Caso dos Beagles: infelizmente estamos distantes de poder abrir mão dos testes
A notícia da retirada dos cães da raça Beagle de um laboratório no Brasil por ativistas levanta mais uma vez a questão sobre o uso de animais para fins de pesquisa. Como biólogo e amante dos animais, entendo perfeitamente esse tipo de questionamento do público leigo. Como pesquisador clínico, buscando a cura para enfermidades humanas, não vejo outra saída, pelo menos por enquanto.
O fato é que animais são necessários para que a ciência avance. Não existem, hoje em dia, modelos alternativos de estudo que substituam completamente o uso de animais na pesquisa pré-clínica. A justificativa é simples, todo tratamento experimental deve ser testado antes em um animal para evitar complicações no ser humano. Estamos a anos-luz de criar modelos computacionais ou virtuais que simulem exatamente o comportamento de uma célula humana. Vou mais longe, se tivéssemos esse modelo atualmente, já teríamos curado todas as doenças humanas do mundo!
Se por um lado, hoje não temos nada que substitua os animais, de outro existe o reconhecimento pela comunidade científica que modelos animais não são necessariamente sempre úteis em pesquisa clínica. No caso de doenças neurológicas, a grande maioria das drogas testadas positivamente em animais, falharam quando aplicadas em seres humanos. Isso porque nosso cérebro é muito diferente do cérebro de um camundongo, por exemplo. Ao escolhermos outros animais como modelos, como cães ou macacos, nos aproximamos do humano, mas o custo é ainda muito alto e proibitivo.
Muitos laboratórios e indústrias farmacêuticas têm namorado a possibilidade de usar células derivadas de células-tronco pluripotentes a partir de pacientes. Fizemos isso para o estudo de autismo (uma condição humana impossível de recriar com modelos animais) e mostramos que o modelo pode ser mais predicativo do que roedores, por exemplo. O método foi patenteado e hoje em dia já temos a primeira indústria farmacêutica que usa neurônios humanos para triagem de novas drogas, reduzindo dramaticamente o número de cobaias. Outros grupos de pesquisa têm lançado mão da mesma estratégia para gerar células do fígado em testes toxicológicos, ou pele humana em testes de cosméticos. De forma semelhante, pode-se recriar órgãos artificiais em laboratório com a mesma finalidade. Mas mesmo assim, esses modelos não exibem a complexidade de um organismo vivo, onde sistemas diversos interagem de forma dinâmica (pense no sistema imune, por exemplo, que circula pelo organismo inteiro e responde de forma diferente dependendo do tecido).
Nos EUA, salvo ações extremistas, vejo a sociedade mais consciente de que o uso de cobaias em pesquisa é um mal necessário, justificado pela ética humana. A sociedade parece mais preparada e tem a opção de escolher produtos cosméticos que não foram testados em animais, por exemplo. Cosméticos à parte, só graças a esses testes existem remédios para males cardíacos, Aids, diabetes e a maior parte das doenças humanas. A discussão por aqui nos EUA hoje em dia está mais para qual modelo animal é mais adequado para qual pesquisa. Por exemplo, camundongos servem para estudos de certos cânceres, mas não para estudos neurológicos. Animais de grande porte, como porcos, simulam melhor lesões medulares em humanos. E por aí vai.
Além disso, existem comitês de ética que não apenas aprovam as pesquisas, mas as supervisionam. Segundo a ética humana, os animais selecionados para pesquisa têm que ser tratados com respeito e sentir o mínimo de dor. O número de animais tem que ser estatisticamente justificável e o desenho experimental julgado eficiente e conclusivo. Esses comitês, compostos por membros da sociedade e, portanto, com menos viés acadêmico, tem que pesar o custo benefício de toda proposta de uso de animais em experimentos científicos. A supervisão é frequente e, ao sinal de qualquer irregularidade ou maltrato aos animais, os cientistas são repreendidos e podem ser até expulsos dos institutos de pesquisa.
Maltrato a qualquer animal, seja de estimação, selvagem, ou cobaia é inaceitável. O uso ético de animais em pesquisa hoje em dia é pra mim algo inquestionável, principalmente se a sociedade busca curas para doenças humanas. O incentivo a melhores modelos que irão, aos poucos, substituindo os animais quando possível é a solução. Para isso acontecer é preciso mais investimento em ciência, estimulando-se a busca por métodos alternativos.
Foto: Bianca Celoto/TV TEM