock. Terceira: uma garimpagem de tudo o que ele disse na rápida expedição brasileira.

PRIMEIRA CENA: FRENTE A FRENTE COM A FERA

Uma velha pergunta: qual seria o primeiro conselho que você daria a um jovem repórter ?

“Seja um bom ouvinte! Penso que jornalistas se tornaram maus ouvintes. Com frequência, vão fazer uma reportagem a partir de noções pré-concebidas sobre o assunto, especialmente quando trabalham com câmeras. Fazem perguntas apressadas e vão embora.

Minha experiência me ensinou que o que eu pensava que a reportagem seria – tanto no caso de Watergate quanto no de Hillary Clinton, por exemplo – era muito diferente do que acabou acontecendo. Porque eu ouço as pessoas. Eu as respeito, sejam elas quem forem. A maioria de nossas fontes no caso Watergate era gente do Partido Republicano que trabalhava ao lado de Richard Nixon ! E eu os respeitava.

Penso que hoje há cada vez menos algo assim. Quando você se senta para ouvir um entrevistado, precisa dar a ele tempo para se explicar. Você termina aprendendo coisas incríveis! Quase sempre, é algo diferente daquilo que a gente esperava quando chega com a lista de perguntas.

Se você tivesse a chance de fazer uma última pergunta a Richard Nixon, que pergunta seria esta ?

” Perguntaria: por quê ? Para quê ?”
( Bernstein fica em silêncio, como se estivesse acalentando até hoje uma dúvida irrespondida: como é que um presidente que batia records de popularidade precisava espionar o partido adversário, num ano eleitoral ?).

Por que é você não vai agora para o Afeganistão, à procura de Bin Laden ? Qual a primeira pergunta que você faria a ele ?

“Não tenho idéia. Perguntaria: como é que você justifica a natureza bárbara dos seus atos contra gente inocente ? Penso que ele é um monstro”.

Você disse que “torrou” os três milhões de dólares que ganhou com os livros e o filme sobre o Escândalo de Watergate. Você diria que não soube lidar com a fama, naquele período ?

“Eu não era particularmente bom neste aspecto, no início de tudo. Precisa-se de tempo para lidar com este dinheiro….Mas gostei. Não tenho muitos lamentos a fazer sobre como o dinheiro foi gasto : com casas ou seja o que for….

O importante é : precisa-se de um tempo para se acostumar com a atenção que é dispensada a você e não ficar convencido. Hoje, espero que tenha adquirido alguma lucidez para não levar as coisas tão a sério e não exagerar…

A resposta é : o melhor é continuar a trabalhar.Continue escrevendo livros. Continue fazendo coisas para a TV. Continue escrevendo seus artigos. Não seja imodesto”

Como é que o senhor define a intervenção americana no Iraque ?

“É uma catástrofe, um desastre. É o resultado de um tipo de inabilidade e desonestidade por parte de George Bush. Os subterfúgios e informações que ele sabia que não eram exatos foram usados para convencer o Congresso e o povo dos Estados Unidos de que deveríamos entrar numa guerra que, na verdade, era mal-conduzida e ideológica.

É uma guerra que não nos protege contra o terrorismo, ao contrário do que aconteceu com a decisão – acertada – de lançar um ataque contra forças baseadas no Afeganistão.

Eu estive no Iraque. Visitei o país meses antes da primeira Guerra do Golfo. Não era um estado terrorista. Era um estado totalitário, um estado estalinista, um estado laico. Parte da dificuldade vem do fato de que George Bush tem demonstrado não apenas incompetência,mas falta de sinceridade e de honestidade. O Iraque tem sido uma catástrofe para nosso país e para as centenas de milhares de americanos e de iraquianos que têm sido mortos. O pior é que ele tem intensificado o terrorismo.

Além de tudo, Bush tem, no âmbito interno, enfraquecido princípios constitucionais e legais. A presidência de George Bush vai ser vista como, talvez, a mais desastrosa da moderna história americana. Precisaremos de décadas para nos recuperar de seus excessos e do que ele tem feito”.
Com outras palavras, você tem chamado Bush de “mentiroso”. Bush mente melhor ou pior do que Richard Nixon ?
“Não estou certo de ter usado a palavra mentiroso. Mas há uma história de inabilidades, inverdades e manipulação cometidas por George Bush, não apenas sobre a guerra, mas até sobre coisas tão básicas quanto um furacão.

O que aconteceu? Um furacão iria atingir Nova Orleans. Bush foi avisado por funcionários da área meteorológica diante das câmeras. Disseram que os níveis de segurança poderiam ser ultrapassados. Durante meses e meses, Bush dizia que não sabia que os níveis poderiam ser ultrapassados pela tempestade.
Bush é sui-generis, comparado com a história da presidência. Porque ele tem um desprezo pelos fatos e pela verdade que é diferente do de Nixon – que tinha uma grande capacidade intelectual, independentemente do que se poderia pensar sobre suas políticas ou sobre o tipo psicológico que ele tinha. Já George Bush trouxe para a presidência uma falta de habilidade, uma faltas de sutileza, uma falta de curiosidade e de preocupação com os fatos e com a vida real.

Bush tem uma visão fantasiosa sobre o que é o mundo. E também sobre o papel dos Estados Unidos. Ainda que sejamos uma superportência, o exercício de poderes numa condição dessas é um mecanismo delicado.

Não há sutileza ou delicadeza que Bush seja capaz de praticar”
Você compraria um carro usado de George Bush ?

“Sim. Porque ele entende de carros”

Repórteres gostam de expor a vida privada dos outros. O que é que você sentiu quando a imprensa publicou que você teve um caso com Elizabeth Taylor ?

“É verdade….” ( ri)

Isso é uma pergunta ou uma resposta ? 

“Não chegou a ser um sacrifício ter conhecido Elizabeth Taylor – e também ver a notícia publicada. É um pequeno momento na vida.

Há um problema real quando jornalistas se intrometem na vida dos seus personagens: quando apuram informações que, na verdade, são irrelevantes para entender um assunto estão cometendo um excesso. Isso aconteceu comigo uma vez ? Aconteceu. Mas não vou ficar reclamando….

Só espero que eu consiga ver a vida inteira da maneira como vi – por exemplo – a vida de Hilary Clinton: tento ver quem ela é , quais são os valores que ela cultiva, assim como fiz com Bill Clinton – que também é personagem da biografia.

Olho para os fatos e tento mostrar o contexto e o peso de cada um, em seus vários aspectos. É tudo o que eu poderia pedir a quem fosse escrever sobre mim. Livros foram publicados sobre mim e Bob Woodward. Mas estamos esperando um que seja realmente bom.

Não aconteceu ainda. Gostaríamos que o livro “Todos os Homens do Presidente” fosse o texto básico. Mas a vida segue. Um dia alguém vai fazer a coisa certa. Certamente não será da maneira que nós pensamos que deveria ser. Mas penso que acontecerá. Não estamos numa posição de reclamar da maneira com que os jornalistas nos olham”….

Uma dúvida – e desculpe perguntar: Elizabeth Taylor não era velha demais para você ?

” Isso aconteceu há muito tempo. Aconteceu em minha juventude. E na juventude relativa de Elizabeth Taylor. É uma pessoa maravilhosa. É uma dessas experiências de vida que você fica satisfeito em ter”
Ter sido preso por estar dirigindo alcoolizado foi a coisa mais embaraçosa que você já fez em público?

“Não sei. Certamente, não foi. Fiquei feliz por ter sido apanhado, porque vi que era tempo de parar de beber. Faz vinte e dois anos que não tomo um drinque. Parei. Hoje, bebo Coca-Cola” 

Qual foi a informação mais embaraçosa que você descobriu sobre a família Clinton ? É verdade que o presidente eleito Bill Clinton recebeu a visita íntima de uma ex-amante no dia em que ele estava seguindo para Washington para assumir a presidência ?

“Não estou preocupado com embaraços. Não estou interessado em algo assim. O objetivo de escrever um livro não é causar embaraço. É tentar entender o que a personagem do meu livro é. E como ela tem vivido a vida. Uma das coisas que tive grande cuidado em fazer foi não escrever um balanço sensacionalista da vida sexual de Bill Clinton. Não me preocupo tanto com algo assim.

O que me parece importante é o seguinte: desde jovem, Bill Clinton era visto – por muitos – como o maior talento político de uma geração. Hilary Clinton reconhecia este fato. Mas ela também sabia que o que ela chamava de “compulsão sexual” de Bill Clinton poderia fazer com que ele deixasse de ser politicamente viável. Hilary Clinton começou, então,a encobrir os efeitos dessas compulsões e a lidar com as consequências.

Isso se tornou uma grande preocupação para ela: que ele pudesse se tornar politicamente viável. Isso é que é importante. Mas saber se alguém o visitou um dia antes ou se ele viu alguém não é algo que realmente me interesse. Não é a questão”

( Em “A Woman in Charge”, Bernstein passa em revista os anos de formação da ex-primeira dama: “Hillary chegou à maioridade numa época nos Estados Unidos em que a sexualidade das mulheres, especialmente das jovens mulheres, estava passando por uma mudança profunda, em grande medida por causa da disponibilidade fácil da “pílula”. Desde o começo do romance com Hillary, Geoff Shields tinha consciência tanto do desejo dela por experiências sexuais “responsáveis” como da extraordinária seriedade de propósito, disciplina e foco. Que ela era “pessalmente muito conservadora” ficou óbvio desde o início da relação, que floresceu no auge da permissividade do fim dos anos 60 (…) Shields nunca ficou sabendo se ela fumou maconha (embora o cheiro de baseado pairasse nos halls de entrada do dormitório. Nunca a viu se exceder na bebida – e ela não era promíscua. Ainda assim, ela com certeza não era uma daquelas mulheres de Wellesley que eram consideradas “caxias” Gostava de festas e de dançar ao som de Elvis, Beatles e Supremes”)

 
Depois de entrevistar duzentas pessoas, trabalhar dezoito horas por dia por um ano e escrever seiscentas e quarenta páginas, o senhor pode definir Hilary Clinton em apenas uma frase ?

“Não. E é por esta razão que se escreve um livro – e se gasta tanta tempo. O que posso dizer é que ela é a mulher mais famosa do mundo e, provavelmente, a menos conhecida, em termos do que a realidade da vida tem sido para ela.

É por este motivo que passei sete anos trabalhando no assunto. O resultado foram seiscentas e quarenta páginas. É um lugar-comum dizer que alguém é complicado. Mas Hilary Clinton é – de verdade”.

Por que Hilary Clinton se recusou a dar entrevista você ? Isso é um caso de falta de confiança no repórter ?

” Não. Acontece que ela gosta de controlar a maneira como é vista. Disse-me que poderia se sentar para falar comigo. Mas, quando decidiu concorrer à presidência, desistiu da entrevista. É alguém que vive sempre tentando talhar a própria imagem. Não gosta da imprensa. Temos amigos em comum.

Hilary disse aos amigos: “Se vocês quiserem falar com Carl, falem. Depende de vocês”. Mas ela não chega a ser fanática por investigações independentes……

O desapreço de Hilary pela imprensa é um dos temas da biografia. É – de certa maneira – um subtexto. Em alguns casos, o desapreço é justificado. Em outros, é um caso de arrogância. Hilary Clinton conhece o meu trabalho. Nós nos conhecemos.

Se ela tivesse se sentado para falar comigo, o conteúdo básico da biografia não seria afetado, mas ela teria uma chance de dizer: “Carl, você deve ouvir fulano ou sicrano.Você perdeu este ponto. Você não entendeu bem o que aconteceu aqui. Deve encarar de outra maneira….” . Hilary poderia ter esta oportunidade.

Isso a ajudaria a complementar o retrato que eu estava traçando – de uma tal maneira que ela poderia ficar mais satisfeita com o resultado. Mas, ao mesmo tempo, os assessores de Clinton entendem. As resenhas sobre a biografia foram ótimas. Porque a biografia humaniza Hilary.

Penso que este lado humano é algo com o qual ela tem tido muitos problemas, especialmente porque os balanços que Hilary Clinton fez da própria vida – em textos e falas – deixam de fora boa parte da história”.

( Bernstein escreveria na biografia: “Em seus primeiros meses de Casa Branca, tanto Bill como Hillary foram alimentados à força com uma verdade impalatável: ao contrário de suas expectativas, não dava para comandar a capital tão facilmente como eles tinham dominado a política de um pequeno estado do sul. Bill amadureceu politicamente durante seus oito anos como presidente. Mas, no caráter, ele permaneceu basicamente o mesmo: ambicioso, narcisista, charmoso, brilhante, esperto, indisciplinado, incrivelmente capaz – e, com freqüência, uma decepção pessoalmente”)

O Washington Post escreveu que a eterna fascinação provocada pelo trabalho que você fez durante o escândalo de Watergate é como se fosse uma medalha que você jamais poderá tirar do peito; uma honra da qual você jamais poderá fugir. Você se incomoda em ser citado pelo resto da vida como um dos repórteres que, no fim das contas, acabaram com a carreira de um presidente americano ? 

” As coisas são assim. É como um jogador de beisebol que será lembrado por uma jogada. Não é algo que me preocupe. Eu e Bob nos sentimos muito bem com o trabalho que fizemos na época e as oportunidades que tivemos desde então. Nós dois tivemos vidas plenas e maravilhosas, além de oportunidades que nos foram oferecidas. Posso estar aqui, por exemplo, para falar com gente maravilhosa, ver o mundo de uma maneira diferente da de outros jornalistas, talvez. Tivemos sorte. Aprecio realmente o lado sortudo de tudo. É bom”

Você e Bob Woodward venderam para a Universidade do Texas todas as anotações e documentos que vocês reuniram durante o escândalo de Watergate. Qual foi o preço ? 

“Cinco milhões de dólares. Não sei como responder a esta pergunta, a não ser dizendo que nós queríamos ter a certeza de que todas as anotações e os registros do que fizemos ficassem protegidos e abertos a pesquisadores – se bem que há fontes que foram mantidas em sigilo. Era óbvio que o material tinha um valor histórico . Quando você vende um trabalho, como um livro, por exemplo, há um valor monetário envolvido. Tiramos partido desse fato. Mas obedecemos, espero, todos as questões éticas envolvidas”.

É este o preço da história ? 

“Se ninguém tivesse oferecido dinheiro por estes papéis, nós os teríamos doado, de qualquer maneira. O importante era que eles ficassem disponíveis para a História. Há um mercado para itens de interesse histórico. Nós participamos desse mercado, assim como participaríamos com um livro ou algo que tivesse um aspecto comercial. Descobrimos que havia um mercado para documentos assim. Mas, ainda que não existisse, nossa intenção era,sempre,a de que os documentos ficassem protegidos e disponíveis”

Que tipo de pergunta inconveniente faria você encerrar esta entrevista agora ?

“Algo que eu achasse que tivesse a intenção de atingir meus filhos”

Um de seus filhos toca guitarra numa banda punk. Alguma vez ele vez alguma pergunta a você sobre Richard Nixon ?

“Em primeiro lugar, todos devem ir ao site My Space ponto com e procurar pela banda do meu filho, Max Bernstein. A banda é The Actual. É produzido por Scott Weiland – do grupo Velvet Revolver. É um grande músico. Fico orgulhoso , porque é meu filho. Também tenho orgulho do meu filho jornalista. Todos dois me perguntaram muitas vezes sobre Richard Nixon e sobre Watergate. Os dois têm uma saudável irreverência para levar a sério demais o trabalho dos pais”
Você é um ídolo – e um herói – para muitos repórteres. Quem é o herói de Carl Bernstein ?

“Quando eu tinha dezesseis anos de idade, fui trabalhar um belo e velho jornal que jjá nem existe, o Washington Star, como mensageiro. Havia um grande editor de assuntos locais, chamado Sid Epstein, que morreu há poucos anos. Falei no funeral. Sid me ensinou muito do que sei . Era um repórter e editor da velha guarda. Se eu pudesse citar o nome de uma pessoa, seria ele. (Sid Epstein trabalhou durante décadas no Washington Star – um jornal vespertino que circulou durante cento e trinta anos na capital americana, até fechar as portas, em 1981, em meio a uma crise financeira)
.
O outro seria I.F. Stone, que era um grande jornalista de esquerda. Era mantido fora da grande imprensa, mas vivia fuçando e persistindo. Sem ter grande acesso a fontes dos governos, ele usava fontes públicas de informação para obter a melhor versão possível da verdade. ( Jornalista independente americano, I.F. Stone (1907-1989) publicava por conta própria uma jornal que chegou a ter uma circulação de setenta mil exemplares nos anos sessenta. Fazia oposição à guerra do Vietnam. Conseguiu vários furos de reportagem)

H.L Mencken também”

Mencken escreveu uma vez um artigo contra os zoológicos! É o único jornalista do mundo que escreveu um artigo contra os zoológicos.

……..”Era um cínico profissional! Eu não faria coisas como as que ele fez, mas adoro lê-lo . (H.L.Mencken ( 1880- 1956), jornalista considerado iconoclasta, era conhecido por seus textos irônicos e pelas críticas ácidas que dirigia contra todo tipo de alvo. Chegou a escrever artigos contra os jardins zoológicos)
Há grandes jornalistas na geração anterior à minha, como David Halberstam, que teve um livro publicado nos Estados Unidos agora sobre a Guerra da Coréia (Premiado jornalista americano, autor de livros-reportagem sobre os barões da imprensa e sobre a Guerra do Vietnam, morreu em 2007, aos 73 anos, num acidente de carro, a caminho de uma entrevista. Deixou um livro inédito sobre a Guerra da Coréia, lançado postumamente).

E Gay Talese (Considerado um dos criadores do chamado Novo Jornalismo americano, marcado pelo uso de recursos literários em textos jornalísticos. Uma de suas reportagens mais conhecidas é um perfil do cantor Frank Sinatra) São jornalistas notáveis que também tinham ótimos textos. Não nos preocupamos tanto hoje – como deveríamos – com o texto. A maioria dos grandes jornalistas tinha excelentes textos.

 

SEGUNDA CENA: ANOTAÇÕES LIGEIRAS SOBRE OS BASTIDORES DE UMA COBERTURA: NUMA MADRUGADA NA URCA, O SUPER-REPÓRTER EMPUNHA UMA GUITARRA

Uma cena inesperada na noite do Rio de Janeiro: o repórter que derrubou o presidente dos Estados Unidos empunha uma guitarra de madrugada na Urca para tocar rock-and-roll.

Aconteceu diante de uma reduzidíssima platéia. Quando o concerto improvisado do repórter mais famoso do mundo acabou, o público era formado por exatamente seis espectadores, sentados diante da fera. Testemunhei a cena.

Ao final de uma recepção oferecida a ele por Ana Maria Tornaghi num casarão na Urca, Carl Bernstein – de passagem pelo Rio depois de fazer uma conferência em São Paulo na Câmara Americana de Comércio – surpreendeu a todos: pegou uma guitarra, cantou e tocou pérolas como “Sweet Little Sixteen”, “Love is Strange” ( música gravada por Paul McCartney no começo dos anos setenta), a bela “Goodnight, Irene” ( folclore americano, regravada “n” vezes por feras como Little Richard) , “Bye,Bye Love” ( aquela que diz “Bye bye, happiness /Hello, loneliness /I think I´m gonna cry”) e “Blue Sued Shoes” e “La Bamba”.
Bernstein já foi crítico de rock. Tinha vinte anos em 1964. Ou seja: é um legítimo representante da geração que dançou ao som de Elvis Presley. A bem da verdade, diga-se que, como cantor, Bernstein é um excelente repórter. Como instrumentista, dá para o gasto. Se tivesse tentado a carreira nos palcos, estaria hoje tocando num boate do Alabama. A família é chegada a música: um dos dois filhos de Bernstein, como se sabe, é músico numa banda “punk-rock” chamada The Actual. O outro seguiu a carreira do pai.
Quando acabou de tocar, o super-repórter disse-me: “Hey, você tem uma matéria!”.

Eu já estava ligeiramente constrangido: em São Paulo, tinha seguido os passos de Bernstein durante a conferência na Câmara Americana de Comércio. Acompanhei a entrevista coletiva. Gravei uma longa exclusiva. Tirei fotos. Pedi autógrafo num livro ( não é coisa que entrevistador faça normalmente com entrevistado. Mas, desculpe, Bernstein é meu ídolo profissional há séculos). Aqui no Rio, o assédio se repetia. Não seria hora de parar a “caçada” ? Minha porção chacal me soprou: não!

Satisfeito com o jogo de perguntas-e-respostas de nossa entrevista em São Paulo , o generoso Bernstein me fez, diante da câmera, o maior elogio que ouvi na minha vida profissional ( “é uma das melhores entrevistas que já dei para televisão”). Pensei comigo : ok, stranger, agora já posso ir morar num rancho em Santa Maria da Boa Vista.

Em seguida, pediu meus contatos: telefone, e-mail, celular. Perguntou se eu estaria no Rio nos próximos dias. Eu disse que sim. Pensei que o gesto de Bernstein fosse apenas uma daquelas cortesias que caem no esquecimento cinco minutos depois.

Sorte minha: não foi.

Três dias depois, quando abro o computador, o que é que pisca na tela ? Um e-mail de Carl Bernstein me convidando para um jantar. Dei uma saída. Quando chego em casa, nova surpresa: um recado na secretária eletrônica. Bernstein em pessoa. Por fim, quando pego o celular,outro recado do homem. Dois recados nos telefones, dois e-mails ( ele mandaria outro). O convite já não era um convite: era uma convocação.

Fui. Ganhei outro autógrafo, em que ele chama nossa entrevista de “terrific”. Brincalhão, faz uma ressalva : diz que tinha adorado a gravação da entrevista, mas quer ver como é que ela seria editada. Tranquilizo-o : pretendo usar a entrevista na íntegra, sem cortes, porque em TVs a cabo, como a Globonews, os entrevistados podem falar. Ficou de me passar um endereço, porque queria receber uma cópia da fita, em casa, em Nova York. Prometo, claro, despachar uma cópia em DVD. Juro por Nossa Senhora do Perpétuo Espanto que mandarei.

Próximo assunto: falamos sobre a última empreitada jornalística de Bernstein: a biografia de Hilary Clinton. Bernstein informa que a biografia já sai com uma primeira fornada de 250 mil exemplares.

O espírito de repórter de Bernstein se manifesta a toda hora: em meio à recepção, ele sai perguntando aos convidados quem é que gosta e quem é que não gosta da Catedral Metropolitana do Rio. Tinha visitado a Catedral. Ficou impressionado com a quantidade de gente que fala mal do prédio. “Você gosta da Catedral? Você gosta da Catedral”, é o que repete. Depois, a cada vez que é apresentado a alguém, repete em voz alta o nome do convidado.

A uma jornalista em início de carreira, Clara Passi , que aproveitou a chance para perguntar qual seria o primeiro conselho que ele daria a um iniciante, Bernstein respondeu: “O repórter precisa saber ouvir!”.

A mulher de Bernstein, uma loura altíssima, que dançou enquanto o marido tirava acordes da guitarra, disse que ele tem mania de fazer perguntas. Pudera. “Quando volto do supermercado, ele fica me perguntando o que é que comprei e onde fica a loja”, ela diz.

(Eu já tinha experimentado a fúria perguntadora de Bernstein. Terminada a gravação de nossa entrevista, ele fez um bombardeio de perguntas: “Quando vai para o ar? Como se escreve o seu nome ? É português ? Quando você vai voltar ? Onde é que você mora ? Como estará o tempo amanhã no Rio ?”).

Perguntar, perguntar, perguntar. Bernstein nunca quis fazer outra coisa na vida. Pouco importa que a situação seja banal, como esta.

As perguntas que ele fez obsessivamente terminaram obrigando um presidente dos Estados Unidos a renunciar ao cargo.

TERCEIRA CENA: O JORNALISTA QUE É ÍDOLO DOS JORNALISTAS COMBATE MITOS. DEZ OPINIÕES DE CARL BERNSTEIN

As palavras que o super-repórter pronunciou na passagem-relâmpago pelo Brasil servem de lição valiosíssima para jornalistas que, equivocadamente, defendem um jornalismo “engajado”.

Carl Bernstein virou sinônimo de jornalismo investigativo. Mas, surpresa, ele é o primeiro a se insurgir quando alguém se refere ao “jornalismo investigativo” como se fosse o Cálice Sagrado.
Gravando!
1

“Não acredito que o jornalismo investigativo seja diferente do resto do jornalismo. Todo bom jornalismo é o mesmo. Seja no esporte, na economia ou em qualquer área, fazer bom jornalismo é apresentar a melhor versão que se pode obter da verdade. Jornalismo é persistência, é ser um bom ouvinte, é respeitar quem você aborda, é ter tempo. O mito do repórter investigativo – que eu o Bob Woodward contribuímos involutariamente para criar – não é necessariamente uma boa coisa”
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2
“A história não se repete. Cada situação existe num contexto próprio. É errado ter uma visão nostálgica do Escândalo de Watergate ou do caso da divulgação dos Papéis do Pentágono. O melhor é tirar as lições que pudermos desses acontecimentos – e olhar para o nosso tempo”
. 3 

“Não acredito que o tempo de Watergate tenha sido necessariamente um tempo de alguma grandeza jornalística. A idéia de olhar para aquele tempo como uma época de ouro – que de fato nunca existiu – é, portanto, um grande engano”….
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4
“Não acredito que o papel da imprensa seja dizer às pessoas no que é que elas devem acreditar. Não acredito! O papel da imprensa é divulgar a melhor versão possível da verdade. Cabe a cada cidadão reagir. Em qualquer democracia, o cidadão pode – ou não – reagir da maneira que você espera. Mas o papel de um repórter não é o de se levantar e dizer: “É nisso que vocês devem acreditar”.
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5
“A imprensa dá a informação. Se o cidadão resolver votar em George Bush e reelegê-lo, como aconteceu, eu, pessoalmente, posso até não gostar, mas é assim que os cidadãos agiram! O que a imprensa não deve fazer é forçar o público a se comportar de uma determinada maneira”.

“É sempre muito fácil jogar na imprensa a culpa pela reação lenta e – algumas vezes – pela indesejável resposta política de um país ou um povo”…
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6
“Acontece o tempo todo. Sou parado na rua por gente que me pergunta: por que é a imprensa não informa sobre George Bush ? Olho para eles e digo: Vocês estão loucos? Como é que vocês acham que todos soubemos sobre as coisas terríveis que este presidente tem feito? Pela imprensa! Onde é que a gente soube tanto sobre do aquecimento global? Pela imprensa!”.
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7
“A imprensa frequentemente faz trapalhadas. Não somos diferentes de outras instituições – que refletem a cultura em que vivemos. Somos feito médicos, por exemplo. Você vai a um médico. Em dez por cento dos casos, você precisa sair do consultório para ficar melhor. Um pode lhe salvar . Trinta por cento dos médicos farão com que você possa se sentir melhor. Vinte por cento farão você se sentir um pouco pior. Outros vinte por cento farão com que você fique muito pior. E dez por cento vão matar você. Não acho que nós, jornalistas, sejamos diferentes. Somos diferentes num ponto: quando outras instituições falham, a imprensa precisa estar lá.Mas a imprensa não pode ter um tratamento especial. É tão capaz de cometer erros ou de praticar corrupção quanto qualquer outra instituição. Talvez um pouco menos capaz”.
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8
“A imprensa chegou atrasada no caso do Iraque porque não fomos suficientemente céticos no começo, no momento em que Bush decidiu ir para a guerra. Falhamos na hora de examinar aquela que foi, talvez, a mais desastrosa decisão tomada por qualquer presidência americana nos tempos modernos”.

9
“O presidente Nixon resistiu. Disse: “não,vocês não podem ter minhas gravações. Não me importo se vocês são o Congresso dos Estados Unidos. Não me importo se vocês são juízes. Não vou dar as minhas gravações” ( Bernstein refere-se às célebres fitas que registravam tudo o que era dito nas audiências do presidente com assessores, na Casa Branca. As fitas eram gravadas com o conhecimento do presidente, mas terminaram usadas contra ele) . E o que aconteceu? A Suprema Corte dos Estados Unidos – inclusive juízes que Nixon tinha nomeado e de quem esperava apoio – votou por nove a zero ao decidir que o presidente dos Estados Unidos estava sujeito a lei, tal como você e eu.

Nixon teve de dar as fitas. O que ocorreu,então? As fitas mostraram que o presidente dos Estados Unidos era culpado por ter conspirado, por ter desrespeitado a Constituição dos Estados Unidos e por ter atingido princípios democráticos. Houve uma investigação que resultaria no impeachment do presidente. O presidente disse : “Não saio. Vocês terão de me levar a julgamento!”.

Mas, antes até da votação do impeachment, senadores e deputados republicanos, integrantes do partido do próprio presidente, liderados por Barry Goldwater, um senador corajoso, um grande conservador, o homem que é de fato o moderno inventor do movimento conservador dos Estados Unidos, foram à Casa Branca para dizer a Nixon: “Não vamos apoiá-lo. Se o senhor não deixar o poder voluntariamente, vamos votar pela condenação. O senhor será o primeiro presidente a ser condenado e forçado a deixar o poder” .

Nixon desistiu. Neste caso, as instituições funcionaram, não porque o país inteiro desde o inicio estivesse pronto para entender o que tinha acontecido e o que o caso envolvia, mas porque cada elemento do sistema – a imprensa, a justiça, o Congresso – fez o que devia. Em alguns casos, fazer este trabalho exigia atos corajosos de indivíduos”
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. 10
“Nós reportamos os fatos. O sistema funcionou. Mas, para o sistema funcionar, é preciso que a imprensa esteja empenhada em conseguir a melhor versão possível da verdade. É aí que reside a responsabilidade da imprensa!. Não é pegar corruptos , mas obter o que chamo sempre de a melhor versão possível da verdade. O que é ? É contextualizar. Não é apenas se ocupar de corrupção. É reportar sobre as condições de uma cultura. E pôr os fatos num contexto. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, é escrever sobre pobreza endêmica – que é uma parte da corrupção. O trabalho da imprensa não é derrubar governos. É procurar pela melhor versão possível da verdade dentro de uma determinada cultura – com toda a vibração, com toda a dificuldade, com toda a alegria e toda a miséria aí incluídas. Que seja esta a nossa agenda jornalística”.

Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?” . A pergunta da senhora Graham foi devidamente imortalizada na página 364 da excelente autobiografia de Ben Bradlee, “A Good Life”.

( Ao final da minha Maratona Bernstein,divago, solitário, “com meus botões”: quem já passou quinze minutos numa redação pode apostar, sem margem de erro, onde estava “o resto da imprensa”. É pule de dez: é muitíssimo provável que o “resto da imprensa” estivesse fazendo o que, incrivelmente, a esmagadora maioria dos jornalistas faz nas redações. Ou seja: dar de ombros para o que é notícia; inventar pretextos risíveis para não publicar uma reportagem; pontificar com patética auto-suficiência sobre todo e qualquer assunto. Paulo Francis dizia que o melhor jornal é aquele que não é publicado. Bingo!
 

É um fato cientificamente demonstrável: o maior, o mais nocivo, o mais intransigente, o mais pretensioso, o mais impermeável, o mais destrutivo, o mais indefensável inimigo do Jornalismo é….o jornalista! Não existe outro.

Diante de tal quadro, um leigo que entrasse por engano numa redação espicharia as sobrancelhas para cima e deixaria o queixo pender dois centímetros para baixo, para transmitir aos passantes um ar de espanto. Mas ninguém prestaria atenção ao espanto do leigo. Pelo seguinte: a desfaçatez de jornalistas que se julgam intérpretes iluminados da mente do público é algo que faz parte da natureza da profissão .

Um belo dia, o jornalista simplesmente se declara, diante do espelho, porta-voz dos interesses e da curiosidade desta abstração chamada “leitor” ou “telespectador”. Bota a faixa imaginária no peito, passa um pente no cabelo, apruma o andar, sobe a rampa e lá vai ele assumir o mandato de presidente plenipotenciário da opinião pública.

Reinam nas redações leis que, aos olhos de um leigo, podem soar absurdas. Exemplo: o concorrente divulgou a notícia “x” ou fez uma reportagem sobre o assunto “y”? Divulgou. Então, a notícia ou a reportagem – que o jornal iria publicar ou a TV iria levar ao ar- vão para o lixo .

O JNJ ( Jornalista Nocivo ao Jornalismo) age como se o leitor e o telespectador fossem maníacos de hospício que lêem todos os jornais, vêem todas as emissoras de TV, ouvem todos os programas de rádio e acessam todos os sites. Parece que o tal leitor ou o tal espectador vão se dar ao trabalho de comparar, página a página, matéria a matéria, tudo o que o jornal, a revista ou a TV publicaram. Não vão. Nunca se deram ao trabalho. Jamais se darão. Querem apenas se informar. Mas JNJ comporta-se como se os leitores e telespectadores fossem maníacos.

Loucura.

Qual o resultado deste catálogo de insanidades? As reportagens precisam enfrentar uma corrida de obstáculos nas redações antes de chegarem às mãos e aos olhos de Sua Excelência, o Público! Parece exagero, mas é a mais cristalina verdade. Jornalista Nocivo ao Jornalismo, portanto, é o que faz jornal (ou revista ou TV ou rádio) para jornalista, não para o público. Passa a vida erguendo barricadas contra o que o jornalismo pode ter de vívido e interessante. É capaz de – entre outros inumeráveis absurdos – sonegar impunemente uma informação ao leitor ou ao espectador apenas porque um veículo concorrente tratou primeiro do assunto.

Jornalistas puro-sangue são os que acendem velas para Nossa Senhora do Perpétuo Espanto (a santa inventada por Kurt Vonnegut). Humildemente, pedem à santa padroeira que não lhes tire, jamais, a capacidade de encarar a vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Porque a capacidade de olhar para os fatos da vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez é o que distingue um jornalista puro-sangue de um jornalista burocrata, exterminador de reportagens. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria, portanto, reinar , soberana, em todas as redações. Porque o bom repórter jamais perderá a capacidade de exercitar um saudável espanto diante dos fatos e personagens. É desse saudabilíssimo espanto e desse saudabilíssimo interesse que nasce a matéria-prima do jornalismo: a reportagem.

Diante de um assunto interessante, um personagem atraente, um fato que merece ser contado, o Jornalista Nocivo ao Jornalismo saca a arma e imediatamente pergunta: “Por que publicar?”. O jornalista de verdade, é claro, perguntaria: por que não ?Fim da divagação ).
Termina a Maratona Bernstein. Dali a poucas horas ele deixaria o Brasil. Se teve a chance, certamente deve ter perguntado a algum transeunte no corredor do aeroporto: “E você ? O que é que acha da catedral ?

*A íntegra da entrevista foi publicada em DOSSIÊ HISTÓRIA (Editora Globo)

Dunga, seja grande : você não pode deixar Neymar em casa !

sex, 23/04/10
por Geneton Moraes Neto |
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                                                       A cena aconteceu nos arredores de Londres, na porta do hotel em que a seleção brasileira estava hospedada, à espera da hora de disputar um amistoso com a seleção inglesa no estádio de Wembley,no verão europeu de 1995. Os jogadores descem para ir ao ônibus. Fãs – a maioria, crianças – abordam as estrelas para fotos e autógrafos. A maioria dos jogadores atende aos pedidos. Zinho passa batido. Faz de conta que não ouve.  Um dos jogadores da seleção – o capitão Dunga – distribui com paciência autógrafos. Volta ao quarto, para buscar postais em que aparece trajado com a camisa da seleção. Dá de presente aos fãs o postal autografado. 

                                                Fiz uma entrevista com ele.  Dunga fez uma confissão curiosa : disse que, quando caminhava do meio-de-campo para a marca do penâlti, na decisão do título contra a Itália, ficou “cego” e “surdo”. Não ouvia o rumor da torcida. Só enxergava a bola. Ao converter o penâlti, teve a nítida sensação de que se livrara do peso de uma tonelada que lhe esmagava os ombros.

                                                Quinze anos depois, Dunga – que ganhou fama de carrancudo mas era perfeitamente capaz de gestos simpáticos como o que testemunhei em Londres –   é o técnico da que tentará conquistar, para o Brasil, o inédito título de hexacampeão mundial. 

                                               O “clamor” da torcida provocou um dilema íntimo em Dunga : deve ou não convocar o menino Neymar, o talento luminoso revelado pelo Santos Futebol Clube ? A resposta : é claro que deve !  Neymar é, hoje, a encarnação das melhores virtudes do futebol brasileiro.  Não pode ver a Copa pela televisão! Precisa entrar em campo. Guardadas as proporções, pode cumprir, na seleção brasileira de 2010, o papel que coube a Pelé na Copa de 1958 : o de ser uma gratíssima surpresa.

                                                 Faz parte da tradição brasileira a insistência de técnicos que não se rendem à pressão da torcida. Telê Santana não levou Reinaldo, o artilheiro do Atlético MIneiro, para a Copa de 1982. Quando entrevistei Reinaldo em 2008, ele disse que, toda vez que via lances do fatídico Brasil e Itália da Copa de 1982, imaginava o que poderia ter acontecido se ele tivesse sido convocado, já que se considera – e era! – um jogador melhor do que Serginho. O que aconteceu?  Telê levou Serginho. Deixou Reinaldo em Minas. Reinaldo diz que estava em perfeita forma em 1982 ( ao contrário do que ocorrera na Copa de 1978, quando jogou sem estar “no ponto”). Só não foi porque o técnico não quis. Quem sabe, poderia ter feito a diferença naquele jogo em que o carrasco Paolo Rossi despachou a seleção brasileira de volta para casa.

                                                    Parreira levou o menino Ronaldinho para a Copa de 1994. Faltou a Parreira a ousadia que faz toda diferença :  quando o Brasil foi para a prorrogação, na finalíssima contra a Itália, depois de um empate de zero a zero no tempo normal, Parreira lançou mão de Viola. Poderia ter lançado Ronaldinho, um jogador mais hábil, mais talentoso, mais surpreendente.  Ronaldinho já brilhava.  Se tivesse entrado naqueles instantes finais, poderia ter feito a diferença. Teria tido a maior chance que alguém poderia oferecer a um jogador recém-saído da adolescência : a de entrar em campo no fim da prorrogação de uma decisão de Copa do Mundo para tentar resolver a parada. Não entrou. Parreira deixou-o no banco.

                                                     Não é segredo para ninguém, porque sempre foi assim : o que incendeia as grandes conquistas é a aposta no incerto, no novo, no desconhecido. Se não fosse assim, as caravelas não teriam saído de Lisboa para conquistar o Novo Mundo. O personagem de um romance pedia “luz, altura, claridade !”. O que pode dar “luz, altura e claridade” à seleção brasileira nos campos da África do Sul é o talento juvenil de um craque como Neymar : uma aposta no novo, no incerto, no desconhecido.

                                                         Para que esperar quatro anos para levar Neymar para uma Copa do Mundo ?  Se Dunga se render ao coro da torcida, terá dado não uma demonstração de fraqueza, mas de inteligência :  convocar Neymar é reconhecer que existe hoje, em atividade no Brasil, às vésperas de uma Copa do Mundo, um talento raro, um desses que demoram anos para aparecer. Quando aparecem, não podem ser preteridos.

                                                         É só comparar Neymar com Adriano, o ex-imperador : pesadão, irregular, desmotivado, Adriano não comporta comparações com Neymar.

                                                         Eu vos confesso:  sou um torcedor acidental. Só me envolvo para valer em Copa do Mundo. Temo intimamente o momento fatídico em que Galvão Bueno exclamará, lá pelos quarenta minutos do segundo tempo : “Fica dramática a situação do Brasil !”. É o que ele diz quando as coisas começam a desandar.

                                                     Se deixar Neymar em casa, Dunga estará dando a Galvão Bueno a chance de pronunciar a frase fatal: “Fica dramática a situação do Brasil”. Ah, não.

                                                       O “Dossiê Geral” não é blog de futebol. Mas, como noventa e oito por cento dos brasileiros têm algo a dizer sobre a seleção, nós empunhamos um pincel imaginário para pichar no muro da CBF : “Dunga, seja grande : você não pode deixar Neymar em casa !”.

                                                       Porque deixá-lo é um crime de lesa-futebol.

PS: Por que diabos fui falar de futebol hoje ? É que fui a São Paulo esta semana para gravar uma participação no programa Altas Horas. Assunto: as entrevistas com os generais. Lá pelas tantas, Serginho Groisman pergunta aos convidados (o locutor que vos fala, a banda os Raimundos – com Tico Santa Cruz, o cantor Toquinho, o humorista Marcelo Médici e a bela atriz Aparecida Petrowki) sobre a preferência futebolística de cada um.

                                              Fora das Copas do Mundo, sou um torcedor tecnicamente ausente. Torço pelo Sport Clube do Recife. Quando criança, ia ao estádio da Ilha do Retiro para ver os clássicos contra o Náutico e Santa Cruz.

                                             Em São Paulo, sou Corinthians desde que, aos onze anos de idade, em março de 1968, ouvi pelo rádio a vitória histórica sobre o Santos. Fazia anos e anos que o Santos não perdia para o Corinthians. Perdeu naquela noite : gols de Flávio e Paulo Borges. Eu tinha o time de botão: Diogo; Oswaldo Cunha, Ditão, Luiz Carlos e Maciel; Swing e Rivelino; Buião, Paulo Borges, Flávio e Eduardo.

                                                     Sempre fui um torcedor distante do Flamengo no Rio. Nunca deixei de ter simpatia pelo Botafogo ( meu time de botão não me deixava mentir: Cao; Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César). Estou em vias de jogar esta dubiedade clubística para o alto: depois de um rigoroso exame de consciência, caminho para optar pelo Botafogo como meu time preferido em plagas cariocas.

                                                      Já disseram : das coisas menos importantes da vida, a mais importante é o futebol. Não conheço o autor da frase. Mas, seja quem for, acertou na mosca. Já se disse – igualmente – que a memória só guarda o que importa. O resto se apaga na avalanche de neurônios. Se o futebol não fosse importante, eu, um pré-dinossauro, não saberia recitar, hoje, as escalações dos times que ouvi jogar, pelo rádio, nos idos de 1968….É inútil saber ? É óbvio que é. Mas, feitas as contas, o que é a vida, senão uma gloriosa coleção de inutilidades ?

                                                    Se é assim, pelo licença para informar que decorei também a escalação do Santos Futebol Clube de 1968/69:  Cláudio; Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria,Toninho, Pelé e Edu. Jamais alguém me perguntou – ou perguntará – por estas escalações.Pior para quem não se interessa. Porque para mim basta saber que guardo até hoje, comigo, as escalações que eu recitava para mim mesmo, como se fosse um locutor de rádio, enquanto caminhava de volta para casa, pelas ruas do bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, no Recife, depois de testemunhar aulas incompreensíveis de matemática. Tinha o cuidado de falar em voz baixa, para não chamar a atenção dos outros terráqueos que caminhavam pelas calçadas, alheios a minhas recitações solitárias. Dizer o nome dos jogadores pelas ruas de um bairro remoto da América do Sul. Que outra coisa poderia fazer um menino de doze anos ?

O dia em que Roberto Carlos tentou explicar o fenômeno Roberto Carlos (e disse o que faz para cuidar da voz: um gargarejo de “gengibre com mel” antes de ir para o palco)

dom, 18/04/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas


O cenário é a suíte de um hotel em Ipanema. Numa gravação feita originalmente para o Fantástico, Roberto Carlos dá pistas sobre o motivo do sucesso perene de um fenômeno chamado Roberto Carlos. Primeira pista: a exigência. Num país em que o improviso é tido como virtude, Roberto Carlos é obsessivamente exigente com a qualidade do que faz. O nível de exigência descamba com frequência para a teimosia, como ele próprio admite. Mas pode explicar – pelo menos em parte – a gênese do sucesso. Segunda pista: a paciência. Terceira: a sintonia com o gosto popular.

  
Roberto Carlos é um caso único de “superstar” brasileiro. Suas aparições são cercadas de cuidados que, se aplicados a outros artistas, soariam como rematada esquisitice. Pouco antes do início da gravação, um assessor – que o acompanha desde os tempos da Jovem Guarda -  chega à suíte do hotel para ver se estava tudo em ordem. É uma espécie de batedor de luxo. O assessor contempla por alguns segundos, em silêncio, a luz que nossa equipe tinha preparado para a entrevista. Faz um pedido: diz que, para nós, o filtro usado na iluminação pode não ser marrom. Mas, para Roberto Carlos, iria parecer que era marrom, sim. O filtro poderia ser trocado ? Sim, poderia.  

Eis a entrevista:

 Já se tentou explicar. Mas como é que você explica o fenômeno Roberto Carlos ?

Roberto Carlos: “Nunca me preocupei com a explicação. Trabalho muito. Gosto muito do meu trabalho. Uma das coisas que têm me ajudado muito é a paciência. Porque não basta saber fazer música. É preciso ter paciência para insistir na idéia de fazer melhor do que aquilo que a gente fez até certo ponto. A gente fez até aqui (aponta para uma escala imaginária) e ficou bom. Mas será que se eu ficasse outra noite trabalhando nesta frase eu não iria fazer melhor ?

A paciência me impulsiona. Isso tem me ajudado. O que tem me ajudado muito também é que tenho o gosto muito parecido com o do povo. Gosto – muito – das coisas de que o povo gosta. Podem ser coisas muito simples – que a própria crítica não elogia tanto por ser algo muito popular. Mas gosto. Eu me identifico – muito – com o povo, realmente. É um fator que tem contribuído para o bom resultado de minha carreira. Mas é apenas um fator. São coisas que a gente não sabe explicar”.

GMN: As virtudes de Roberto Carlos como um grande cantor todo mundo conhece. Se você fosse um crítico de música rigoroso, que defeito você apontaria em Roberto Carlos?

Roberto Carlos: “Sou teimoso. Exagero um pouco na minha teimosia. Quando estou trabalhando num CD – e as coisas estão indo bem – eu até paro para pensar um pouco. Descanso, relaxo. Quando vou ouvir de novo, digo: “Estava bom. Teimei demais”.

GMN: Chico Buarque disse numa entrevista que, com o passar do tempo, a necessidade de fazer música vai diminuindo, porque música popular, segundo ele, é coisa de juventude. A fonte do Roberto Carlos compositor começou a secar ou não?

Roberto Carlos: “Não.De jeito nenhum. Eu sinto diferente: a necessidade de fazer música não tem diminuído com o tempo. Sempre quero fazer alguma coisa nova. Quero falar das coisas que sinto numa nova música. Penso assim. Logicamente, com o passar do tempo a gente gosta um pouco mais do conforto e de trabalhar um pouco menos. Mas fazer música é algo de que gosto muito. Não tenho menos vontade de fazer música. Gosto de fazer. Quero fazer mais”.

GMN: Que tipo de cuidado você tem com a voz? É verdade que você masca gengibre todo dia?

Roberto Carlos: “Não masco gengibre. Faço um gargarejo de gengibre com mel antes dos shows. Os cuidados que tenho são os de não fazer esforços exagerados com a voz, manter minha voz sempre bem cuidada. O gengibre é suave, com mel. Não masco, porque acho muito forte”.
GMN:Você diz que já conseguiu se livrar de manias que estavam atrapalhando você. De que mania exatamente você já se livrou?

Roberto Carlos: “Não é bem assim! Não são só manias. É a questão do TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo. Não se trata de se livrar dessa ou daquela mania, mas de tratar o problema como um todo. Determinadas coisas me angustiam hoje menos do que antes. Exemplo: o fato de você estar de preto não está me incomodando. Antes, eu poderia ficar um pouco incomodado. Mas vai ser difícil eu fazer certas coisas. Vai ser muito difícil que eu venha a usar o marrom. É uma cor de que não gosto. Também vai ser difícil eu deixar de usar azul. Porque é uma cor de que gosto. Preto é uma que acho bonita…”.

GMN: Se eu estivesse de marrom – uma cor que você detesta – você me receberia?

Roberto Carlos: “Receberia. Mas, se você fosse gravar um disco comigo de marrom, eu iria ficar meio “assim”“.

GMN: Com o tratamento , você já conseguiu descobrir qual foi a origem dessas manias?

Roberto Carlos: “Não existe a descoberta da origem. O Transtorno Obsessivo Compulsivo pode até ser hereditário. Não tem uma origem básica. Isso parece que já vem no DNA”.

GMN: Quantas sessões de tratamento você vem fazendo por semana para se livrar do TOC?

Roberto Carlos: “Faço duas sessões por semana já há algum tempo”.

GMN: Você tem apelado para medicamentos também?

Roberto Carlos: “Não tenho tomado remédio”.

GMN: Que palavras você não dizia antes mas agora se sente à vontade para dizer?

Roberto Carlos: “Ainda não cheguei a este estágio do tratamento. Mas algumas reações que eu censurava muito eu segurava. Hoje em dia, falo. Digo as coisas que me incomodam. Uso qualquer tipo de palavra – inclusive palavrão mesmo. Eu me segurava muito. Ficava sempre me criticando e me segurando”.

GMN: Você chegou a mudar letras de músicas suas, para evitar dizer certas palavras ? Hoje, você se sentiria à vontade para dizer certas palavras?

Roberto Carlos: “Estou quase. Eu mudei a letra de “É preciso saber viver”. Digo “se o bem e o bem existem”. Mas, daqui a pouco, eu vou dizer a outra”.

GMN: É verdade ou é lenda essa história de que você fala com as plantas?

Roberto Carlos: “É um pouco de verdade e um pouco de lenda. Falo com as plantinhas. Mas, na realidade, o que faço é carinho nas plantas, por serem seres vivos”.

GMN: O que é que você diz a elas?

Roberto Carlos: “Faço um carinho. Cumprimento. Digo: “Bom dia. Tudo bem, minhas plantinhas…” – qualquer coisa assim. Boto a mão nas plantas com muito carinho. Tenho realmente muito carinho por elas. Mas não existe uma conversa. Antigamente, eu dizia até que ouvia as plantas. Mas acho que eu estava meio…..Agora, estou um pouco pior (ri). Só falo, para não dizer que ouvi….”.

GMN: Quando quer andar na rua sem ser reconhecido, Pelé usa disfarces. Qual foi a última vez em que você conseguiu andar na rua?

Roberto Carlos: “Faz muito tempo. Nem me lembro de poder andar na rua tranquilamente sem ser abordado por alguém. Isso só antes da Jovem Guarda. De lá para cá, só lá fora, onde ninguém me conhece como aqui. Não é questão ser incomodado, mas ser abordado pelas pessoas”.

GMN: Você sente falta da liberdade de poder ir ao cinema num sábado à tarde ou a um restaurante sem ser abordado?

Roberto Carlos: “Eu sinto às vezes. Penso sempre assim: o que acontece é o bom resultado do trabalho que faço. O resultado do trabalho de um artista é ele ficar conhecido e ganhar todo o carinho do público. Isso é que faz com que ele não possa sair à rua tranquilamente. Mas às vezes sinto falta. Antes, não sentia tanto. Mas atualmente, nesta fase de minha, tenho sentido falta de sair um pouco, tomar um sorvete na esquina, bater um papo, tomar uma cerveja. Normalmente, não tomo cerveja. Mas até uma cerveja iria bem”.

GMN: Você já pensou na possibilidade de usar um disfarce?

Roberto Carlos: “Fiz duas vezes na época da Jovem Guarda”.

GMN: Descobriram você?

Roberto Carlos : “Quando saí pela segunda vez, um cara disse: “Você parece Roberto Carlos…”.Eu disse :”Não sou não”. Mas acho que ele não acreditou em mim”.

GMN: Que disfarce você usou?

Roberto Carlos : “Botei barba, o cabelo todo para trás. E saí. Fui ao cinema. Mas a barba postiça, para ficar natural, tem de ser colada. E incomoda muito. Não foi uma coisa confortável. Não me animei, então, a fazer outras vezes”.
GMN: Por que é que você renega o primeiro disco que você gravou? Você considera esse disco ruim, por algum motivo?

Roberto Carlos: “Não renego. Com toda sinceridade: não considero este disco como um disco bom. Tanto é que não vendeu. Ou vendeu muito pouco. Mas não chego a renegá-lo. É um disco que faz parte de minha história. O que aconteceu, na realidade, é que a própria CBS não manteve este disco em catálogo. Virou um disco de colecionador. Já que não foi colocado em catálogo nem se encontrava nas lojas, virou um disco difícil. Mas não renego nem considero um bom disco. É um disco de começo de carreira” (O disco que nunca foi relançado é “Louco por Você”, gravado em 1961).

GMN: O motivo por que esse disco não agrada tanto você é porque você imitava João Gilberto?

Roberto Carlos: “Não. Eu, na realidade, cantava muito influenciado por João Gilberto, mas num disco anterior (um compacto em que canta “João e Maria” e “Fora do Tom”). Neste disco eu já estava adquirindo minha própria maneira de cantar, meu próprio jeito”.

GMN: A moda dos cabelos grandes passou para todo mundo, menos para Roberto Carlos. Você pensa em um dia cortar os cabelos?
Roberto Carlos: “Não. Pode ser que eu diminua um pouco o comprimento. Mas acho muito difícil que eu venha a usar o cabelo totalmente curto. Não me vejo assim. Se eu tivesse um cachorro e chegasse em casa de cabelo curto, ele iria estranhar. E eu também iria me estranhar”.

GMN: Que tipo de conselho o vovô Roberto Carlos dá aos netos?

Roberto Carlos: “Que eles sejam boas pessoas e se empenhem sempre em caminhar do lado do bem e lutem pelas coisas que querem. Mas ainda são muito pequenos para entenderem. É o recado que darei daqui a pouco a eles. De uma certa forma, a gente já diz a eles essas coisas de uma forma ou de outra”.

GMN: A gente descobriu no arquivo da TV Globo um pedido de Cartola endereçado a Roberto Carlos: ele queria que você gravasse a música “O Mundo é um Moinho”. Você já pensou em incluir uma música de Cartola no repertório?

Roberto Carlos: “Quase cantei uma música de Cartola : “As Rosas não Falam”. Mas, justamente por achar que as rosas falam, eu disse: “Não; não vou gravar ainda não”. Pode ser que um dia eu venha a gravar. A música é linda. A letra é linda, maravilhosa. Cartola ó um grande compositor, inspiradíssimo. Faz coisas lindas. Quem sabe um dia eu vou gravar uma de suas músicas…”

GMN: Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito?

Roberto Carlos: “Algumas músicas eu gostaria de ter feito. Não vou dizer quais são, mas, em algum momento, eu teria vontade de trocar uma frase. Vejo músicas lindas que falam de amor mas de repente, no final, elas mudam para terminar de uma forma mais inesperada. Isso às vezes me tira a idéia de gravar essas músicas.

Gosto de canções que falam sempre de amor bem-sucedido. Eu mesmo tenho feito canções de amor que não falam somente de amores bem sucedidos. Mas hoje em dia gosto de falar de amores bem sucedidos, como na canção “Te Amo Tanto” – que fala de uma declaração de amor. Fico pensando por que o amor é muito usado na arte, no teatro, na música – mas falando da dor. É curioso. Para mim, amor não devia combinar com dor. É meio utópico. Hoje, gosto de fazer canções que só falam na forma maior do amor”.

GMN: Você falou de músicas que desistiu de gravar por achar que elas não tocam do amor do jeito que você entende. Você pode citar uma música de outro compositor a que você não faria nenhum reparo?

Roberto Carlos: “É difícil. Não sei. Mas quando digo que não sei não quer dizer que eu tenho alguma coisa a criticar nas músicas de outros compositores”

GMN: Uma velha pergunta: você acha que cantor deve falar de política?

Roberto Carlos: “Depende. Aquele que entende de política deve. Mas quem não entende de política não deve. Porque ninguém deve falar sobre o que não sabe. A gente deve falar sobre o assunto que conhece. Quem entende bem de política deve falar, assim como quem entende de amor fala de amor. Quem entende de matemática fala de matemática. Não tenho nada contra quem fala de política em música. Isso depende da vontade e do conhecimento de cada um”.

GMN: Diz-se que Roberto Carlos talvez seja o cantor mais carismático da música brasileira. Que definição Roberto Carlos tem para “carisma”?

Roberto Carlos: “Carisma é quando uma pessoa consegue chegar ao público e haver uma comunicação, uma troca de sentimento , energia e amor. É algo que pode acontecer em todos os setores, não apenas com os artistas. Quando alguém tem esse tipo de característica – o de se comunicar no olhar e causar alguma coisa ao espectador …O carisma é uma troca de energia”.

GMN: Você faz força para criar a imagem de bom moço?

Roberto Carlos: “A imagem de bom moço, não. Sou o que sou! Se de repente passo a imagem de bom moço, não vejo nada de errado. O errado seria se eu fosse um cara errado tentando passar a imagem de um cara certo. Não quero dizer que eu seja dos mais certinhos. Sou apenas o que sou. Mas não me preocupo em passar algo que não sou”.

GMN: Erasmo Carlos disse numa entrevista recente que os contatos entre vocês dois são raros hoje em dia. O casamento artístico com Erasmo Carlos começou a dar sinais de cansaço?

Roberto Carlos: “Não. Não chamaria de ”casamento artístico” , porque não gosto dessa expressão. Nesta nossa amizade realmente fraternal, a gente nunca se cansou de trabalhar um com o outro. O que acontece é que, num determinado momento da minha vida, eu quis compor sozinho. As canções que tenho feito nesses cinco anos, dedicadas a Maria Rita, gosto de fazer sozinho. É uma coisa minha, muito minha. E até com Erasmo, meu irmão e “amigo de fé”, como digo na letra que fiz para ele, não seria algo que eu gostaria de fazer. Porque essas músicas gosto de fazer sozinho. Erasmo sabe. E entende muito bem”.

GMN: Pouca gente sabe que você compôs sozinho alguns dos grandes clássicos da Jovem Guarda, como “Quando” e “E Por Isso Estou Aqui”…

Roberto Carlos: “Namoradinha do Amigo Meu” também…

GMN: Uma curiosidade “técnica”: quando você compõe sozinho, você usa piano ou violão? Como é que você começa a compor?

Roberto Carlos: “Antigamente, eu compunha com violão. Depois, comecei a compor com piano. Mas não toco piano. Ou toco muito mal. O meu piano é um pianinho elétrico em que troco de tom. Não toco em todos os tons. Não tenho esta habilidade, embora tenha estudado piano quando era menino. Mas muito pouco. Sou muito limitado no piano. Mas tenho composto mais no piano do que no violão”.

GMN: Você já teve a tentação de apelar para o espiritismo para tentar um contato com Maria Rita?

Roberto Carlos: “Não…”

GMN: Quando o seu filho teve problemas de saúde, você teve contatos com Chico Xavier…

Roberto Carlos : “Tive. Procurei inclusive Zé Arigó (médium mineiro a quem se atribuíam “curas espirituais” nos anos sessenta) num momento de muita aflição. Acho que meu filho foi beneficiado com esse contato que a gente fez com Arigó…”

GMN: Hoje, você não teria a tentação de apelar para o espiritismo para estreitar o contato que você diz que mantém com Maria Rita até hoje?

Roberto Carlos: “Não. Isso tenho feito do meu jeito – espiritualmente e mentalmente. O jeito que estou fazendo é melhor para mim e para nós”

GMN: Sua fé religiosa sofreu algum abalo em todo este processo?
Roberto Carlos: “Não sei se um abalo. Mas passei a ver todas essas coisas de uma forma muito realista. Aquilo de “a fé remove montanhas” não é, para mim, uma realidade. A fé ajuda você, dá força. Ajuda você a subir a montanha e sair do outro lado. Ou a dar a volta. Mas não tira a montanha da frente. A fé, então, ajuda, mas não muda o panorama das coisas. Porque as coisas não mudam de repente”.

GMN: Se você fosse fazer uma comparação, você diria que o Roberto Carlos de hoje é tão religioso quanto o Roberto Carlos de há vinte anos?

Roberto Carlos: “Sou religioso. Talvez não seja tão praticante. Continuo católico. Só que hoje, sem culpas, consigo questionar certas coisas de minha religião e de todas as religiões. Questiono inclusive esta questão da fé. Isso é uma questão de evolução, através da vida e dos acontecimentos. Hoje, vejo tudo de forma realista. Questiono coisas que não questionava antes”.

GMN: Paul McCartney disse, numa entrevista recente, que às vezes em casa, diante do espelho, na hora de escovar os dentes, ele se pergunta: “Mas será que este é o Paul McCartney que tocava com os Beatles?”. Em casa, sozinho, vive a sensação de olhar para Roberto Carlos como se Roberto Carlos fosse outra pessoa?

Roberto Carlos: “Não. Nem um pouco. Eu me olho no espelho de uma forma normal, como uma pessoa comum. Nem me lembro. Sinceramente. Faço as coisas de uma forma natural. Olho-me no espelho, faço minha barba, penteio o cabelo. Não penso nessas coisas”.

GMN: Se alguém pedisse a Roberto Carlos para escrever um verbete sobre Roberto Carlos numa enciclopédia da música popular brasileira, qual seria a primeira frase que você escreveria?

Roberto Carlos: “Não escreveria….”

GMN: Por excesso de modéstia?

Roberto Carlos: “Porque, para mim, é complicado escrever sobre mim mesmo. Acho muito complicado”.

GMN: E se um crítico recorresse a você e perguntasse: qual é a melhor definição de Roberto Carlos sobre Roberto Carlos?

Roberto Carlos: “Para mim, é complicado. Só se ele me perguntasse especificamente sobre uma característica minha. Mas eu me analisar e escrever alguma coisa a meu respeito, eu não saberia. Para mim, seria difícil”.

GMN: Se tivesse de escolher uma só palavra para definir Roberto Carlos, que palavra você usaria?

Roberto Carlos: “Uma só palavra é difícil. É a mesma coisa que você me perguntou antes: se eu tivesse de escrever alguma coisa numa enciclopédia a meu respeito. Você pergunta a mesma coisa com uma só palavra, o que é mais difícil ainda… Não sei. Nunca parei para pensar nesta questão. Sou o que sou. Escrevo e canto o que sinto. E só. Paro por aí. Não fico me analisando”.

GMN: Numa entrevista antiga que você deu ao Fantástico, você dizia que já se daria por satisfeito se fizesse parte das lembranças do público. Isso satisfaria você hoje ainda?

Roberto Carlos: “Com certeza. Estou satisfeito com o que tenho conseguido junto ao público. Ficar na lembrança do público é uma coisa muito linda”.

GMN: Você um dia teria disposição para escrever um livro de memórias?

Roberto Carlos:”Já pensei em escrever minha história. Mas acho que, num livro só não cabe não. Vou ter de escrever uns três livros…” (rindo)

GMN: Já escreveu alguma coisa em casa?

Roberto Carlos: “Não. Faz vinte anos que estou pensando nisso…”

GMN: É verdade que você vem preparando um livro de memórias com um jornalista?

Roberto Carlos: “Não. Já pensei em contar minha história. Mas ainda não escrevi a primeira linha”.

GMN: Não são poucos os críticos que consideram a década de sessenta como o auge de Roberto Carlos. Você concorda com essa avaliação?

Roberto Carlos : “A década de sessenta foi uma época muito importante em minha vida. É a que mais chama a atenção dentro de toda a minha carreira. Mas os anos setenta são anos muito importantes na minha obra, pelas canções que escrevi. A Jovem Guarda, no entanto, é a que mais chama a atenção e a época mais representativa, pelo menos junto ao público , ao espectador, ao fã”.

GMN: Você tem alguma dificuldade de se analisar como artista. Você tem um certo pudor em se reconhecer como um grande nome da música brasileira – ou como um grande ídolo popular, pelo menos…

Roberto Carlos: “Tenho, porque acho que essas coisas não são pra gente viver, mas para ouvir. Sobre a gente mesmo e sobre as coisas que a gente faz, a gente tem de ouvir o que os outros acham – e não dizer o que a gente pensa sobre nós mesmos”.

(Entrevista gravada no dia 10 de dezembro de 2004)

Os bastidores do regime militar : general Newton Cruz descreve o dia em que saiu de Brasília para o Rio para desmontar um novo atentado que militares estavam tramando depois do Riocentro

sáb, 10/04/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Aos fatos : o ex-chefe da agência central do SNI e ex-comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, nos deu detalhes de uma operação secreta que ele protagonizou para evitar que militares radicais cometessem, no Rio de Janeiro, um novo atentado, depois do que tinha ocorrido no Riocentro.

Um detalhe: o próprio Newton Cruz ficou nacionalmente conhecido como “linha-dura”. Mas, neste caso, ele atuou para  “apagar um incêndio”.  Os autores do frustrado atentado cometido no Riocentro – militares ligados ao DOI do I Exército, no Rio de Janeiro -  queriam dar uma nova demonstração de força contra a abertura política ( A entrevista completa do general foi exibida no DOSSIÊ GLOBONEWS no sábado. Vai ser reprisada neste domingo, às 17:05; na segunda, às 15:05 e na terça, às 11:05).

 O general se deslocou de Brasília para o Rio, numa missão que, segundo ele, extrapolava suas atribuições, já que cabia a ele chefiar a agência central do SNI – não participar de um “empreitada” como aquela. O diálogo com dois dos homens que tramavam um novo atentado ocorreu num quarto de hotel do Leme, no Rio de Janeiro. O então chefe da agência central do SNI diz que fez uma advertência aos dois : se executassem o que estavam tramando, seriam denunciados.  

Um bastidor : quando procurei o ex-chefe da agência central do SNI para uma entrevista, duas semanas antes do natal, a primeira resposta foi “não”. Cordial ao telefone, disse que já não queria se envolver em” confusão”. Aos 85 anos, viúvo, estava na casa da filha, na zona oeste do Rio. Enfrentara problemas de saúde. A audição já não era tão boa. Agradeceu o “interesse” mas, em outras palavras, pediu que eu batesse em outra porta. Não bati. Tentei de novo uma, duas, três vezes.  Disse que ele tinha sido citado em outras entrevistas que eu tinha feito sobre o fim do regime militar. A última investida deu resultado. O general me disse :”Você é insistente !”. Respondi que sou, claro. Queria ouvi-lo. O tom firme da voz do general indicava que continuava “enérgico”. A entrevista ficou marcado para as onze da manhã de uma quarta-feira.

Houve momentos tensos. Com o calor na sala e o pequeno refletor usado pelo cinegrafista Evilásio Carneiro foram suficientes para que o general ficasse banhado de suor. A camisa ficou visivelmente molhada. A assistente de produção Rosamaria Mattos, estagiária da Globonews, fez as vezes de “maquiadora”  : precisou enxugar a testa do general “n” vezes com lenços de papel.  Houve momentos tensos, em que o general levantou a voz para marcar posições. Devolveu perguntas ao repórter. Recorreu à ironia quando achou necessário. A estagiária deve ter ficado compreensivelmente “assustada” com a entrevista. De qualquer maneira, eu estava apenas – e exclusivamente –  para perguntar, não para fazer discursos, emitir julgamentos ou me exibir diante da câmera sob as vistas  do general – que entrou para o “imaginário coletivo” como exemplo acabado do militar linha-dura. É o que tentei fazer.

Terminada a entrevista, a equipe desligou o equipamento. O cinegrafista, os dois técnicos e a assistente de produção desceram na frente. O general  me acompanhou até a porta do elevador. Aquele silêncio constrangido que sempre acomete os que ficam diante da porta de um elevador foi quebrado pelo general que, para minha surpresa, depois de ter se exaltado tantas vezes durante a entrevista, começou a cantar uma velha canção : “Falam de Mim”  ( a letra diz “falam de mim/mas quem fala não tem razão/ um rapaz como eu/ não merece ingratidão”). Quando cheguei à TV, recorri ao São Google, para descobrir de quem era a música. Era de um homônimo de Noel Rosa.

Vou confessar : meu primeiro pensamento foi  “ah, meu Deus do céu, se a câmera estivesse ligada aqui eu ia fazer uma imagem antológica : Newton Cruz, o general linha-dura, cantando !”.  A essa altura, o equipamento já estava desligado, no carro. Trocamos umas palavras. O general ficara satisfeito com a entrevista. Eu disse a ele o que sinceramente penso : “Como personagem jornalístico, o senhor me interessa tanto quanto, por exemplo, Luís Carlos Prestes, a quem, aliás, entrevistei várias vezes. Jornalista existe para fazer pergunta. Não faço  ”patrulhagem ideológica” nem no senhor nem em Prestes. Minha opinião pessoal não interessa. Quero sair daqui com uma notícia”.  O general me disse que nunca tinha falado tão claramente sobre a operação que fez para desmontar um novo atentado que militares tramavam no Rio. Em resumo, ele me deu uma notícia  : militares estavam tramando,sim, um novo atentado no governo Figueiredo.

Um dia depois, telefonei para checar dados. Perguntei se ele sabia o título da música que cantou para mim na porta do elevador, no fim da visita. Não, o general não sabia. Mas deve ter notado que, no fundo, o que eu queria era gravar a performance do general Newton Cruz cantando. Perguntou, sem meias palavras, se eu queria gravar ali, naquela hora, por telefone. É claro que sim. A gravação foi feita. O general “linha-dura” cantou de novo! A gravação da performance musical foi  usada no final da entrevista levada ao ar pela Globonews  :  um diálogo marcado por momentos ríspidos terminou, quem diria, com Newton Cruz cantando. 

Mas o que terminou com a música tinha começado assim:

Toca o telefone na agência central do SNI, em Brasília : um agente – que estava no DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, avisa que um grupo estava indo para o Riocentro com uma bomba

Horas antes do atentado no Riocentro, o senhor recebeu um telefonema de um militar avisando que uma bomba iria explodir lá.Por que é que o senhor não se dirigiu imediatamente para o Riocentro?

 Newton Cruz: “Não,não,não,não. Meu Deus do céu. Primeiro: o Riocentro é no Rio. Eu estava em Brasília. “Imediatamente” não podia ser, nem que eu viesse de avião. Não é nada disso. Eu estava no meu gabinete de trabalho, na Agência Central do SNI. Ficava até tarde. Trabalhava feito um desesperado. Trabalhava de noite. Não tirava férias. Não fazia nada. Cheio de papel. Sempre fui muito centralizador. Sempre fui responsável, eu,pessoalmente – e também garantir  que cumpram aquilo que digo,como mando fazer. Eu estava no meu gabinete, já à noite, quando um oficial meu – da Agência Central do SNI – me disse: “Chefe, recebi um telefonema lá do Rio de Janeiro, de fulano de tal, analista de nossa agência, que disse o seguinte:  tinha ido ao DOI do I Exército para fazer contato,saber se tinha alguma novidade e se informar…”. Somos órgão de informação. Era um homem da nossa seção de operações. “Quando chegou lá, ele se assustou, porque viu um grupo reunido cuja ideia era partir para o Riocentro. E ele ficou assustado.Falou: ”Como é isso?”.  O oficial da agência do Rio de Janeiro tentou influenciar: ”Vocês não podem fazer isso, ir pra lá!”. E eles: “Mas nós vamos! ”.  A ideia desse grupo não era matar ninguém: era moda aquele negócio de bomba em banca de jornal. Era pegar uma bomba – uma bombazinha – e jogar lá fora, nas imediações. Era um ato de presença: “Nós estamos aqui.Vocês estão aí, no evento de comemoração do primeiro de maio.Nós estamos aqui!”.  Não era para matar ninguém. Era um grupinho. Não era nada comandado por ninguém de cima. Eram eles mesmos, por conta deles.  

Quando este oficial soube, se assustou: “Não podem fazer isso lá”. Faz o seguinte: “Vai, mas joga a bomba mais afastada”. Ele avisou isso.  E saiu com o grupo: foi junto, para  assegurar a bomba fora, para não incomodar ninguém, porque eles estavam com gosto de sangue na boca. Sangue,não.  Sangue nada: era jogar bomba. Eu falei: “Mas não há meio de parar?”. E ele: “Não,porque eles já saíram”. Quando eu soube, este grupo já tinha saído. E a bomba foi lançada meio afastada, na proximidade da casa de força. Não adiantava nada, porque se apagasse, o gerador daria eletricidade. Não ia incomodar ninguém. Ele agiu com a cabeça, para evitar. Muito bem. Eu não podia fazer mais nada. Paciência. Fui  para casa. Quando cheguei em casa – e liguei a televisão – é que soube da bomba que tinha explodido. O que é que foi ? Os dois que foram lá – o capitão e o sargento – por conta própria, fora daquele grupo –  para o estacionamento.E a bomba explodiu no colo do sargento. É o que houve”.

 Quando soube que haveria um atentado no Rio centro, o senhor não deveria ter comunicado imediatamente até ao presidente da República ?

 Newton Cruz: “Não,não,não…”

 O senhor não considerou grave ?

Newton Cruz: “Falei com quem ? Com o meu chefe – o chefe do SNI,Octávio Medeiros – que tinha gabinete junto do Figueiredo. Eu – como chefe da agência central – não tinha nenhum contato direto com Figueiredo…”

 Mas num situação dessas….

 Newton Cruz: “Não tinha importância nenhuma…”

 Poderia ter causado uma tragédia….

 Newton Cruz: “Ele foi procurado por Medeiros – que disse a história a ele. Figueiredo soube o que aconteceu”.

 Naquela noite ?

 Newton Cruz: “Não sei se na noite. Porque a noite era de madrugada. Ou no dia seguinte, não sei. Para mim, tinha acabado. Transmiti para o meu chefe e acabou”

 O senhor transmitiu para o general Octávio Medeiros antes ou depois de ver a notícia na TV?

Newton Cruz: “Depois da TV. Eu morava do lado de Medeiros. Nossa casa era junto uma da outra,na Península dos Ministros. Não podia fazer nada! Não podia fazer nada naquela hora ! Nada! Não tinha o que fazer ! Não tinha o que fazer. Não podia fazer nada! Não havia o que fazer”

O senhor se arrepende de não ter tentado fazer alguma coisa ?

 Newton Cruz(levantando a voz): “Tentar o quê ?”

 Telefonar para o general Medeiros para mobilizar…

 Newton Cruz: “Medeiros ia fazer o quê ?”

Mobilizar alguém para interceptar…

 Newton Cruz: “Interceptar quem ?”

 Os militares que estavam indo para o Riocentro….

 Newton Cruz: “Eles não sabiam de militar que estava indo para o Riocentro. Não sabia nem para onde eles foram. Não sabiam nem onde ia ser jogada a tal bomba. Era nas proximidades. Não sabiam onde era. Que história é essa ? É impossível. Nesta ocasião, nem celular havia….

E mais o seguinte: tempos depois, recebi a informação de que havia um grupo,no DOI, tentando fazer uma coisa parecida.Não era problema meu. Eu tinha só de informar.

O grupo ia fazer algo parecido onde ?

Newton Cruz: “Em algum lugar. Algo da mesma natureza”

 Uma bomba num local público ?

 Newton Cruz: “É….Não sei onde”.

 O senhor deve saber. Não quer dizer ?

 Newton Cruz: “Estou dizendo que não sei. Estou contando. Não conto pela metade. Conto tudo que sei. Quando conto, conto o que sei. Quando não quero contar, não falo. Então, falei: “Não é possível! Isso não pode!”.

Pela primeira vez, saí de minha função dentro do SNI:  “Vou pessoalmente acabar com isso!”.Pedi à agência do Rio um encontro com dois elementos do DOI-CODI. Fui ao Rio de Janeiro e me encontrei num hotel “.

 Onde foi ?

 Newton Cruz: “O hotel ficava no Leme. Eu me encontrei com um tenente da Polícia Militar e um sargento (do Exército). Falei: ”Aconteceu isso assim assim em relação ao Riocentro. Eu tive informações de que vocês estão pensando em coisa parecida. Vou dizer uma coisa a vocês:  vão lá e digam aos seus companheiros que vocês estiveram comigo e se acontecer qualquer coisa parecida com isso eu vou denunciar!”  (levanta a voz). Digam a eles!”.  Nâo houve mais nada. Acabou com bomba. Isso ninguém sabe”.

O general guardou silêncio sobre a reunião ocorrida num quarto de hotel no Leme, no Rio de Janeiro, com dois militares que estavam tramando o novo ataque 

 O senhor chegou a  produzir algum documento escrito sobre esta ameaça de um novo atentado no Rio ?

Newton Cruz: “Não.Nunca falei sobre isso”

Chegou a produzir algum documento internamente no SNI ?

Newton Cruz: “Não.Porque, se eu fizesse, estaria sendo falso em relação aos dois que falaram comigo”.

 Por que é que só agora o senhor decidiu fazer esta revelação ?

 Newton Cruz: “Já falei na intimidade”.

 Não: publicamente….

 Newton Cruz: “Porque saiu agora. Não sei por quê. Ah, por quê ? Porque agora falei, de repente…”.

 Quanto tempo depois do Riocentro haveria este outro atentado ?

 Newton Cruz: “Eu estava na agência central do SNI até 1983. Se o atentado foi em 1981, foi logo depois…”

 Como é que esta informação de que haveria um novo RioCentro chegou ao senhor ?

 Newton Cruz: “Não vou dizer a você! Pronto. Porque acho que, profissionalmente, não posso dizer”

 Mas é uma revelação grave que o senhor faz:  a de que poderia haver um outro Riocentro no governo Figueiredo.

 Newton Cruz: “Eu resolvi o fato. Falei do fato. Não posso falar sobre informante. Você, jornalista, fala o que um informante diz a você pedindo sigilo ?”

 Não.

 Newton Cruz: “Permita-me ser igual a você!”.

O senhor comunicou este fato ao presidente Figueiredo ?

Newton Cruz: “Com Medeiros (chefe do SNI), falei de minha ida ao Rio. Eu ia ao Rio e não vou dizer a meu chefe ? Eu disse!”.

 Que cuidados o senhor tomou na hora de ter esta conversa no hotel ?

 Newton Cruz: “Nenhum. Entrei no quarto, já preparado,sentei lá. Pedi um uísque para mim e um uísque para os informantes e conversei com eles. Pronto”.

 Que reação esses dois oficiais tiveram quando o senhor disse que eles não poderiam cometer este ato ?

 Newton Cruz :” Você pode tirar sua conclusão porque depois nunca mais houve bomba em lugar nenhum”.

Mas eles contraargumentaram ?

Newton Cruz: “Não. Ficaram quietinhos. Fiz cara feia para eles, certamente. Ficaram com medo de minha cara…”.

 Que sensação o senhor tem  por ter evitado este outro atentado ? É de alívio ?

 Newton Cruz: “Fiquei feliz da vida, claro. Achei que tinha um propósito – e o propósito foi cumprido. Fiquei feliz da vida. A pergunta acho que não tem sentido ( irônico): ah, fiquei triste….Queria que acontecesse…Ora…”

 

CONFIRMADO : EXÉRCITO DEU DINHEIRO A PRESO POLÍTICO EM TROCA DE INFORMAÇÃO ESTRATÉGICA SOBRE PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL

sáb, 03/04/10
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 

                                                           O Exército pagou, em dinheiro, a um dirigente do Partido Comunista do Brasil,o PC Do B, em troca de informações sobre onde se realizaria uma reunião em que os dirigentes discutiriam a Guerrilha do Araguaia. O PC do B atuava na clandestinidade durante o regime militar.  

                                                 O que era até hoje tido como uma suposição foi confirmado pelo general que autorizou pessoalmente o pagamento.  “A ideia foi minha” – disse o general Leônidas Pires Gonçalves – que chefiou o DOI-CODI do I Exército no Rio de Janeiro entre março de 1974 e janeiro de 1977.  A declaração do general foi feita em entrevista a este repórter, levada ao ar pela Globonews , no programa DOSSIÊ GLOBONEWS.

                                                  (Aqui, o vídeo completo :  https://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1556374-17665-337,00.html )

                                                 Repassadas ao II Exército, em São Paulo, as informações obtidas pelo I Exército, no Rio, resultaram na invasão da casa  onde estava reunido o Comitê Central do PC do B, na rua Pio XI, 767, no bairro da Lapa, em São Paulo, no dia 16 de dezembro de 1976, uma quinta-feira. Três dirigentes morreram na operação – que ficou conhecida como “Massacre da Lapa” :  Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Baptista Franco Drummond.

                                              Durante a entrevista, em que levantou a voz e se exaltou algumas vezes, o  general Leônidas Pires – que ocupou o posto de ministro do Exército durante o governo Sarney  – chamou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso  de “fugitivo”, palavra que ele usa para se referir a todos os que saíram do Brasil durante o regime militar.   

                                          As palavras do general são um documento porque retratam o que um militar de alta patente tem a dizer sobre um período conturbado da história recente do Brasil.

                                                Trechos da entrevista, gravada a propósito dos 25 anos do fim do regime militar:

                                                O senhor foi chefe do temido DOI-CODI do I Exército durante dois anos e dez meses. O senhor sabia da existência de tortura a presos políticos ? 

                                                Leônidas Pires: “Nunca houve tortura a preso político na minha área. Desafio alguém que tenha sido torturado durante este período ( N: o general chefiou o DOI-CODI durante o período em que foi chefe do Estado Maior do I Exército,  entre março de 1974 e janeiro de 1977).  Está feito o desafio! A história de tortura…Você vai me perguntar se existiu. Costumo dizer: a miserável condição humana leva a isso.  Mas, com medo da falada tortura, eles eram grandes delatores. Grande delatores. Um do Comitê Central ( do PC do B) delatou toda a turma para o meu esquema de segurança no Rio de Janeiro”. 

                                                           O que o senhor diz é uma acusação grave:  pagou a um integrante do comitê central do Partido Comunista para delatar seus companheiros. Quem pagou ? O senhor ?   

                                                      “Não: a organização. Nunca me contactei pessoalmente com nenhum subversivo. Não era minha missão. Minha missão era dirigir o órgão que faz isso”.  

                                                        De quem foi a ideia de pagar ?  

                                                         “A ideia foi minha! Fui adido militar na Colômbia (N: de julho de 1964 a novembro de 1966). Aprendi que,lá, eles compravam todos os subversivos com dinheiro. Quando propus ao DOI-CODI me disseram: “Não, mas general….”.  Mas ele foi preso e mostrou o dia em que haveria a reunião em São Paulo numa casa na Lapa. Deu o dia e a hora, por 150 mil, entregues à filha dele,em Porto Alegre”.   (O general não cita o nome do dirigente, mas  o livro “Combate nas Trevas”, lançado ainda nos anos oitenta pelo historiador e ex-militante comunista Jacob Gorender, registra que a colaboração de um integrante do PC do B  com o Exército “deu à reunião um final de catástrofe”).  

                                                                      Houve outros casos em que o DOI-CODI pagou a prisioneiros em troca de informação ?  

                                                                     “Estou falando de um DOI-CODI, o meu, no Rio de Janeiro: de 1974 a 1977” 

                                                            O único caso foi este ? 

                                                            “No meu, sim…” 

                                                             O senhor faz uma acusação que é de extrema gravidade. Um integrante do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil teria recebido dinheiro para dar informações ao Exército… 

                                                             “Deu, por 150 mil ( N: a moeda, na época, era o cruzeiro).  Mandei entregar!  Quando digo “eu”, a gente fala funcionalmente. Como disse: nunca falei com um subversivo”. 

                                                               O dinheiro que foi entregue a este integrante do Comitê Central do Partido Comunista em troca de informações, segundo o senhor diz, saía como do I Exército ?  Existia uma “caixinha” ? 

                                                          “Que caixinha nada! Um serviço de informações tem verba oficial para cumprir a missão”.

                                                             Mas as informações que ele passou, segundo o senhor diz, em troca de dinheiro, resultaram em mortes….

                                                               “Resultaram. Claro. Resultaram. Porque ninguém se entregou quando chegamos lá. Nós, não.O caso foi entregue a São Paulo. Temos áreas delimitadas de operação.  São Paulo chegou lá e deu ordem de prisão. Foram recebidos a bala. E quem começa a guerra não pode lamentar a morte. É duro de ouvir? É duro de ouvir ? Quem começa a guerra não pode lamentar a morte. Nós não começamos guerra nenhuma. A bomba no Aeroporto dos Guararapes foi o primeiro sangue que correu no Brasil. Confirmou-se que a bomba foi feita pelo pessoal da AP ( N: uma bomba explodiu no saguão do Aeroporto dos Guararapes, no Recife, no dia 25 de julho de 1966. Um almirante e um jornalista morreram na hora. O atentado foi cometido por dois militantes da AP, a Ação Popular).  Guerra é guerra. Guerra não tem nada de bonito – só a vitória. E nós tivemos. A vitória foi nossa. Porque esta país caiu na democracia que nós queríamos”. 

                                                               Que orientação o senhor dava aos seus comandados no I Exército ?

                                                                   “Eu disse assim:  “A missão que estamos fazendo é para exercer com nobreza. Nós estamos aqui para defender os interesses do Brasil! Não estamos aqui para defender os interesses de ninguém nem pessoalmente!. Segundo: não somos bandidos! Somos soldados de luta! Por isso, dou a seguinte  orientação a vocês: se vocês entrarem num aparelho lutando, alguém levantar o braço e vocês atirarem num homem de braços abertos, vocês vão se ver comigo!  Porque nós não somos bandidos! Mas, se você está na luta e achar que o indivíduo deve morrer, atire pra matar! ”.  Eu dava esta orientação como estou dando a você agora aqui. Depois, dava instruções de comportamento individual na hora da confrontação. Era uma maneira simples:  para ficar ao alcance do soldado, é que fiz esta imagem: “Não cometam arbitrariedade : na hora de dar chocolate, não se dá tiro. E, na hora de dar tiro, não se dá chocolate!”.     

                                                                  Alguns dos seus comandados atirou para matar ?  

                                                                 “Tenho absoluta certeza de que, na luta, muitos morreram e muitos mataram. Mas na atitude de soldado! Porque o soldado é o cidadão de uniforme para o exercício cívico da violência. É no mundo inteiro, historicamente. Quer guardar a frase ?  Se você vai me perguntar se soldado mata, vou ter de achar graça…”. 

                                                                   O senhor chegou a chefiar o DOI-CODI no Rio durante o regime militar e foi o primeiro ministro do Exército depois da redemocratização. O senhor admite que a tortura é uma mancha na história recente das Forças Armadas no Brasil ?   

                                                                        “Eu acho que ela, lamentavelmente, ocorreu. Mas, para ser uma mancha, ela foi muito aumentada por nossos antagonistas para justificar algumas coisas que eles fizeram e achavam que tinham o direito de fazer. Hoje, todo mundo diz que foi torturado para receber a bolsa ditadura.  Não tem cabimento. Já gastamos dois bilhões e oitocentos milhões nisso. É essa a resposta que você quer ?”.  

                                                                          O senhor já chamou a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos de medidas “altamente civilizadas”. Baseado em quê o senhor chama de civilizadas medidas que são obviamente uma violência política ?

                                                                “Porque elas são históricas. Cassação é a denominação nossa para o ostracismo na Grécia e do banimento em Roma. São civilizadas porque têm dois mil anos de atuação. Nós ainda fizemos de uma maneira mais doce do que faziam os romanos e os gregos, porque não afastamos as pessoas do lugar onde moravam. E eles afastavam”.

                                                         Mas os exilados foram obrigados a sair do Brasil… 

                                                          “Não se esqueça do seguinte: não tivemos exilados no Brasil.Tivemos fugitivos. Pode ser dura a minha palavra, mas não acho que tivemos exilados no Brasil. Não houve um decreto de exilar ninguém. Depois, os que fizeram algumas coisas e quiseram ir embora, nós os consideramos banidos. Quiseram ir embora para aqui, para lá, para acolá. Pegaram um avião e saíram por aí”. 

                                                             O senhor chama de “fugitivos” os exilados, alguns célebres, como Miguel Arraes, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes. Não é uma injustiça ?

                                                          “Não, não acho que seja injustiça. Porque a palavra exilado também não serve para eles. Exilado é alguém que recebe um documento do governo exigindo que se afaste. Tal documento nunca houve. Como é que você quer tachá-los,então ?  Dê uma sugestão! A minha sugestão é : fugitivos…”  

                                                              Historicamente são exilados….

                                                              “Que negócio é esse de historicamente ?”

                                                               O senhor também chamou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de fugitivo, entre outros exilados…

                                                               “Só ele não! Todos eles, inclusive ele! Todo mundo que foi embora sem ser expulso do Brasil considero fugitivo. Sem exceção. Fugitivos! O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e todos os outros são, para mim, fugitivos. Porque se eles tinham uma ideia – e esta ideia era confrontada  e fizeram alguma coisa que merecesse –  deveriam  enfrentar a justiça, porque seriam respeitados”

                                                               O governador Miguel Arraes, por exemplo, foi deposto, foi confinado na ilha de Fernando de Noronha e seguiu para o exílio… 

                                                               “Sim,mas foi embora porque quis !  Poderia ter voltado a Pernambuco e ter ficado em casa”. 

                                                              Deposto ? 

                                                             “Mas qual é o problema ?” 

                                                               Todo ! 

                                                                “Não é todo não! Que ele enfrentasse,como deposto, legalmente, as coisas. Faria o proselitismo – e não sairia correndo para o mundo. Assim aconteceu com os outros: saíram todos correndo. Ninguém quis ficar aqui. Alguns foram se preparar militarmente para fazer a confrontação. Onde ? Em Cuba, na Albânia, na Rússia..Quanto ao caso específico que você cita, o de Miguel Arraes: ele não foi fazer isso. Ele se deu muito bem fazendo seus negócios. É um homem de sucesso de negócios. Não acho. Você insiste nisso! Esquece que,para ser exilado, precisa ter um documento que provoque o exílio”.

                                                                 Mas,na prática, não havia condições para o exercício da política naquela época…

                                                                 “Fique,então, aguardando no país. Não precisa ir embora. Por que fugiu do Brasil? Com medo de outras sanções ?” 

                                                                    O senhor considera que o ex-governador era um fugitivo ou um perseguido pelo regime militar ? 

                                                                     “Primeiro, ele merecia as punições que recebeu, pelas atitudes que tomou….

                                                                   Não num regime democrático… 

                                                                     “…Mas a gente também se antecipa aos que querem fazer algo. O que é que ele queria fazer do Brasil ? Nós temos um grande orgulho de nosso faro! Depois, olhe o que aconteceu na Rússia, em todos os países de origem comunista, aquela mortandade. Vocês nos acusam, os da esquerda”…

                                                                    Não sou representante da esquerda… 

                                                                     “Você tem um laivozinho, tem um laivozinho…Vocês esquecem quantos milhões matou Stalin, quantos milhões matou o Khmer Vermelho, quantos mil matou Fidel Castro nessa ilha: dezessete mil. Outra coisa : exilado geralmente é o homem que sofre restrições. Os homens que foram para o Chile: eu bem que queria tirar o curso que eles tiraram lá. O senhor Fernando Henrique era professor universitário, coma vida muito bem organizada. Vivia sem nenhuma restrição financeira, só para dar um exemplo. Exilado é uma coisa. Quem vai voluntariamente – e gosto de chamar de fugitivo – é outra. Não faça confusão. A sua convicção sobre exilado precisa acabar!”  

                                                                           Mas não é convicção minha. É um fato histórico! 

                                                                             “Não é fato histórico não senhor! Fato histórico se houvesse uma lei fazendo o exílio. O fato histórico foi forçado pela mídia batendo no mesmo tambor: bam-bam-bam-bam-bam-bam….”

                                                                          Se não eram exilados, por que é que o governo militar promulgou uma Lei da Anistia permitindo que eles voltasssem ? Se não existiam exilados, para   que uma Lei da Anistia ?

                                                                        “Acontece o seguinte: eles estavam assustados. Nós dissemos para eles: podem vir, não há perigo nenhum. Mais do que fugitivos, eram assustados. Sempre pergunto: alguma coisa tinham feito para ir embora!”.



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