DA SÉRIE CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS – 1

ter, 29/09/09
por Geneton Moraes Neto |

1: Um OVNI na boca do astronauta

Pode ter sido uma ilusão de ótica, mas tive a clara, nítida e inarredável impressão de que testemunhei uma cena estranha, em Brasília, durante a gravação de uma entrevista com um astronauta que pisou na lua: a arcada dentária superior do herói do espaço se moveu ligeiramente para frente, em meio a uma resposta.

Palpite :não eram dentes naturais. Dente não sai do lugar. Se os dentes se mexeram em bloco, o herói do espaço usava dentadura.

Há quem veja OVNIs no céu. Vi um OVNI – objeto voador não-identificado – logo ali, na boca do astronauta que pisou na lua.

O nome do herói do espaço era Edgard Mitchell, um dos astronautas da Apolo 14.

Ah, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, perdoai a indiscrição.

2: O bafo do Prêmio Nobel

Que as musas da literatura me perdoem, mas vou cometer uma indiscrição inútil, banal, desnecessária e dispensável : o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago exalava mau hálito quando me deu uma entrevista no Copacabana Palace.

Pronto. Contei.

Agora, disfarço, olho para o chão, saio da sala de fininho.

3. O chiclete invisível da Dama de Ferro

Tive uma vez a chance (fugaz) de dirigir a palavra à primeira-ministra britânica Margareth Thatcher (em breve, um post sobre o assunto). Vista a dois palmos de distância, a pele do rosto da chamada Dama de Ferro impressionava pela palidez. Os olhos eram de um azul fulminante. Mas um detalhe idiota me chamou a atenção: por alguma disfunção odontológica, compreensível numa senhora de idade, a Dama de Ferro de vez em quando movimentava estranhamente as mandíbulas, como se estivesse mastigando um chiclete invisível. Não era chiclete, óbvio. Era um tique da velhice. O tempo passa.

4.Um mico num quarto de hotel, em nome da fé e dos olhos de Darlene Glória 

A atriz Darlene Glória era um símbolo sexual indiscutível nos anos setenta. Brilhou em “Toda Nudez Será Castigada”, a versão cinematográfica que Arnaldo Jabor concebeu para a peça de Nelson Rodrigues. Um belo dia, jogou a carreira para o alto para se converter de corpo e alma à fé religiosa. Virou pregadora fervorosa. Apareceu no Recife para fazer sermões. Fui entrevistá-la, com três parceiros jornalistas. 

A musa nos recebeu no quarto num quarto do Hotel São Domingos. Estava linda. Terminada a entrevista, ela me olhou nos olhos e disse: “Eu estou notando, nos seus olhos, que você precisa de Deus!”. Convocou, então, a pequena troupe de entrevistadores a fazer uma oração, em círculo, no centro do quarto. Eu não tinha ido ali para rezar, mas para fazer uma entrevista. Mas não tive como negar o convite. Olhei para o chão e, por ordem da pregadora, comecei a rezar - de mãos dadas logo com quem : com ela, Darlene Glória, minha musa das telas do cinema. Jamais imaginei que um dia estaria de mãos dadas com a musa de Toda Nudez Será Castigada num quarto de hotel. Mas estive, na circunstância mais solene possível.

C´est la vie.

5. Meu ídolo de infância responde : não

Uma das lembranças imbatíveis de minha infância :  ver as comédias estreladas por Jerry Lewis nas matinês. Décadas depois, o meu ídolo passa por Londres, para uma curtíssima temporada num teatro. Vi a peça. O Jerry Lewis que subiu ao palco do teatro não fazia concessões ao Jerry Lewis que fazia palhaçadas impagáveis nas telas: nada de contorcionismos impagáveis nos músculos do rosto, nada do ar abobalhado, nada de olhares enviezados.  Por um breve momento, fez um trejeito que lembrava o Jerry Lewis do cinema. A platéia veio abaixo. Tento uma entrevista com o homem pelos meios civilizados: um fax para a assessoria. Resposta seca: não, Jerry Lewis não vai dar entrevista ao senhor. Ponto. Sucintamente, o motivo: ele só falaria com jornalistas que escrevessem para o público que pudesse ir ver a peça. Não era o caso de um repórter de um país distante. Brasil ? Não, neca, não interessa. Pode tirar o time de campo.

Tirei.

Acrescentei o verbete “Lewis, Jerry” à minha Enclopédia de Entrevistas Perdidas.

Novas confissões inconfessáveis em breve – ou a qualquer momento, em edição extraordinária.

O DIA EM QUE O METALÚRGICO (E EX-TINTUREIRO) LUIZ INÁCIO CONFESSOU QUE NÃO TINHA “VOCAÇÃO POLÍTICA”

ter, 29/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 Faz trinta anos: um pernambucano que se tornara estrela ascendente do movimento sindical volta a Pernambuco pela primeira vez depois de ficar famoso nacionalmente. As declarações que o visitante ilustre fez naquele dia soam hoje surpreendentes, se confrontadas com o que viria a acontecer com ele. O Lula sindicalista dizia que não se considerava uma “liderança”. Confessava não ter “vocação política”. Desencava os partidos políticos.

Meninos, eu vi e ouvi:

O sobrenome não era um sobrenome. Era uma profissão: metalúrgico. O nome não era um nome. Era um apelido: Lula. A combinação esquisita de um nome que era apelido e um sobrenome que era uma profissão servia para identificar aquele sindicalista que despontava para a fama: “Lula Metalúrgico”. Era assim que nós, repórteres que cobríamos a visita do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao Recife, no remoto ano de 1979, o chamávamos.

Lula já tinha sido capa de uma revista semanal. Começava a atrair a atenção do Brasil como o primeiro líder sindical surgido sob o regime militar. Fazia, ali, a primeira visita a Pernambuco depois de ficar conhecido. Ainda não era uma celebridade.

O pernambucano que visitava Pernambuco pela primeira vez depois de ficar conhecido em todo o Brasil só queria uma coisa: encontrar tempo para se dedicar à família…

Quem poderia imaginar que aquele pernambucano que voltava ao Recife para defender um “novo sindicalismo”  iria, um dia, subir a rampa do Palácio do Planalto como presidente? Ninguém.

O Partido dos Trabalhadores não existia. Era apenas uma idéia na cabeça daquele sindicalista, que, ao abrir a boca diante de platéias, subtraía o “s” do plural das palavras com a mesma desenvoltura com que soltava imprecações contra governos militares que manipulavam os índices de inflação.

O Lula que desembarcou no Recife era um líder sindical que resistia às cantadas para se engajar em partidos políticos – não importa quais fossem. Descubro em meus arquivos uma gravação em que ele avisa:

 ”Não sou filiado a partido político algum. Não sou filiado à Arena, não sou filiado ao MDB. Fui contra o bipartidarismo quando ele foi instituído. Por uma questão pessoal, enquanto houver bipartidarismo, não vou me filiar a partido político algum. Quem sabe, um dia, surja um partido em que os trabalhadores tenham voz, onde os trabalhadores sejam maioria. Quando surgir esse partido, serei – não tenham dúvida – um dos filiados”.

O sindicalista Lula estava a um milhão de anos-luz do candidato Lula que, quase um quarto de século depois, seria capaz de dar bom-dia a poste em troca de um voto – como faz todo candidato que se preza.

O Lula Metalúrgico pichava gente da Arena e do MDB, dispensava a ajuda de estudantes que se ofereciam para distribuir panfletos a operários, acabrunhava-se com a intromissão de intelectuais na atuação do sindicato, fazia restrições à ótica das pastorais operárias da Igreja Católica, esculachava a conduta da chamada “grande imprensa”.

Aos que tentavam sondar seus planos futuros, oferecia uma resposta que, hoje, soa como curiosidade arqueológica. Lula dizia que, simplesmente, não tinha “vocação política”. Dava-se por satisfeito no exercício da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.

O sindicalista Lula quebra logo a solenidade de um encontro com o arcebispo de Olinda e Recife: “Dom Hélder, meu filho tem nome de costureiro, Sandro, mas é macho!”  

 O então presidente da seção estadual do MDB – Jarbas Vasconcelos, oposicionista brigão que, duas décadas depois, se elegeria duas vezes governador de Pernambuco – é o cicerone na visita que o sindicalista barbudo faz ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.

O arcebispo vivia numa casa modestíssima, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro das Graças, no Recife. Um poster de Martin Luther King – com a inscrição “Eu tenho um sonho” – ornamentava a parede da sala. Lula troca gentilezas com Dom Hélder. Diz que a trajetória do arcebispo servia de exemplo para os trabalhadores. Dom Hélder ouve o elogio com um meio-sorriso nos lábios. O metalúrgico apresenta aos anfitriões o filho caçula, um menino de um ano e poucos meses: “Ele tem esse nome de costureiro, Sandro, mas é macho!” Dom Hélder, Jarbas Vasconcelos e a mulher de Lula, Marisa, riem.

Aquela viúva que atraíra os olhares do também viúvo Luiz Inácio Lula da Silva se tornaria, tanto tempo depois, a primeira-dama do país. O primeiro marido de Marisa, um motorista de táxi, morreu assassinado num assalto. A primeira mulher de Lula morreu de parto – junto com o primeiro filho do casal.

Depois da visita a Dom Hélder, a estrela emergente do sindicalismo brasileiro fez uma pausa no périplo recifense para conversar com os repórteres. Hoje a cena seria impensável, mas na época era assim que acontecia: em vez de convocar a imprensa para o local da entrevista, Lula é que se dava ao trabalho de ir a uma redação. A gravação foi feita na então sucursal do Recife do Jornal do Brasil, perto da casa de Dom Hélder.

As palavras do “sapo barbudo” ( apelido que ganharia de Leonel Brizola dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) naquele final de manhã no Recife se transformaram, com o tempo, em relíquias preciosas para os que tentam entender a trajetória política de um presidente que um dia foi um metalúrgico irritado com partidos:   

O “sapo barbudo” (apelido que ganharia dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) revisita, então, memórias distantes:   Em que situação você saiu de Pernambuco para morar em São Paulo?

Uma passagem pouco conhecida da biografia do metalúrgico Lula em São Paulo : “Trabalhei quase três anos como tintureiro” 

Lula: “Não me lembro se foi em 1951 ou 1952. Mas saí de Pernambuco para não morrer de fome. Fui com toda a família. Meu pai já estava lá. Minha mãe tinha um pedaço de terra em Garanhuns, trabalhava na roça e não conseguia sustentar a família. Então, a única forma que ela encontrou para sobreviver – na época, eu era criança – foi ir embora, para onde estava o marido, para poder tentar cuidar dos filhos. Eu tinha uns seis anos”.

 Quando você começou a trabalhar em São Paulo?

“Comecei a trabalhar em 1958, com 13 anos de idade. Trabalhava como tintureiro, numa tinturaria. Trabalhei quase três anos como tintureiro. Depois, entrei numa empresa metalúrgica. Trabalho hoje nas Indústrias Villares”.

Como é que você entrou no sindicato?

“Eu entrei no sindicato em 1969. Um dia, fui lá ver uma assembléia, gostei e fiquei” 

Você reconhece que é o primeiro líder político que surgiu fora do âmbito parlamentar nesses últimos tempos?

“Nem me considero uma liderança. Eu me considero, muito mais, um elemento que conseguiu captar os desejos de uma classe. Tentei levar os desejos dessa classe adiante e transformá-los numa bandeira de luta. Acho que a sociedade inteira tem muita responsabilidade – como os estudantes, com aqueles movimentos de 1977-  e os intelectuais. Nós, os trabalhadores, somos um dos setores que entraram na briga”.

Você se considera, então, um resultado da abertura comandada pela sociedade civil?

“Exatamente. Porque faço parte dessa sociedade”. 

Além da circunstância política concreta da abertura, o fato de você ter conseguido se tornar porta-bandeira de uma classe pode ser atribuído a quê? Haveria uma vocação pessoal ou foram apenas as circunstâncias políticas que favoreceram?

“Já começa a ficar difícil falar da gente… Gostaria que, aí, você colocasse de sua cabeça como é que você vê a coisa. Porque, para mim, fica muito difícil falar…”.

 Alguma experiência passada de partidos políticos no Brasil entusiasmou você?

“Não. Lamentavelmente, nenhuma”. 

Que experiência chegou perto do que você espera de um partido representativo?

“Nenhum partido me entusiasmou. O Partido Comunista, por exemplo, sucumbiu da mesma forma que nasceu. Quer dizer: nasceu e morreu. Não foi obra dos trabalhadores. Veio de cima para baixo, um negócio imposto à classe trabalhadora. Alguns partidos que se diziam representantes da classe trabalhadora, como o PTB, o PC e o próprio Partido Socialista, nunca foram legitimamente representantes dos trabalhadores, porque não nasceram da classe trabalhadora. Foram impostos à classe”. 

Quais são, afinal, os planos de Lula na política?

“Não sei. Não pensei ainda. Deixe contar uma coisa: toda essa vida que tenho levado tem me afastado muito de minha mulher e dos meus filhos. Hoje, praticamente, não disponho de um horário para minha família. Não posso permitir que minha mulher fique sozinha na hora de cuidar da família. A única coisa de que tenho certeza é que, no dia 25 de abril de 1981, eu me desligo do sindicato. O que vai acontecer depois daí só vou saber a partir do dia 25. Não tenho vocação política. Por enquanto, o que pretendo é continuar o trabalho no sindicato”. 

UMA “PROVOCAÇÃO” DE GABEIRA CONTRA UM TABU DA ESQUERDA : POR QUE É QUE NINGUÉM É CAPAZ DE PARTICIPAR DE UMA MANIFESTAÇÃO EM HOMENAGEM A UM POLICIAL MORTO EM SERVIÇO ?

seg, 28/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O repórter-que-vos-fala gravou uma longa entrevista com o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira. O regime foi de esforço concentrado: seis horas quase sem interrupção. O depoimento serviu como balanço da trajetória de uma geração que, entre erros monumentais e acertos indiscutíveis, tentou mudar o Brasil. Ponto. Parágrafo.

Um pequeno esclarecimento à praça: não tenho qualquer vinculação política ou partidária com Fernando Gabeira. Meu interesse na gravação do depoimento que terminou virando livro (“DOSSIÊ GABEIRA : O FILME QUE NUNCA FOI FEITO”) foi puramente jornalístico. Sou do Partido dos Perguntadores do Brasil. That´s all.

O blog já teve a chance de tratar de uma das revelações feitas por Fernando Gabeira na entrevista: a participação do ator Carlos Vareza na operação para disfarçar guerrilheiros que tinham sequestrado o embaixador.

A certa altura do depoimento publicado,na íntegra, no “DOSSIÊ GABEIRA”, o ex-guerrilheiro lança uma “provocação” : por que, até hoje, ninguém se mostra disposto a participar de uma manifestação a favor de um policial morto em serviço, por exemplo ?  Quem vai transformar em tema de denúncia a indiscutível opressão e o domínio territorial exercidos por criminosos contra populações das grandes cidades ? 

Editora Globo)

Fernando Gabeira : provocações no depoimento (Foto:Editora Globo)

Eis uma pergunta e uma resposta do longo depoimento:

GMN: Em Diário da Salvação do Mundo, você fez uma espécie de profissão de fé otimista: “Entre falar das misérias do presente e do potencial do futuro, talvez seja melhor optar por este último, localizar os pontos mais positivos do cotidiano, projetá-los para a frente, compreender que, por pior que seja a vida, o desejo de mudá-la significa a introdução de um elemento subjetivo novo, cuja simples existência é um dado de felicidade num vale de lágrimas”. Quais são os “pontos mais positivos do cotidiano” que Gabeira identifica no Brasil de hoje, quarenta anos anos depois de 68?

Fernando Gabeira: “O primeiro ponto é o aprofundamento da democracia que, hoje, no Brasil, é muito mais sólida do que no passado. É mais sólida do que em países vizinhos. Demos um grande passo,  como se estivéssemos coroando um caminho de duzentos anos em busca da democracia”.

“A justiça social sempre foi um grande desejo. O Brasil é um país que vive, ainda, com uma grande disparidade de rendas e de recursos. Mas é uma disparidade que nos últimos anos foi combatida – no governo de Fernando Henrique e, mais acentuadamente, no governo Lula”.

“A luta  sobre direitos humanos é permanente.  O trabalho de direitos humanos no Brasil quer proteger o indivíduo contra a violência do Estado, como, por exemplo, no caso da menina que foi deixada numa cela no Pará ao lado de presos comuns. Eis um caso típico de direitos humanos desrespeitados pelo Estado”.

“Ao longo desse período, no entanto,  formou-se um crime organizado que exerce domínio territorial sobre  parte das cidades e pratica uma grande opressão sobre os moradores. Não tivemos a capacidade de incluir esta questão na agenda dos direitos humanos !”               

“Vem daí a grande dúvida da sociedade sobre a nossa sinceridade: “Vocês só trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo Estado ? Por que não trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo crime organizado ?”  É uma lacuna que terá que ser respondida de alguma forma”.

O ex-guerrilheiro quer saber por que ainda hoje não há a “mínima possibilidade” de fazer campanha contra a prisão de intelectuais em Cuba, por exemplo

“Há resistência, por exemplo, na hora de aderir a uma manifestação pela morte de um policial que tenha perdido a vida em serviço. É algo que não existe hoje, ainda, no movimento de direitos humanos. Mas o movimento cresceria se pudesse se reaproximar da sociedade”.

“O que a sociedade diz é claro. É o que ela diz historicamente para a esquerda: “Direitos humanos existem dos dois lados!”. A esquerda é hábil em discutir direitos humanos quando se trata de um desrespeito cometido por um país capitalista, mas, quando se trata de um desrespeito em um país socialista, o silêncio baixa”.

“Quando houve o caso da prisão de setenta e tantos intelectuais em Cuba, tentei fazer uma campanha aqui. A repercussão era mínima: não havia nenhuma possibilidade de criar um verdadeiro movimento de solidariedade àqueles intelectuais” .

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PS: Pausa para uma divagação jornalística. A trajetória acidentada de Fernando Gabeira desde os tempos da luta armada contra o regime militar é jornalisticamente interessante. Promessa: se um dia eu achar que uma história tão atribulada quanto a de um jornalista que resolveu participar da guerrilha contra o regime militar não é jornalisticamente interessante, prometo que terei a “clarividência” de guardar a viola, apagar a luz do meu palco mambembe e ir plantar pitanga em algum sítio da zona rural de Santa Maria da Boa Vista. Se todo jornalista burocrata fizesse ao planeta o imenso favor de abandonar imediatamente a profissão para ir plantar pitanga num sítio remoto, a imprensa seria dez,vinte, cem vezes mais interessante. Mas, não. Nossa imprensa é “previsível, empolada, chata – meu Deus, como é chata”, para repetir as palavras de São Paulo Francis. Faz parte do folclore jornalístico : desde o tempo dos dinossauros, as redações sempre estiveram povoadas de jornalisticidas, os imbatíveis assassinos do jornalismo, gente especializada em tornar cinzento, burocrático e entediante tudo o que poderia ser vívido, interessante e envolvente. Lástima, lástima, lástima. Fraude, fraude, fraude. Fim da divagação).

OS ESTILISTAS TRANSFORMAM AS MULHERES “EM MACACAS”. E A MENTALIDADE POLITICAMENTE CORRETA É UM NOVO TIPO DE “TOTALITARISMO” (PAUL JOHNSON DISPARA CHUMBO GROSSO, NA ENTREVISTA QUE PAULO FRANCIS NÃO TEVE TEMPO DE FAZER)

sáb, 26/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 
 
 
 

                                                                                                                                                               

                                                                                                                                        

a fera do Tâmisa

Paul Johnson: a fera do Tâmisa (Imagem:Paulo Pimentel/TV Globo)

Faço um ranking imaginário. Qual terá sido a declaração mais “politicamente incorreta” que já tive a chance de ouvir de um entrevistado ?  

Uma candidata forte a levar a medalha de ouro: a declaração que um dos mais polêmicos intelectuais britânicos, o historiador Paul Johnson, fez sobre os estilistas, costureiros e assemelhados, numa longa entrevista que gravei com ele em Londres.

Em resumo:  Johnson diz que, por serem majoritariamente homossexuais, os estilistas criam vestimentas ridículas que só servem para transformar as mulheres em “macacas”. O pior: as mulheres se prestam a este papel.

Uma registro dos bastidores: quem deveria ter feito a entrevista com Paul Johnson era Paulo Francis – sim, ele, o lobo hidrófobo. De passagem pelo escritório da TV Globo em Londres, Francis estava à procura de entrevistados para o programa “Milênio” da recém-inaugurada Globonews. O prédio onde funciona a Globo, ao final de uma rua sem saída chamada Oval Road, em Camden Town, é uma construção de tijolos aparentes que, por algum motivo que só Freud explicaria, me lembra o Depósito de Livros Escolares do Texas. Por sorte, nenhum Lee Harvey Oswald apareceu por lá.

Fiz um punhado de sugestões. Francis aceitou imediatamente a proposta de entrevistar Paul Johnson. Ampliados por uma lente fundo de garrafa, os olhos míopes e azuis de Francis bilharam. O encontro Francis x Johnson seria um choque de monstros: o encontro entre o Lobo Hidrófobo (Francis) e a Fera do Tâmisa ( Johnson). Eu faria questão de assistir à contenda de camarote. 

Fiz a sugestão. Paulo Francis topou. O entrevistado seria Paul Johnson. Ia ser encontro do Lobo Hidrófobo com a Fera do Tâmisa. Desgraçadamente, Francis não teve tempo de voltar a Londres. Resultado: Bibiu entrou em campo no lugar de Pelé.

Havia pontos em comum entre a trajetória dos dois. Paul Johnson também tivera um passado de esquerda. Virou um conservador de carteirinha. Orgulhava-se de jamais ter pousado os pés num concerto de música pop, por exemplo. Tinha horror a ícones como Picasso. Motivo: as simpatias comunistas do artista. Aqui e ali, lembrava Paulo Francis. 

Nesta passagem por Londres, Francis dizia-se orgulhoso de uma declaração que fizera no Brasil: numa entrevista à TV, dissera que se sentia “tecnicamente morto” numa sociedade dominada pela vulgaridade. Pergunta-se: o que Francis diria hoje ao ver idiotas marombados e louras oxigenadas trocando grunhidos em rede nacional? 

Francis viajou para Nova Iorque em seguida. Ficou de voltar a Londres, como sempre. Poucos meses depois, no dia quatro de fevereiro de 1997, morreu fulminado por um ataque cardíaco, num início de manhã, no apartamento em que morava em Nova Iorque. Não teve tempo de fazer a entrevista que eu sugerira.

Por artes do destino, coube a mim a tarefa de entrevistar Paul Johnson. Sem falsa modéstia: eu me senti como se fosse Bibiu, ex-zagueiro-central do Sport Clube do Recife, entrando no lugar de Pelé. A vida pode ser cruel com o jornalismo. Ali,foi. Com toda certeza, o encontro de Paulo Francis com Paul Johnson produziria um diálogo de altíssimo nível. Minha entrevista com Paul Johnson produziu declarações interessantes - o mínimo que um repórter espera colher de um interrogatório. Paul Johnson tinha aceitado o pedido de entrevista. Alguém precisava entrevistar o homem. Desgraçadamente, Paulo Francis estava morto. Cumpri a tarefa na medida de minhas possibilidades. Assim caminha a humanidade. 

Eis a entrevista que Paulo Francis não teve tempo de fazer:

O intelectual Paul Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso e tarado

Defensores da mentalidade politicamente correta,tremei. Paul Johnson vem aí. Os fãs da fera o consideram um dos mais brilhantes historiadores britânicos. Os detratores ficam horrorizados quando lêem os freqüentes petardos que ele dispara contra, por exemplo, a arte moderna.

Colunista da revista Spectator,colaborador do Daily Telegraph, Paul Johnson pode ser acusado de tudo, menos o de ser um historiador pouco ambicioso : depois de escrever “A História dos Judeus”, mergulhou na fundo tarefa de produzir “A História do Cristianismo”.

Paul Johnson é um caso clássico de intelectual que nunca teve medo de nadar contra a corrente. Minorias que se julgam perseguidas devem ou não ser criticadas ? Devem, sim, responde a Fera do Tâmisa.

Picasso é um grande artista ? Não é não – brada Johnson, autor de um livro de ensaios chamado “To Hell With Picasso” (algo como “Que Picasso vá para o Inferno”). Picasso – garante ele – não passa de um stalinista que apoiou um regime totalitário.

A flexibilidade de conceitos morais é uma conquista do pensamento do século XX ? Não é, nunca foi nem poderia ter sido – rebate o impaciente Johnson. O relativismo moral –diz ele – é uma praga que faz os ingênuos acreditarem que não existe nada que seja absolutamente condenável.

As universidades ? Não passam de “fábricas de ignorantes”

Conservador assumido, crítico feroz da arte moderna, pintor nas horas vagas, religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um polemista profissional. Faz parte de uma tribo minoritária: a dos intelectuais que não temem dar opiniões aparentemente fora de moda, fora de lugar e fora dos manuais de “bom comportamento” ideológico.

Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie de Paulo Francis às margens do Tâmisa. O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sentimento de inadaptação que abastece a ira de Johnson contra a mediocridade, as nulidades e a empulhação.

As universidades, tidas por tantos como templos intocáveis do saber, se transformaram em centros de intolerância, irracionalidade, extremismo e preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empulhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson.

Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. Opiniões assim renderam a ele uma coleção de críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a dar trégua.

Paul Johnson vem se ocupando da morte de Deus, o grande fato que não aconteceu no século vinte. Grandes tragédias do século XX, como o extermínio de seres humanos em escala industrial nos campos de concentração, poderiam ter contribuído para abalar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalmente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culpado de tudo é, como sempre, o homem.

“Ao contrário do que se esperava – festeja Johnson -, este não foi o primeiro século do ateísmo”.

“O relativismo moral afirma que todo bem ou todo mal é relativo. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e coisas que são absolutamente erradas, sim!”

Quando o século XIX acabou, todo mundo esperava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico destruiria a idéia de que um Deus,seja qual for, existe. Um século depois,essa previsão falhou.

Nesta entrevista,feita em Londres,a Fera do Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente correta,a arte moderna e o relativismo moral.

Gravando !

GMN : Qual foi o pecado capital do século XX ?

Paul Johnson : “É o que chamo de relativismo moral : a negação de que haja valores absolutos. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas,sim !. O relativismo moral afirma – pelo contrário – que todo bem ou todo mal é relativo.Todos os valores seriam relativos, portanto. Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século XX. Precisamos voltar -acho que já estamos voltando- a cultivar valores absolutos”.

GMN : O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo. Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado,no mundo de hoje ?

Paul Johnson : “O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração – que viveu a década de trinta – foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca. Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados ! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral ! É um grande mal. Devemos lutar contra ele”.

“A pior idéia do Século XX é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos” 

GMN : O senhor se declara um combatente na guerra das idéias. Qual foi a pior e a melhor idéia política do século XX?

Paul Johnson : “A pior idéia – que começou antes da Primeira Guerra, ainda por volta de 1910 – é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição. A melhor idéia é a seguinte : sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana.

O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível. Chegará a esse futuro, dourado e glorioso, se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado”.

GMN : Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo?

Paul Johnson : “Não gosto que venham me dizer como pensar, que palavras e expressões devo ou não usar. Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje,o totalitarismo vem começando de novo, no campus das universidades, nos Estados Unidos, sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito ! – contra este fenômeno, antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade”.

“Picasso não lutava contra o totalitarismo. Ficou ao lado da União Soviética totalitária durante quase toda a vida. É um escândalo!”

GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?

Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo, em nenhuma de suas obras, um esforço para mostrar a arte com um propósito moral. Tal esforço é a essência do grande artista. Então, desconsidero Picasso completamente”.

GMN : A obra mais famosa de Picasso, “Guernica”, é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?

Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária, durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

GMN : O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver?

Paul Johnson : “A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque, em cada estágio do avanço da ciência, devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: “Isso é moral? É Justo? É algo que se encaixa no plano divino para a Humanidade? Ou é algo que vai contra ele?”. O fator “Deus” na ciência é,hoje,mais importante do que nunca”.

Uma prova da existência de Deus, para Paul Johnson: testemunhar o alvorecer, a bordo de um avião, a doze mil metros de altura

 GMN : Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer este astronauta de que,por trás do vazio do espaço, existiria um Deus?

Paul Johnson : “Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou Bhagavad Gita: “Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”. Um homem pode ver algo miraculoso ou científico, sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando, a bordo de um avião, a cerca de doze mil metros de altura, vejo o amanhecer, esta cena, para mim, é uma revelação da existência de Deus. De qualquer maneira, não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas,igualmente,não precisa : basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona”.

GMN : O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos?

Paul Johnson : “Não sou, certamente, um inimigo das feministas. Sou pró-mulher : acredito que o século XXI será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas : disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos – esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical – especialmente nas questões femininas, por exemplo. O meu ponto-de-vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita : estou do lado da razão e da justiça”.

GMN : Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac?

Paul Johnson : “Não estou de forma alguma deprimido! O século XX foi,como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Não estou nem um pouco deprimido : Tenho uma imensa confiança : previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas. Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista”.

“Os estilistas, principalmente porque, na maioria, são homossexuais, transformam as mulheres em macacas”

GMN : Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o ssenhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus?

Paul Johnson : “A primeira razão é a verdade. Deus existe – e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus, estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão : sob o ponto-de-vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor”.


GMN : O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?

Paul Johnson : “Não há nada de novo nesse fenômeno. A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida. Os estilistas –principalmente porque, na maioria, são homossexuais – sempre transformam as mulheres em macacas. Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem. As mulheres – não apenas as ricas – compram as roupas oferecidas pelos estilistas. Há coisas idiotas. Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas – não apenas as mulheres ricas,mas também as mulheres comuns, usam o que esses estilistas produzem. As mulheres é que escolhem. Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser”.

GMN : Quem será a próxima vítima de Paul Johnson ?

Paul Johnson : “Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia. Ingleses e americanos não têm essa lei. Quero que a Inglaterra tenha”.

GMN : É possível resumir o Século em uma só palavra?

Paul Johnson : “Não em uma palavra, mas em uma frase: “O Século XX foi um desastre total,suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História”.

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Paul Johnson por Paul Johnson :

“De todas as calamidades que se abateram sobre o Século XX, além das duas guerras mundiais, a expansão da educação universitária nos anos cinquenta e sessenta é a mais duradoura. É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão. São o abrigo de todo tipo de extremismo, irracionalidade, intolerância e preconceito; um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho”.

“A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é, inteiramente, uma invenção universitária”.

“O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo. Perdemos duas gerações – meio-século- na busca pela feiúra. Talentos da pintura, desenho e escultura se perderam”.

“Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol, nunca acompanhei novela de TV, nunca vi “A Ratoeira” ou “E o Vento Levou”, nunca concluí a leitura de “Em Busca do Tempo Perdido”, nunca li a revista “The Economist” ou “Time Out”, nunca tive um carro, nunca passei do limite da conta bancária, nunca compareci a tribunal. Ninguém nunca me ofereceu drogas, convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo. Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso, ter uma Ferrari, vestir um Armani ou morar em Aspen”.

“Jamais matei um peixe,cacei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que, uma vez,tentei esmagar uma tarântula no Recife”

“Já fiz Charles de Gaulle se benzer, Churchill chorar e o Papa sorrir”

“Considero-me um típico inglês do meu tempo, classe e idade, cujos pontos-de-vista,simpatias e antipatias são compartilhadas com multidões. Posso estar errado a esse respeito.Quando perguntada o que pensa sobre mim,minha mulher Marigold respondeu : “Difícil”.

(Trechos de “To Hell With Picasso”;Editora Weidenfeld & Nicolson,Londres)

INGLESES PEDEM O INÍCIO DE UMA NOVA GUERRA DAS MALVINAS (MOTIVO:”JÁ QUE VAMOS PERDER MESMO A PRÓXIMA COPA DO MUNDO, É MELHOR ARRANJAR LOGO ALGUMA COISA PARA COMEMORAR”)

qui, 24/09/09
por Geneton Moraes Neto |

Desde que a praga politicamente correta tomou de assalto as mentes simplistas, pega mal dizer que o feio é feio, a gorda é gorda, o negão é negão, o gay é gay, o branquelo é branquelo, o burro é burro, o bêbado é bêbado, o idiota é idiota.

Qual é o problema? “Pega mal” dizer que um cego não pode ser fotógrafo. Mas peço licença à patrulha para dizer: não pode! Vi outro dia um fotógrafo cego pontificando na TV sobre enquadramento. Falava francês, claro ( não há língua que se preste tanto a imposturas intelectuais). Cego falando de fotografia é algo tão grave e despropositado quanto este locutor participando de desfile de moda. Não há qualquer desrespeito na constatação do absurdo.

Fiz ao meu demônio-da-guarda a pergunta que todos fazem na surdina : por que é que o fotógrafo ceguinho não arranja outra profissão ? Por que não aprende música ? Por quê ? Por que precisa aparecer na televisão falando de enquadramento fotográfico ? Por quê ? Por quê ? O demônio-da-guarda se quedou silente.
Diante da mudez do bicho, desisto de lançar perguntas ao vento sobre o fotógrafo ceguinho e a miríade de personagens absurdos que compõem, com ele, o elenco desta nossa grande comédia de erros.  Quem sabe, o melhor é deixar que o circo planetário siga adiante, sem ser importunado.

Dupla de escritores declara guerra contra os idiotas politicamente corretos 

Mas…vasculho meu Museu de Miudezas Efêmeras ( era assim que Jorge Luís Borges definia os jornais) em busca de um relato sobre dois ingleses que, faz algum tempo, lançaram um livro para provocar a estupidez politicamente correta reinante.  Voilà:

Defensores dos bons costumes e das boas maneiras, fiquem alertas. Militantes da mentalidade ”politicamente correta”, saiam da frente. Mal-humorados que levam tudo a sério, preparem o estômago.

Porque desembarcou nas livrarias da Inglaterra um dos mais ”politicamente incorretos” textos já produzidos. Não por acaso, a obra se chama ”O Manual Oficial do Politicamente Incorreto”(”The Official Politically Incorrect Handbook”).

Os autores : dois escritores “free-lancers” ingleses, chamados Mark Leigh e Mike Lepine. A editora : Virgin Books.

A missão : demonstrar aos incrédulos que,ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a Inglaterra não parece disposta a tolerar os excessos da mentalidade politicamente correta.

Os defensores da mentalidade ”politicamente correta”, como se sabe, condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja. A intenção pode até ser louvável. O problema é que o temor de ferir susceptibilidades alheias terminou criando exageros. Piadas sobre minorias ? Nem pensar ! Resta uma pergunta : onde é que fica o senso de humor – uma instituição secularmente cultuada na Grã-Bretanha ?

Com o lançamento do livro da dupla Leigh & Lepine,os ”politicamente incorretos” lançam um novo – e bem-humorado- golpe contra os militantes radicais da pretensa correção política. Sem medo das patrulhas politicamente corretas,os dois ingleses reúnem, em 271 páginas, opiniões,tiradas e comentários que farão corar de raiva os apóstolos do ”politicamente correto”. 

A África -por exemplo- serve para quê ? ”Para preencher o espaco vazio entre a América do Sul e a Índia e como cenário de filmes de Tarzan” – escreve a dupla.

Por que a arte moderna é uma porcaria ? “Qualquer coisa que nos parece melhor quando estamos bêbados é suspeita”

O manual traz uma variadíssima lista de afirmações politicamente incorretas, seguidas de uma justificativa. A dupla pede, por exemplo, uma nova Guerra das Malvinas, entre Inglaterra e Argentina. Como se sabe, os ingleses venceram a Guerra das Malvinas, em 1982. Houve festa em Londres, na volta das tropas que tinham sido enviadas à América do Sul para retomar o domínio britânico sobre as ilhas, invadidas por militares argentinos).

Eis uma amostra das estocadas politicamente incorretas da dupla inglesa:

1.”Por que é hora de comecar logo uma nova Guerra das Malvinas? Como a gente vai perder mesmo a próxima Copa do Mundo,então é melhor arranjar logo alguma coisa para comemorar”. 

2.”Por que estudar matemática na escola é uma completa perda de tempo? Ninguém jamais ficou rico por saber calcular o mínimo denominador comum”.

3.”Por que é tão bom ser estúpido? Porque um estúpido sempre encontrará o que ver na televisão”.

4. ”Por que a guerra é melhor que a paz? Dê um pulo no vídeo-clube.Quantos filmes de paz existem lá ?”.

5. ”Por que o sexo feminino é inferior? Tente se lembrar do nome de uma batalha importante vencida por uma mulher….”  

6.”Por que a França pode continuar a fazer testes nucleares no Pacífico? Porque seria uma completa irresponsabilidade fazer os testes no centro de Paris”. 


7.”Por que é bom frequentar prostitutas? Porque,na hora H,elas dizem coisas como ”oh,baby !”,”oh,sim,sim !”,em vez de ”você levou o gato pro quintal ?”.
 
8.”Por que é indispensável ver o discurso de Rainha na televisão no Dia de Natal? É uma excelente oportunidade para toda a família ir ao banheiro,antes de começar a ver,pela quinta vez,os ”Caçadores da Arca Perdida”.
 
9.”Por que ninguém deve se preocupar com a poluição das águas? Porque não vivemos nos rios”.  
10.”Por que é perfeitamente aceitável usar casaco de pele? Todos os animais usam.Ninguém nunca reclamou”.


11.”Por que é bom ser um branco anglo-saxão? A polícia nunca dá em cima de você”.


12.”Por que precisamos dos políticos? Porque,quando nos comparamos com eles,nos sentimos honestos e virtuosos”.


13.”Por que que é bom ensinar religioes alternativas nas escolas? Porque assim saberemos que não estamos perdendo nada.Além de tudo,cânticos e rezas de outros povos sao em geral hilariantes…”.


14.”Por que a Inglaterra deve gastar mais dinheiro recrutando soldados para o exército do que contratando médicos para os hospitais publicos? A Rainha ia achar um tédio passar em revista uma tropa de especialistas em ouvido,nariz e garganta…”.


15.”Por que a arte moderna é uma porcaria? Qualquer coisa que parece melhor quando estamos bêbados do que quando estamos sóbrios é suspeita. Além de tudo,um tijolo é um tijolo : qualquer criança de cinco anos sabe. E um carneiro morto é um prato : nao é um objeto de arte”.


16.”Por que a Previdência Social deve financiar as operações para aumentar os seios,em vez de gastar dinheiro com transplantes? Porque, ao contrário do que acontece com os seios, os homens jamais poderão enfiar o rosto entre rins transplantados e dizer ”glub,glub,glub”.


17.”Por que o Império Britânico era bom? Se o império não tivesse existido,o Cinema Império,no centro de Londres,provavelmente se chamaria hoje Odeon,o que criaria confusão no público,porque já existe um outro Cinema Odeon na cidade”.


18.”Por que o Budismo jamais pegará na Inglaterra? Porque os ingleses acham que é melhor ir para o inferno do que viver aqui por não sei quantas encarnações”.


19.”Por que os castigos corporais devem ser adotados novamente na Grã-Bretanha? Poderemos gravar os castigos e vender as fitas todas para a Alemanha”.

 
20.”Por que as companhias não devem dar emprego a ninguém com mais de sessenta anos? Porque os aparelhos de surdez podem causar interferências nos sistemas de alarme contra incêndio”.

 Antes de comecar a entrevista, Mike Lepine pediu licença para cometer o que chama de ”um ato politicamente incorreto” : acender um cigarro. O ”Manual Oficial do Politicamente Incorreto” pretende fazer o público rir,mas há um traço sério na obra:

-”A propagação da mentalidade politicamente correta me faz lembrar o livro ”l984”, em que George Orwell fala da manipulação das palavras através da criação de um novo idioma – a ”novilíngua”. É o que os politicamente corretos estao fazendo, na prática : querem mudar nossa maneira de pensar mudando as palavras. Mas não queremos ser manipulados por eles !”.

Uma constatação: a mentalidade politicamente correta é nociva porque não permite que se façam julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Mas os “padrões de julgamento” são necessários

O politicamente incorreto Lepine admite que a mentalidade politicamente correta ”pode até ter bons aspectos. Ninguém obviamente quer viver num mundo em que uns odeiem os outros. Ninguém – diz Lepine – quer racismo ou sexismo. O problema é como os politicamente corretos atuam : terminam se tornando, eles proprios, ofensivos ! . A correção política  é uma camisa de força . Os adeptos desta mentalidade ficam brigando com as palavras, em vez de se ocuparem dos reais problemas. A mentalidade politicamente correta não permite que você faça julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Não há padrões, portanto. Isto é nocivo ! Quem luta contra a mentalidade politicamente corrreta tenta, na verdade, estabelecer padrões de julgamento – que são necessários!”.

Lepine se defende de eventuais críticos:

-”Tudo o que fizemos,no Manual, foi escrever coisas que as pessoas normalmente dizem nos pubs, numa roda de amigos. Ali,a verdadeira opinião de cada um aparece. As pessoas são todas, por natureza, politicamente incorretas. Mas eu simplesmente não consigo ver que danos ou prejuízos o senso de humor pode causar”.

Ninguém escapa da pena afiada dos dois autores politicamente incorretos – nem Tarzan e muito menos a classe operária. Aqui,eles explicam por que Tarzan é o “modelo ideal para um operário” – um exemplo tipico do humor politicamente incorretíssimo:

”1.Só se comunica através de grunhidos;2.Gosta de andar sem camisa; 3.Não tem a menor idéia sobre a identidade do pai;4.Aprendeu suas maneiras com um chimpanzé;5.Carrega uma faca;6.E vive aterrorizando a população negra da vizinhança”.

DESCOBERTO O SORRISO QUE OS ROBÔS JAMAIS CONSEGUIRÃO REPRODUZIR!

qua, 23/09/09
por Geneton Moraes Neto |

A TV mostrou, não faz tempo, o comovente esforço de cientistas japoneses que tentam reproduzir, na face de um robô, expressões humanas.

Digo “comovente” porque a causa é nobre: os cientistas estão, na prática, preparando robôs que, com toda certeza, serão uma companhia mais agradável, menos barulhenta e menos inconveniente do que noventa e oito vírgula nove por cento dos seres humanos.

Um mecanismo instalado dentro do robô distende ou retrai o rosto do bicho, feito de matéria plástica. Assim, o rosto passa a demonstrar “sentimentos” como espanto, alegria e tristeza.

Os cientistas podem suar seus jalecos durante décadas nos laboratórios de robótica, mas jamais conseguirão sucesso total na empreitada. Pelo seguinte: há uma expressão humana que é absolutamente irreproduzível por robôs.

Preste toda atenção. Há uma fila de espectadores esperando a hora de entrar na sala do cinema. De repente, um celular começa a emitir musiquinhas engraçadinhas. O dono do celular bota a mão no bolso e atende. Aquele ar de completa idiotia que o dono do celular exibe enquanto tateia o aparelho no bolso jamais será reproduzido por um robô: é um meio-sorriso estúpido que desmente todas as teorias sobre a evolução da espécie.O dono do celular que emite ruidinhos e musiquinhas supostamente engraçadinhos tenta mostrar, aos passantes, que é um sujeito espirituoso. Quá-quá-quá.

Podem juntar todos os PHDs do Japão, todos os gênios do MIT, todos os nerds de todas as escolas suíças: nunca, jamais, em tempo algum a ciência poderá reproduzir o meio-sorriso estúpido-dos-idiotas-donos-de-celulares-com-musiquinha-engraçadinha-na-fila-do-cinema.Leonardo Da Vinci não ousaria reproduzir numa tela movimento tão perfeito. O sorriso da Monalisa é obra de amador.O meio-sorriso-estúpido-dos-idiotas-donos-de-celulares-com-musiquinha-engraçadinha-na-fila-do-cinema é uma criação essencialmente humana; uma obra-de-arte perfeita porque retrata, sem retoques, a essência do espírito de quem o ostenta.Nenhum artista, nenhum cientista jamais ousaria recriá-lo.

Cientistas, recolhei seus robôs. Pintores, aposentem seus pincéis. Não adianta: a originalidade da idiotia humana é irreproduzível.

E assim será, por séculos e séculos. Não há avanço possível: a civilização estancou ali, no meio-sorriso-do-idiota-do-celular-de-musiquinha-engraçadinha.

Dali não avançará. 

 

PAUSA PARA REFRESCO: ANOTAÇÕES SOLTAS, PERGUNTAS INÚTEIS , PALAVRAS AO VENTO

qua, 23/09/09
por Geneton Moraes Neto |

O que é mais divertido e causa menos danos à saúde física e mental ?

a) morrer ;
b) estar na platéia do Cirque du Soleil e ser chamado ao palco ;
c) ver a cinquentenária Madonna requebrando ao som de uma música inclassificavelmente chata ;
d) testemunhar um senador de cabelo pintado falando na TV ;
c) passar trinta segundos na frente de um mímico

Tenho certeza absoluta de que a opção A é a correta.

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Você olha para o céu cinzento, mira o Grande Nada e pergunta a si mesmo:
você seria capaz de sair de casa para ir ver um show de um grupo chamado Sorriso Maroto ? De novo: Sorriso Maroto. Outra vez : Sorriso Maroto.


A última de suas vísceras repete instintivamente o que Jaqueline Kennedy disse, horrorizada, quando viu os miolos do marido explodirem dentro daquele carro em Dallas : “Oh,no!”

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Nunca, jamais, sob hipótese alguma, receba um cheque de quem:

A) chama TV de “telinha”
b) desenha um sinal de aspas no ar com dois dedos de cada mão
c) acrescentou uma letra ao nome por sugestão de um numerólogo
d) chama o marido de “maridão”, o filho de “filhão” ou, se for o caso, a mulher de “amorzão”
e) usa rabo-de-cavalo
f) alguma vez na vida já usou ou pensou em usar bandana
g) desfila de camiseta na rua para mostrar aos outros os músculos marombados
i) toma cafezinho com o dedo mindinho estirado

É pule de dez: o cheque é sem fundos.

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Uma dúvida irremovível : dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, o que é que leva um ser bípede e falante a posar para uma revista de “celebridades” diante de uma mesa de café-da-manhã fake ? Qual é a força que move aquele aglomerado de ossos e músculos a fazer este papel ?

Dou-lhe meio século para achar uma resposta razoável.

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10 VEZES PAUL McCARTNEY : POR QUE A IGNORÂNCIA MUSICAL SALVOU O “MAIOR COMPOSITOR POPULAR DO SÉCULO XX”…

ter, 22/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

O ex-beatle Paul McCartney começa a falar, numa sala do Royal Albert Hall, em Londres. O locutor-que-vos-fala grava as palavras daquele que o jornal Daily Telegraph chamou de ” o maior compositor popular do Século XX” ( ver post anterior).

Jornalistas – ingleses – presentes à entrevista não resistiram à tietagem. Uma moça cobriu Paul de elogios, antes de fazer uma pergunta. Meu demônio-da-guarda me soprou ao pé do ouvido: “Eu bem que disse! Jornalista bancando o amiguinho da celebridade é um mal planetário. Você pensou que que essas patetices só aconteciam com os subdesenvolvidos brasileiros que vivem jogando flores uns nos outros…”.

A observação feita ao pé-do-ouvido pelo meu demônio-da-guarda não me impede de declarar solenemente, diante deste tribunal, que sou um beatlemaníaco. Paul McCartney é,sim, o maior compositor popular do Século XX. Nenhum grupo jamais fez algo parecido com o álbum Abbey Road. Milton Nascimento – que nunca se notabilizou por ser autor de frases inspiradas – disse recentemente, numa entrevista ao G1, que os Beatles são os melhores: “O resto é palhaçada”, sentenciou. 

O compositor que fala agora diante do punhado de jornalistas esteve – de uma ou outra maneira – presente na vida de milhões de ouvintes ao longo das últimas décadas. ”Take a sad song and make it better”, como diz a letra de Hey Jude. Em última instância, ao compor tantas canções inesquecíveis, ajudou a tornar suportável nosso circo de horrores diários. É o suficiente. Que outra coisa um compositor de canções populares pode querer na vida?  

É o que me ocorre, enquanto acompanho Paul McCartney falar, com a simpatia habitual, sobre a arte de compor música popular. 

Guardei a fita. É hora de ouvir as palavras de Sir Paul:  

TV Globo)

Paul McCartney: revelações sobre a "ignorância" (Imagem: TV Globo)

1. ”Sempre achei que seria uma boa idéia aprender mais sobre o que eu estava fazendo. Contaria como um “plus”. Quando se sentam diante do piano para compor, amigos meus, altamente treinados musicalmente, ficam inibidos na hora de criar uma melodia nova, porque já têm informação excessiva na cabeça, acumulada a partir de todo o Bernstein, todo o Beethoven, todo o Mozart ou todo o Mendelssohn que ouviram.  Sou sortudo, porque, nesse sentido, tenho um “buraco negro” na cabeça. Quando me sento, é como se não tivesse nada. De certa maneira, penso que é muito bom. Porque o que eu escrever possivelmenTe será mais original. Há vários exemplos. Em West Side Story, por exemplo, há uma música  de Leonard Bernstein, There is a Place for Us : ouvi dizer que a melodia composta por Bernstein já teria sido feito por outra pessoa. A gente vê que até grandes como Bernstein podem misturar as informações, inconscientemente. Não saber tanto pode ser uma vantagem, então.A ignorância é uma bênção, no meu caso”.  

2. ”O importante, sobre o fato de escrever música para orquestra, é que tive sorte:  não conheço tanto sobre música clássica.  Quando eu era criança, meu pai desligava o rádio quando entrava música clássica. Dizia: “Desligue esse negócio…” (imita a voz de desprezo). Como fã de jazz, ele não gostava daquilo. Depois, ouvi Bach. Você pode citá-lo como meu compositor preferido. Quando eu estava nos Beatles, citei Bach como um dos meus compositores favoritos. Recentemente, ouvi um pouco Monteverdi ( compositor italiano).  Mas, quando eu estava escrevendo uma peça para orquestra (Standing Stone, lançada em 1997) , não ouvia realmente nenhum dos compositores clássicos, a não ser para ver o que é que eu não deveria fazer! Porque eles já tinham feito! Ouvi Beethoven, para ver como ele fez. Gostei de Monteverdi porque vi que ele tinha algo em comum com a música do começo dos Beatles:  ele não conhecia muitos acordes…Havia um link interessante ali. Depois, descobri os Noturnos de Chopin – que todos conheciam mas só vim a conhecer há pouco.  São excelentes”.

 

3. “Tentei, em minha vida, aprender a ler e a escrever música três vezes, mas não fui bem sucedido. A primeira vez aconteceu quando eu era menino – com uma velha senhora lá da minha rua. A segunda quando eu tinha dezesseis anos. A terceira, aos vinte e um. Nunca consegui me dedicar ao estudo da música. Porque, na verdade, eu já estava compondo. Já tinha feito, por exemplo,  When I´m Sixty Four. Nesta época, eu estava tentando. Desisti, no fim das contas. O que aconteceu, com Standing Stone, é que descobri um programa de computador que permite que eu, primeiro, trabalhe no teclado. Depois, transfiro para o computador. Posso aprender como orquestrar enquanto trabalho no computador. Isso foi um salto para mim. Porque não sou bom em matéria de computador. Preciso de uma equipe para descobrir como me livrar da confusão em que me meti….” 

 

 4. “Eu estava ouvindo,nos anos sessenta, peças de Stockhausen e algumas das coisas mais estranhas da música contemporânea. Pensei em fazer um álbum com sons eletrônicos. Ia chamar o disco de “Paul McCartney Goes Too Far”. Nunca cheguei a fazer. Fiz outras peças  desde então – que não cheguei a lançar. Talvez lance um dia. Mas nunca pensei em fazer com a Orquestra Sinfônica de Londres. Ou fazer peças tão grandes como Standing Stone. Eu já tinha gostado de fazer o Liverpool Oratorio (primeiro exercício de Paul McCartney com música clássica, lançado em 1991) com orquestra. Queria fazer de novo algo assim. Quando surgiu a oportunidade, peguei”.

 

 5. “Não esperava escrever peças como Standing Stone. Já tinha sido divertido botar violinos em Yesterday ou em Eleanor Rigby. Eu tinha, na época, meus vinte e poucos anos. Não pensava : “Quando eu tiver meus trinta anos e for velho…..”. Mas imaginava que poderia fazer algo nessa linha, não tão ambicioso quanto viria a acontecer. Considerava que música para orquestra era algo que eu poderia fazer, depois do rock-and-roll”.

 

 6.“Eu não sabia como compor na tradicional maneira clássica - que é pegar um tema e desenvolvê-lo, numa peça em que a música é usada como uma jornada. Ao compor, senti que precisaria de uma história como base, para me manter “nos trilhos”. Fiz contato com Allen Ginsberg,  poeta, amigo dos anos sessenta. Comcei a curtir poemas. Cheguei a trabalhar com poema escrito.  Tentei fazer Standing Stine como um poema, caso precisasse usar de letras. Mas terminei não usando muito do poema. O que aconteceu é que o poema se tornou uma história, para o caso de o ouvinte precisar de algo em que se apoiar enquanto ouve a música. Compus peças menores como preparação para a peça maior. É como escrever contos antes de escrever um romance”.    

 

 7. “Não diria que estou fazendo música clássica. Estamos usando apenas orquestra, ao invés da combinação rythm & blues -  guitarra, baixo e bateria. Era divertido usar ocasionalmente trompete ou quarteto de cordas. Porque a gente trabalha com outro tipo de músicos. Não vejo limites entre os gêneros. Para mim,  era tudo música. Quando olho para trás, vejo que o rock-and-roll estava começando a flertar com músicas orquestradas. Penso em “Save the last dance for me”, com The Drifters. Ou “It doesn´t Matter Any More”, com Buddy Holly. Estava começando a acontecer. Não vejo barreiras. Não divido entre música clássica, “easy listening” ,rock-and-roll. Para mim, o que há é música boa e música ruim”. 

 

8.”É  tudo uma questão de amar a música. Tenho sorte de ser pago para fazer o que amo. Compus muita coisa em minha vida. Em geral, são coisas curtas. A música Hey Jude foi a mais longa: cerca de sete minutos. É um grande desafio. Você pode perguntar a um escritor de contos por que ele se preocupa em escrever um romance. Ora, porque é um desafio. Se você gosta de música, é interessante, então, fazer uma peça maior. É bom trabalhar com orquestra e animador trabalhar com gente com este tipo de virtuose. Se você gosta de talento, é algo animador a  fazer”.  

 

9.”Um dos motivos por que lancei o cd Flaming Pie (um dos melhores álbuns da fase pós-beatle de Paul McCartney), junto com Standing Stone, foi porque queria mostrar a todos que faço meu rock-and-roll. Não vejo estas barreiras. Em “Eleanor Rigby”, já havia os violinos e minha voz. Não se dizia que eu estava virando “clássico”. Gosto de vários tipos de música.  O fato de tocar uma tradicional música irlandesa – por exemplo –  não quer dizer que estou indo nesta direção. Quer dizer que eu gosto desse tipo de música assim como outros. Ainda amo o rock-and-roll”. 

10.”Alguém me perguntou se eu estava confortável com o título de  Sir (honraria concedida pela realeza britânica). Eu disse que sim : estava altamento honrado. Mas me ocorreu que tenho orgulho também do título de mister ( tratamento usado por e para cidadãos comuns).  É working class. Você ganha quando tem vinte e um anos” ( idade em que se passa a ser chamado de “senhor”).  Vou tentar descobrir se terei de deixar o título de mister para usar o de sir. Se for obrigatório, vou tentar burlar o sistema….Tenho orgulho de mister me lembra de onde vim e quem sou. Mas estou orgulhoso do título de sir”. Não é que não goste de usar o título de sir. É que me apego ao título de mister também. Não sei se você pode usá-lo”.

A “CHAVE” PARA ENTENDER UM FENÔMENO: O DIA EM QUE O EX-BEATLE PAUL McCARTNEY REVELOU QUE SÓ CONSEGUE FAZER TANTA MÚSICA PORQUE É “IGNORANTE”

seg, 21/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

Quem é o maior compositor popular do século XX ?

 

Não faz tempo, o jornal Daily Telegraph cravou : é Paul McCartney.

 

Não é patriotada nem exagero do jornal inglês. Que outro compositor terá produzido, sozinho ou em parceria com um tal de John Lennon, tantas canções reconhecíveis por tanta gente em tantas partes do mundo?  Nenhum.

 

Fazer música popular, em última instância, é criar canções que possam ser assoviadas numa caminhada. Simples assim. Pouquíssima gente fez tantas quanto nosso personagem de hoje.

 

O repórter-que-vos-fala faz questão de ser tendencioso quando o assunto é Beatles. O melhor álbum da história da música pop é Abbey Road, lançado faz exatamente quarenta anos, no remoto setembro de 1969.

 

É possível ouví-lo por horas seguidas sem pular uma faixa sequer ( faça-se o teste: dá para contar nos dedos da mão de um mutilado de guerra quantos álbuns passariam pela Prova da Audição Sem Pulo).

 

Tive a chance de testemunhar duas aparições de Paul McCartney em Londres ( uma das aparições aconteceu numa daquelas cenas que ocorrem uma vez na vida: Paul McCartney subiu ao palco do Royal Albert Hall, em companhia de Eric Clapton, Elton John, Phil Collins e Marc Knopfler, entre outras feras, num show beneficente, para executar um repertório que incluía faixas do Abbey Road, como o hino “Golden Slumbers”, seguida por “Carry That Weight” e “The End”. Carimbei meu diploma de beatlemaníaco ao ver um beatle tocando três músicas do álbum Abbey Road “ao vivo e a cores”, devidamente acompanhado por uma banda de primeiríssimo time. Em breve, falo desta cena).

 

A outra aparição de McCartney testemunhada pelo repórter-que-vos-fala aconteceu numa entrevista, também no Royal Albert Hall.  

"ignorância" abençoada

O "maior compositor popular do Século XX" na entrevista : "ignorância" abençoada (Imagem: TV Globo)

Beatlemaníacos, exultai: acabo de localizar, no meu baú de raridades, uma fita cassete em que Paul McCartney faz uma confissão que, sem exagero, pode servir como chave para entender por que ele foi capaz de produzir uma coleção de canções assoviáveis :  ao explicar suas ligações com a música clássica, ele relembrou as três tentativas que fez de estudar e ler partituras. Fracassou nas três.

 

Adiante, ele confessa : se tivesse uma grande cultura musical estocada em algum escaninho de seus neurônios, certamente se sentiria tolhido na hora de sentar diante do piano para compor.

 

Paul McCartney diz que amigos seus, compositores, donos de uma vasta cultura musical, vivem uma experiência curiosa: eventualmente, se sentem bloqueados na hora de compor, porque, a cada novo fraseado, são invadidos por uma dúvida. E se alguém tiver feito algo assim antes?

 

Com uma ponta de ironia, Paul McCartney diz que, a partir de suas próprias experiências  como compositor, pode declarar que “a ignorância foi uma bênção. O fato de não saber tanto pode ser uma vantagem”, confessa, sem vacilar.

 

Ou seja: se tivesse realmente estudado música, é provável não tivesse composto pérolas como “Hey Jude”, “Yesterday” e uma infinidade de outras, igualmente “assoviáveis”.

 

O “maior compositor popular do Século XX” estava dando ali – de mão beijada – para um punhado de jornalistas, numa sala do Royal Albert Hall, a chave para que se entendesse a raiz do fenômeno que ele próprio representa. 

 

O tema alimentaria um ano de debates num seminário de música :  se não fosse “ignorante”, Paul McCartney não seria um compositor popular tão extraordinário.

 

Anotações sobre a aparição londrina de sir Paul McCartney:

Dou plantão numa das entradas do Royal Albert Hall, na vã esperança de arrancar uma declaração exclusiva do meu ídolo ( repórter não deve nunca, never, jamais, sob hipótese alguma, fazer papel de tiete, mas, enquanto esperava  a chegada de Sir Paul McCartney eu não tinha como não lembrar dos tempos em que passava horas, horas e horas ouvindo o lp Abbey Road em meu quarto de adolescente nos fundos de minha casa no bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, Recife, Pernambuco. De qualquer maneira, não abro mão de uma convicção pétrea: o jornalismo dará um imenso, um extraordinário, um indescritível salto de qualidade no dia em que forem banidas da face da terra as entrevistas em que o entrevistador se comporta diante do entrevistado não como repórter mas como praticante de uma modalidade de esporte que poderia ser batizada de ”voleibol jornalístico” : são os “jornalistas” que passam a vida levantando bolas para o entrevistado, especialmente as celebridades. A cena é invariavelmente triste e patética. O mal não é apenas brasileiro: diante de Paul McCartney, uma jornalista se derreteu em salamaleques antes de conseguir articular uma pergunta. Patética. Como diriam os estudantes rebelados que pichavam muros na Paris de 1968, a humanidade só será feliz no dia em que o último jornalista deslumbrado for enforcado nas tropas do penúltimo).  

 

Faço uma combinação com o cinegrafista Luís Demétrio. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a entrevista, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração do homem. 

 

Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul desembarcará ali dentro de instantes. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie.

Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando.

Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco dianteiro? Só podia ser  ele. E era. Eis Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha.

O canto dos olhos exibe pés-de-galinha. O tom da pele, pálido, sugere que o rosto passou por uma maquiagem – quem sabe, para esconder as rugas. A cor das cabelos não deixa dúvidas: uma tintura passou por ali. A idade manda lembranças. Mas – de calça jeans, casaco preto e blusa clara - o eterno Beatle parece, na medida do possível, jovial.   

Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive. 

Paul acena para a turba. Em meio ao tumulto, a única declaração que consigo captar é um monossílado – “Hi!” – versão inglesa para “Olá!”. Paul se limita a fazer um “V” de vitória com os dedos.

 

Em questão de segundos,  desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto. 

Lá dentro, na coletiva, o assessor de imprensa de Paul McCartney - ou o próprio – apontam aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima. Não havia tempo para que cada um fizesse uma pergunta. “Paul precisa ensaiar”, diz o assessor.  

Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista “exclusiva” mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar: “Hi!”.

Mas preservei a fita com a íntegra do que Paul McCartney disse ali. A declaração sobre a “vantagem” de ser ignorante em matéria de formação musical é preciosa.

 

Beatlemaníacos, aguardai:

em um próximo post, o Dossiê Geral publica, na íntegra, as palavras do “maior compositor popular do Século XX” naquela manhã de inverno de 1997 em Londres. 

 

PS: COMENTÁRIOS ANTERIORES SOBRE ESTE POST FORAM ACIDENTALMENTE APAGADOS. NOSSAS DESCULPAS AOS AUTORES. A OPERAÇÃO JÁ FOI NORMALIZADA…

O DIA EM QUE O AUTOR DE “MORTE E VIDA SEVERINA” DESABAFOU CONTRA O EXIBICIONISMO: “NINGUÉM É TÃO INTERESSANTE PARA FALAR DE SI MESMO O TEMPO TODO” (O QUE ELE DIRIA DO FESTIVAL NARCISISTA DE HOJE ?)

sex, 18/09/09
por Geneton Moraes Neto |
categoria Entrevistas

 
Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação (ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :  

“Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata…”

Ponto. Parágrafo.

Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais. 

Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos – sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido.

Vexame número 1

Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano : 1973. Dou meus primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época.

Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade…Pouco à vontade ,o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.

desencontros

O poeta de Morte e Vida Severina: desencontros com o repórter ( Imagens: TV Globo)

Vexame número 2

João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista : onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola.

Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica…”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.

Vexame número 3

De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes.

João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora… Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !

Vexame número 4

O homem marca a entrevista : vai receber o repórter em casa – um apartamento na Praia do Flamengo . Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal.

Aperto a campainha . “Pode entrar” . Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador .

“Não quer fazer a foto agora ? “.Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim, à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !

Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.


O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter comentado com meu demônio-da-guarda : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, posso dizer que sou diplomado no assunto.

Vasculho meus “arquivos implacáveis”, dez anos depois da morte do poeta, para fazer um pequeno decálogo de declarações feitas ao repórter pelo autor de “Morte e Vida Severina”:

1. “Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras “pedra” ou “faca” ou “maçã”, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que “tristeza”, “melancolia” ou “saudade”"

2.”Não gosto de carta. Tanta gente escreve até diário… Escrever o meu diário é, para mim, uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio”.

(o que o poeta diria hoje da imensa avalanche narcisística impulsionada pela maravilha da Internet ?)

3.”A popularidade é uma coisa terrível. Acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial – e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito”.

4.”O êxito teatral de “Morte e Vida Severina” é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular”.

5.”A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa”.

6. “A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.

7.  ” Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável…”

8. “Morte e Vida Severina” foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado. Não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão”

“Esta cova em que estás, com palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas à terra dada nao se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio”  ( trecho de Morte e Vida Severina


9.”Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário”.

10. “Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado”.



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