Um cérebro, múltiplos genomas
Trabalhos recentes têm confirmado o que se promete ser uma revolução na forma como conectamos genética e neurociência. Em 2005, meus colegas e eu publicamos um artigo sugerindo que, através de observações indiretas, o cérebro humano seria um mosaico genético, em que cada neurônio individual estaria modificado geneticamente pela atividade de genes saltadores. Apesar de polêmica que causou naquele momento, essa teoria fez sentido ao contemplarmos o conhecimento da época em doenças hereditárias e altamente complexas.
Em 2007, a área da genética sofreu outro abalo com a descoberta que mutações somáticas estavam associadas ao autismo. Hoje sabemos que essas alterações espontâneas no DNA afetam também outras doenças, como esquizofrenia ou síndrome bipolar. Essas mutações são chamadas de “somáticas” porque ocorrem em regiões especificas do cérebro adulto. Durante muito tempo, cientistas estudaram o papel dessas mutações em câncer, mas neurocientistas e psiquiatras nunca se interessaram muito no assunto porque neurônios são células que não se dividem. No estudo de doenças neurológicas, o material genético para estudo acaba vindo de tecidos periféricos, como pele e sangue, pois nunca se imaginou que o DNA do cérebro de um indivíduo pudesse conter genomas múltiplos.
No ano passado, um trabalho de Harvard publicado na revista “Cell” mostrou evidências físicas da presença de genes saltadores no cérebro humano. O grupo conseguiu identificar pegadas de alterações genéticas através do sequenciamento de neurônios individualizados, a prova final de que o fenômeno realmente acontece no cérebro humano. Mês passado, dois grupos da Califórnia deram mais um passo nesse sentido. No primeiro trabalho, publicado na revista ”Science” por um grupo do instituto Salk, sequenciou-se neurônios do córtex humano revelando que cerca da metade deles apresentavam alterações genéticas únicas. Essas alterações não eram sutis, mas dramáticas, com perdas de milhares de bases, pedaços gigantes de cromossomos estavam faltando em algumas células. Em outra publicação independente, um grupo de engenheiros da Universidade da Califórnia em San Diego desenvolveu uma nova plataforma para sequenciamento de células individualizadas. Ao aplicar a nova metodologia também no cérebro humano, detectou-se ganhos de pedaços enormes de cromossomos em neurônios distintos. O trabalho, publicado na “Nature Biotechnology”, confirma o que já suspeitávamos: em nosso cérebro reside uma variação genética intrínseca e enorme.
Mas se os neurônios são células que não se dividem, de onde surgem essas alterações? Muitas dessas mutações somáticas podem ter sido causadas justamente pela atividade de genes saltadores durante o desenvolvimento embrionário, quando as células progenitoras que darão origem ao cérebro estão proliferando loucamente. No feto, as progenitoras neurais são as células que se dividem mais rapidamente no corpo. Estima-se cerca de 100 mil divisões por minuto durante as semanas 10 e 24 da gestação, quando o cérebro chega a produzir 10 bilhões de células. De certa forma, não deveria ser surpresa alguma constatar que o cérebro é um tecido que acumula alterações genéticas. Surpresa seria a de não encontrar nenhuma alteração.
Seriam essas modificações, frequentemente em um único neurônio, relevantes para o indivíduo? Estariam elas ligadas a transtornos do desenvolvimento? Ainda não sabemos interpretar essa variação genética no cérebro, mas o estudo desse mecanismo no câncer, por exemplo, levou ao desenvolvimento de uma série de medicamentos. É plausível então imaginar que, no cérebro, mutações podem ser a causa de doenças neurológicas ou mesmo de habilidades excepcionais em alguns indivíduos. Sob a ótica evolucionária, alterações no DNA seriam o motor evolutivo para um cérebro mais sofisticado. O custo disso seria a enorme diversidade cognitiva das populações humanas.