Uma idiossincrasia une o escritor brasileiro Rubem Fonseca ao americano J.D.Salinger : o horror a entrevistas.
Não são os únicos, é claro. A galeria das celebridades brasileiras que dedicam aos repórteres um silêncio de pedra inclui João Gilberto, Dalton Trevisan, entre outros.
Há casos de gente que, depois de décadas tratando os repórteres a golpes de silêncio, resolve abrir a guarda. É o que aconteceu com o Carlos Drummond de Andrade já octogenário.
Cumpri o meu papel de abelhudo: tratei de importuná-lo por telefone, já que ele, em situações normais, era alérgico a contato pessoal com repórter. A tática deu certo. Gravei uma extensa entrevista com o autodenominado Urso Polar. Tive o descaramento de fazer setenta e seis perguntas. O poeta respondeu a todas. Dezessete dias depois, estava morto. Sem querer, a entrevista virou um testamento.
A íntegra da entrevista foi publicada no livro “DOSSIÊ DRUMMOND” – que ganhou, não faz tempo, uma nova edição da Editora Globo.
Eu me arrisco a dizer que o DOSSIÊ é um bom começo para quem quer conhecer o maior poeta brasileiro. A falsa modéstia não me impede de dizer que Paulo Francis dedicou quase uma coluna inteira ao livro. Disse que aquela entrevista de Drummond foi a melhor que tinha lido.
Já tratei da entrevista telefônica aqui:
https://g1.globo.com/platb/geneton/2009/09/07/grande-poeta-e-pessimo-profeta-drummond-se-confessa-ao-telefone-sou-uma-pessoa-terrivelmente-corajosa-porque-nao-espero-nada-de-coisa-nenhuma/
Do alto de minha jaula de dinossauro, digo aos jovens repórteres: não se impressionem com quem vive dizendo que entrevista por telefone não funciona. É claro que se deve tentar o contato pessoal. Mas, quando o telefone é a única saída, por que não usá-lo desbragadamente ? Basta ter um equipamento que garanta uma gravação de boa qualidade. Se eu achasse que entrevista por telefone não funciona, não teria colhido o último grande depoimento de Carlos Drummond de Andrade.
Por falta de vocação para exercer tarefas realmente importantes, sou, desde a tenra idade de treze anos, um caçador de declarações alheias. Belo destino…
Tentei arrancar uma entrevista com Rubem Fonseca longe de casa, em Paris. A tarefa foi parcialmente bem-sucedida. Consegui gravar um depoimento em que ele falava na primeira pessoa.
(Vou fazer uma confissão inconfessável: tenho uma certa simpatia pelo mutismo de escritores e artistas que fogem de repórteres. Se eles querem que suas únicas declarações públicas sejam as obras que produzem, por que não ? Não há entrevista de Drummond que consiga reproduzir a beleza, a contundência e a tristeza de versos como os de “Consolo na Praia”, por exemplo. Tenho certeza de que seria impossível reproduzir em entrevista uma declaração tão definitiva sobre a postura diante da vida quanto a que ele fez nos versos belíssimos de ”A Máquina do Mundo”).
Mas… entrevistas podem servir, claro, para lançar luzes sobre a personalidade de quem cria. Podem contribuir para agitar a pasmaceira ou provocar iluminações. É o suficiente. Eis, portanto, o outro lado da moeda: os que se fecham no mutismo perdem uma boa chance de ter um contato que pode ser, sim, produtivo com o leitor (ou ouvinte ou telespectador).
Fim das digressões.
Voilà minhas anotações sobre o escritor que, diante de um repórter, prefere ficar mudo:
Cena 1
Rio de Janeiro, 2005
Os detetives dos livros de Rubem Fonseca são espertíssimos. Notam tudo. Quem navegou deliciado pelas páginas de um livro como Bufo & Spalanzanni certamente se surpreendeu com a argúcia dos investigadores criados pela imaginação de Fonseca. Mas lamento informar que o próprio Rubem Fonseca não é tão atento : não notou que eu segui seus passos sorrateiramente pelas ruas do Leblon. Fonseca nem desconfiou. O criador não é tão arguto quanto suas criaturas.
Faz pouco tempo: Rubem Fonseca estava na fila do Supermercado Zona Sul, na rua General Artigas. Sozinho. Anônimo. Silencioso. Usava um boné, não para se proteger do sol – porque já eram sete da noite -, mas certamente para se resguardar da investida de algum leitor inconveniente ou, pior, algum repórter intruso, como eu. O horror, o horror, o horror.
Pensei: vou fazer uma foto de Rubem Fonseca, a “Greta Garbo das letras”, o homem que devota um consistente horror a repórteres e fotógrafos. O problema é que minha máquina – amadora – estava em casa. Resolvi acompanhar, à distância, a caminhada de Fonseca pelas ruas, na saída do supermercado. Quem sabe? Se ele passasse em frente ao meu apartamento, eu teria trinta segundos para correr, pegar a máquina lá dentro e voltar para a rua, a tempo de eternizar o flagrante num disquete.
Rubem Fonseca saiu do supermercado, entrou à direita na General Artigas, dobrou à esquerda na Ataulfo de Paiva e seguiu, anonimamente feliz sob a lua do Leblon. Guardei uma distância prudente: fiquei sempre a uns dez passos do homem, para não perdê-lo de vista. Não perdi.
Rubem parou diante de uma banca. Bela imagem: o homem célebre e solitário contemplava as manchetes dos jornais pendurados na banca como se fossem roupas num varal. Mas lamento informar que perdi a foto perfeita. Não deu tempo de ir buscar a máquina.
O homem sumiu de vista, entrou à direita na rua General Urquiza, caminhou em direção ao mar do Leblon. O repórter ficou a ver navios.
É tudo o que Rubem, o fugidio, sempre quis.
Cena 2
Londres, 1997
Quando cruza o Atlântico para falar a platéias estrangeiras, Rubem Fonseca se torna extraordinariamente falante, brincalhão, nada tímido. O Rubem Fonseca que enfrentou uma platéia de leitores – a maioria, brasileiros – num salão do Royal Festival Hall, às margens do rio Tâmisa, em Londres, em junho de 1997 – era o oposto da fera inacessível que ele parece ser.
O palco parecia a materialização de uma miragem: ao lado de Fonseca, outra celebridade arredia, o suposto tímido Chico Buarque de Hollanda, lia trechos do livro que acabara de lançar em terras inglesas.
Temeridade: quando foi concedida à platéia o direito de abordar as estrelas, perguntei o que é que Chico Buarque achava dos críticos que o consideravam um “intruso” entre os escritores. Rubem Fonseca tomou as dores. Não deve ter gostado da pergunta. (anotei: ele vestia um paletó marrom claro, sem gravata. A barba branca e grisalha e a cabeleira rala davam-lhe um ar de ancião). Tirou o charuto da boca e disparou :
- Quero dizer que Chico Buarque sempre foi um escritor – a vida inteira. E é um poeta. Noventa e nove por cento dos críticos elogiaram os livros de Chico. Somente um crítico o tratou como um ”outsider”. Somente um! Nós, escritores, consideramos Chico Buarque um escritor. Em nome de todos os escritores, quero dizer que temos orgulho de ter Chico Buarque entre nós !
Lá fora, os dois ofereceram autógrafos aos leitores. Quando chegou a minha vez, Rubem Fonseca me brindou com uma exclamação que soou algo irritada (“Qual é, oh cara?”). Depois, escreveu no meu exemplar do livro de Chico Buarque:
- Chico é um grande escritor. June,1997.
Guardei a relíquia.
Cena 3
Paris, 1987
Quase, quase, quase. Como diria Geraldo José de Almeida, o locutor da Copa de 70, “por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo”. Quase que consegui uma entrevista com Rubem Fonseca. De passagem por Paris, eu soube que ele iria participar de um debate sobre cultura brasileira num auditório do Centro de Cultura Georges Pompidou. Peguei o gravador.
Eis a fera diante de mim, num corredor que dá acesso ao auditório: de gravata, suéter vermelho, sobretudo azul. Faço formalmente, em nome do povo brasileiro, um pedido de entrevista (os repórteres passam a vida na ilusão de que estão falando em nome das multidões). Rubem Fonseca responde com um sorriso malicioso: “Sou tímido” – o que, obviamente, é mentira. Faço nova investida. “Nem sonhar” – ele decreta, para desconsolo do autor do pedido. Pousa a mão sobre meu ombro, faz uma concessão : “Por que é que você não escreve sobre o que ouviu?”. Parcialmente recompensado em minha teimosia, ligo o gravador assim que ele começa a falar.
De volta ao Brasil, transcrevo, vírgula por vírgula, as palavras da esfinge e encaminho tudo a Zuenir Ventura – grande amigo de Rubem. Dias depois, Zuenir me diz que Rubem Fonseca tomou um grande susto quando viu que o que tinha dito lá em Paris, a nove mil cento e quarenta quilômetros do Leblon, tinha rendido cento e quarenta linhas – um raríssimo depoimento de nossa Greta Garbo na primeira pessoa do singular.
Os principais trechos :
“Nasci em Juiz de Fora. Lá, aos dois meses de idade, eu tinha uma babá que me levava para passear de tarde. Mas, na verdade, ela ia ver o namorado, o lanterninha do cinema. Ela me sentava, ia namorar e eu via sessões atrás de sessões. Aos três anos, eu já tinha visto vinte mil horas de filme. Fui crescendo. E disse assim: “Quero fazer cinema!”. Eu deveria fazer cinema. Mas, quando eu tinha oito anos, me deram uma máquina de escrever. Fiquei com aquela máquina de escrever dentro de casa e querendo fazer cinema. Era difícil…”.
“As pessoas me dizem assim: “Ouvi dizer que você lê um livro por dia!”. É verdade. Mas vejo três filmes por dia! Vejo um filme atrás do outro”.
“Sou um cinéfilo que foi condenado a escrever. Uma vez, Arnaldo Jabor me disse: “Eu queria ser um romancista!”. E eu: “Vamos trocar? O que eu queria era ser cineasta!”.
“O que o bom diretor de cinema pretende é pensar de uma maneira criativa. Como romancista, sei que o romance cedeu o lugar como manifestação artístico-cultural de massa. Já se disse que Theodore Dreiser (romancista americano, autor de “Uma Tragédia Americana”) cedeu lugar nas salas de aula a George Pabst, o grande diretor. É ótimo, é interessante que aconteça. O problema é que, hoje, parece que as pessoas não têm paciência de ficar vendo um filme durante duas horas, sem que haja um intervalo comercial no meio. O Pabst foi substituído pelo anúncio do Creme Ponds! É uma coisa séria”.
“O problema principal – e o único que existe nessa coisa de o cinema substituir a literatura – é que a literatura tem mais significados. Do ponto de vista polissêmico, a literatura é superior ao cinema. Vou explicar. Cito um grande filme de um grande cineasta: São Bernardo – de Leon Hirzmann. Todos temos uma grande admiração por Leon Hirzmann, grande cineasta. Quandi vi São Bernardo, eu tinha uma idéia sobre o personagem principal, criado por Graciliano Ramos. Minha mulher tinha uma idéia sobre o personagem. Cada pessoa que tivesse lido o livro tinha uma idéia. Criava o personagem junto com Graciliano Ramos. Isso é a polissemia da literatura. Mas,no grande filme do grande Leon Hirzmann, o personagem era Othon Bastos. Se eu fosse ver o filme pela segunda vez, era Othon Bastos. Era sempre Othon Bastos! Da segunda vez que li São Bernardo, o personagem já era outro, no livro”.
“Há uma crença de que fazer um roteiro de cinema é mais fácil do que fazer um romance. Não é absolutamente verdade. É fácil fazer um mau roteiro de cinema. Você pode fazer um roteiro com facilidade. Mas fazer um bom roteiro de cinema é tão difícil quanto escrever um bom romance”.
“Um dia, depois de ter escrito alguns livros e ter visto mais cinema, fui fazer uma tradução de um livro de Joseph Conrad chamado “The Nigger of Narcissus”. Há, no prefácio, uma frase que não consegui esquecer: “My task is to make you hear. My task is to make you feel. And, above all, to make you see. That`s all. And everything”. Minha tarefa é fazer você ouvir. Minha tarefa é fazer você sentir. E,acima de tudo,fazer você ver. Isto é tudo. E é muito”.