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Olá, o endereço do blog Espiral mudou. As novas postagens estarão em https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/blog/espiral/
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Ao ser recrutado para a Pediatria da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, ouvi a seguinte frase do chefe do departamento: “Alysson, em teoria, se fizermos nosso trabalho direito, as pessoas não mais precisarão de médicos no futuro”. Ele está certíssimo.
A grande maioria das doenças genéticas tem alguma causa em estágios iniciais do desenvolvimento humano. Hoje acredita-se que mesmo doenças que afetam adultos e idosos, como Alzheimer ou Esclerose Lateral Amiotrófica podem ter origens nos primeiros dias de vida do indivíduo. Às vezes são pequenas e sutis alterações moleculares que irão se desdobrar em catastróficas reações metabólicas anos mais tarde. Descobrir o que pode dar errado é o primeiro passo para prevenir problemas futuros.
Por isso vejo com bons olhos o projeto americano “Os primeiros mil dias de vida”, que tem como objetivo acompanhar cinco mil mulheres durante o período de gravidez e seus futuros filhos até os dois anos de idade. O desenho experimental vai permitir que os pesquisadores tirem conclusões prospectivas. É diferente do que acontece hoje em dia, quando os pais visitam o médico e têm que lembrar o que aconteceu exatamente no passado, quando os sintomas de alguma doença surgiram, exercício sempre complicado e com bias dos próprios pais. O projeto, com um custo de US$ 75 mil e liderado pela Inova Institute, irá monitorar essas crianças usando aplicativos eletrônicos para coleta massiva de dados relacionados à saúde dos participantes.
Outros projetos semelhantes já existem e estão em andamento, financiados por outras instituições americanas. Porém, o projeto da Inova se diferencia pela intensa coleta de dados genéticos e habilidade de relacionar esses resultados com dados clínicos. Além disso, é intenção do projeto contrastar esses dados com uma matriz de parâmetros ambientais, como estresse e nutrição, coletados no mesmo período. Isso pode ser útil, pois existem diversas correlações anedóticas entre certas doenças humanas e infecções durante a gestação, por exemplo.
Com uma amostra de cinco mil indivíduos, estima-se que alguns irão apresentar deficiências do desenvolvimento, como autismo. Nesses casos, o grupo irá aumentar a coleta de dados, na esperança de identificar fatores ainda desconhecidos que possam estar contribuindo para doenças. Serão coletadas amostras de urina e sangue da mãe e da criança, durante o segundo e terceiro semestre de gestação. Irão providenciar o genoma completo de cada participante junto com uma análise de expressão gênica e marcadores epigenéticos do sangue, procurando por genes que possam estar fugindo do padrão durante o desenvolvimento. Pretender analisar esse padrão a cada seis meses, incluindo amostras dos pais e irmãos quando possível. Além disso, o grupo pretende estudar o comportamento de microRNAs, pequenos fragmentos de RNA com funções regulatórias no genoma.
A capacidade de relacionar tudo isso com a exposição de drogas ou outros fatores ambientais durante a gravidez é uma ferramenta poderosa, pois trará pistas do que estaria contribuindo com eventuais doenças humanas. É uma busca por fatores de risco às cegas e sem bias. Infelizmente, mesmo com uma amostra inicial grande, imagino que o grupo tenha problemas estatísticos ao tentar sugerir fatores de risco com essa ou aquela doença, pois nesse grupo, o número de pacientes com uma determinada condição será relativamente baixo. Acho que a solução nesse caso seria aumentar a participação de pacientes, colaborando com outros grupos através de consórcios internacionais que seguissem protocolos semelhantes em outras partes do mundo.
O espectro autista afeta cerca de 1% da população mundial e é caracterizado por dificuldades na fala, relações sociais e comportamentos estereotipados, comprometendo a qualidade de vida e independência dos pacientes.
Formas sindrômicas de autismo, como a síndrome de Rett ou a síndrome do X-frágil são, em geral, mais severas clinicamente. Porém, estes tipos de autismo resultam em modelos genéticos mais simples que têm facilitado o entendimento do autismo, pois os diversos tipos de autismo possuem um denominador comum. Modelos animais da síndrome do X-frágil recapitulam alguns comportamentos autistas nos camundongos. Da mesma forma, sabe-se que certas drogas, quando administradas em roedores, também induzem comportamentos autistas nesses animais. É o caso do anti-convulsivo valproato de sódio que, quando administrado em ratas grávidas, geram prole com sintomas do autismo. Esses modelos animais, apesar de não refletirem completamente a condição humana, são ferramentas experimentais excelentes, permitindo testar hipóteses que são moralmente inaceitáveis em seres humanos.
Recentemente, foram publicados na revista cientifica “Science” resultados que mostram ser possível prevenir o autismo nesses dois modelos experimentais: em animais previamente tratados com valproato de sódio e em camundongos geneticamente manipulados para representar a síndrome do X-frágil (Tyzio et al, 2014). Nesse trabalho, os pesquisadores trataram as fêmeas grávidas com a droga bumetanida, um tipo de diurético também usado para hipertensão arterial, um dia antes de parir. Filhotes nascidos das mães tratadas não apresentaram distúrbios comportamentais semelhantes ao autismo. Literalmente, conseguiram prevenir o aparecimento desses sintomas ainda na gravidez, sugerindo que o autismo possa ser tratado ainda no útero.
Esses dados parecem dar suporte a um ensaio clínico europeu feito com a bumetanida em 60 crianças autistas de alto-funcionamento, também conhecido como Aspergers, sugerindo uma melhora no quadro clínico (Lemonnier et al, 2012). Essa droga mimetiza os efeitos da oxitocina, um hormônio liberado durante a gravidez que protege o feto, além de facilitar a relação afetiva da mãe com o futuro bebê. Nos roedores, a bumetanida foi responsável por diminuir a alta excitação em certas regiões do cérebro, algo também observado em pacientes autistas, ela agiu como um freio eletroquímico, atuando a comunicação neuronal.
Apesar de animadores, os resultados tem pouca aplicabilidade em humanos. Além de não sabermos se o processo também acontece em humanos, também não temos como diagnosticar o autismo esporádico, a grande maioria dos casos, em fetos para um eventual tratamento durante a gravidez. De qualquer forma, o estudo chama a atenção para esse momento do parto, quando acontecem diversas alterações neuroquímicas no cérebro do feto, importante para o desenvolvimento normal do indivíduo.
Esse estudo, junto com outros semelhantes, soma-se às evidências de que o autismo é tratável, e possivelmente curável. Esse tipo de notícia é que reforça a esperança daqueles que lutam para tornar melhorar a qualidade de vida dos autistas e seus familiares.
Talvez a área mais quente e dinâmica da medicina atual seja a potencial aplicação das células-tronco na busca da cura de doenças humanas, hoje tidas como incuráveis.
Porém, o assunto é complexo, polêmico e a terminologia confusa. São diversos tipos de células-tronco, muitas vezes especificas para uma determinada aplicação. É comum ver a mídia e mesmo os profissionais de saúde se atrapalhando com o vocabulário. Além disso, existem protocolos envolvendo células-tronco que já foram provados cientificamente e estão presentes na clínica hoje em dia. Outros ainda estão em fase experimental e podem, ou não, ser utilizados no futuro. Como consequência desse momento ainda imaturo das células-tronco, clínicas clandestinas e gananciosas procuram oportunidades na esperança daqueles que estão fragilizados por alguma enfermidade ou doença incurável.
Existem muitos mitos e conceitos errados sobre células-tronco. Distinguir o que é realidade do que ainda requer aprovação científica é outro desafio dos que navegam pelo assunto. Muita informação na internet, ou em revistas cientificas especializadas, está escrito em outras línguas e existe pouco material traduzido.
Foi com o objetivo de facilitar a compreensão que eu e meus colegas decidimos escrever um livro em Português abordando as células-tronco. Desde o inicio, ficou claro que não queríamos apenas um livro texto, com jargões complicados e restritos a meios acadêmicos. Queríamos algo novo, uma fórmula diferente de divulgação cientifica, que pudesse ser lida e compreendida por crianças e adultos leigos, mas que contivesse informação atualizada, com mais novas aplicações das células-tronco, a ponto de surpreender médicos e outros profissionais da área de saúde.
O resultado é o livro “Simples Assim: Células-tronco”, editado pela Atheneu e com lançamento previsto para a próxima quinta-feira, às 19hs, dia 6 de fevereiro, na livraria da Vila Unidade Lorena em São Paulo.
O livro está dividido em duas partes, uma parte inicial fundamental e outra mais aplicada, com informações especificas sobre o uso de células-tronco na clínica em diversas situações. A parte aplicada foi escrita por profissionais do grupo médico do Hemocentro São Lucas e da CordCell, duas respeitadas instituições médicas de São Paulo, especializadas em aplicações clínicas de células-tronco, e lideradas pelo médico visionário e empreendedor Dr. Adelson Alves.
A parte básica foi escrita (ou melhor ditada num iPhone) em ares internacionais. Isso porque muito do texto foi produzido entre um voo e outro, durante viagens profissionais desse autor que vos escreve. Os transcritos foram editados pelo Rafael Garcia, repórter de ciências do jornal Folha de São Paulo, que contribuiu para retirar o “inglesismo” e trabalhar na acessibilidade da linguagem.
Outro fato curioso são as ilustrações feitas pelo cartunista Ziraldo, que aos 80 anos, inova em sua carreira e faz algo inédito: cartoons de divulgação científica!
O trabalho do Ziraldo e a qualidade dos desenhos são incríveis. Cheguei a conclusão que todo cientista deveria ter um cartunista de plantão. Mesmo quando o assunto é complicado e polêmico, como o uso de animais quiméricos em pesquisa científica, o Ziraldo surpreende. Veja o exemplo abaixo, retratando a evolução do conceito científico, desde a versão original até o produto final.
Outra inovação dessa iniciativa foi a busca de validação internacional. Por incrível que pareça, isso raramente acontece (talvez nunca mesmo) em publicações nacionais da área de ciências e saúde. O livro foi apresentado ao Dr. Larry Goldstein, diretor do programa de células-tronco da Universidade da Califórnia, um dos centros científicos mais fortes do mundo nessa área. O Dr. Goldstein tem forte atuação na divulgação científica americana e ficou impressionado com o trabalho. Além de ressaltar a importância e o momento oportuno da publicação, sugeriu a tradução imediata do livro para outras línguas, certo da sede de conhecimento sobre células-tronco que as pessoas do mundo todo tem.
As inovações não param por aí e não vou estragar a surpresa do leitor ao ler e descobrir novidades em cada página do livro. Acho que essa iniciativa representa um marco na divulgação científica no Brasil. Tomara que o formato contagie outros cientistas e se multiplique, traduzindo e digerindo a ciência de ponta mundial e levando o conhecimento a quem mais importa: a população brasileira.
Hoje em dia as vitaminas estão em todo lugar, na farmácia, supermercados, academias e etc. É fácil de comprar e traz uma sensação de bem-estar, de estar de bem com a vida. O fato é que somos fortemente manipulados pela mídia, financiada pela indústria farmacêutica, que transmite a imagem de que multivitamínicos fazem bem para a saúde. Mas será realmente verdade?
No final do ano passado, três estudos foram publicados na revista cientifica Annals of Internal Medicine, mostrando que não existe beneficio algum para uma pessoa saudável em tomar vitaminas ou minerais extras, seja prevenindo a ocorrência ou retardando o progresso de doenças crônicas. Pelo contrário, o efeito seria maléfico, principalmente para o seu bolso.
O primeiro estudo fez uma revisão sistemática de ensaios clínicos para medir a eficácia de suplementos multivitamínicos na prevenção do surgimento de doenças crônicas em adultos sem deficiências nutricionais. Foram 3 ensaios clínicos com multivitamínicos e outros 24 experimentos com vitaminas isoladas ou em duplas, utilizando mais de 400 mil participantes analisados de forma aleatória. Não foi encontrada qualquer evidência de efeito benéfico dos suplementos em qualquer tipo de mortalidade, doenças cardiovasculares ou câncer.
O segundo estudo avaliou o efeito de uma cápsula de multivitamínico diária como forma de prevenir o declínio cognitivo em 5.947 homens com 65 ou mais anos de idade, sem deficiências nutricionais. O estudo foi mantido por 12 anos. O efeito de multivitaminas foi comparável ao placebo em testes de cognição e memória verbal. A conclusão é simples, a adição de vitaminas em homens bem nutridos não traz vantagem alguma para perda cognitiva. O efeito foi semelhante ao encontrado em um outro trabalho recente, que avaliou o efeito isolado de vitaminas B, E, C e ômega-3 em pessoas com demência moderada. Nenhum suplemento melhorou a função cognitiva dos sujeitos da pesquisa.
O terceiro estudo teve como objetivo monitorar efeitos benéficos em potencial de 28 vitaminas em altas doses, em 1.708 homens e mulheres com histórico de enfarte do miocárdio. Depois de acompanhar os pacientes por cerca de 5 anos, os autores não encontraram efeito algum das vitaminas contra ataques recorrentes.
Esses estudos ecoam dados que vêm sendo registrados na literatura científica, sugerindo que vitaminas e suplementos minerais não têm efeitos benéficos quaisquer na prevenção de doenças crônicas. Alguns até sugerem um efeito contrário. Vale a pena mencionar outros trabalhos envolvendo dezenas de milhares de pessoas que foram acompanhadas aleatoriamente em ensaios clínicos ao consumir B-caroteno, vitamina E e altas doses de vitamina A, sugerindo um aumento na mortalidade nesses grupos.
Apesar do volume de dados científicos mostrando claramente que o uso de minerais e multivitamínicos não oferecem beneficio e até podem fazer mal, o consumo desse tipo de suplemento aumentou nos EUA, de 30% entre 1988 e 1994 para 39% entre 2003 e 2006, principalmente entre adultos bem-nutridos.
O aumento no consumo reflete um crescimento nas vendas. A indústria de suplementos continua se expandindo nos EUA, atingindo US$ 28 bilhões em vendas em 2010. Vendas essas que, muitas vezes, são consequências de medicinas alternativas ou pseudocientíficas, como a ortomolecular. Números semelhantes são registados no Reino Unido e diversos países europeus.
O acúmulo de evidências cientificas seria suficiente para sugerir que as pessoas evitem consumir esses suplementos uma vez que o uso não se justifica, na prevenção e tratamento de doenças crônicas ou déficit cognitivo. Vale lembrar que estamos falando de indivíduos saudáveis e o mesmo não se aplica em casos de má nutrição, deficiências metabólicas genéticas ou mesmo gravidez, onde o uso de complementos alimentares é indiscutível e altamente recomendável.
*Crédito: WBU / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Dessa vez, minhas reflexões sobre o ano novo pairaram sobre a ciência atual como forma de gerar conhecimento para o bem da humanidade. Fiz o seguinte exercício filosófico: se pudesse reconstruir como a ciência é feita hoje em dia, quais seriam as modificações mais importantes que incorporaria? Como seria essa “ciência bossa-nova”?
Cheguei a conclusão de que se realmente tivesse essa oportunidade, mudaria muita coisa. O método cientifico tem sido eficaz, é verdade, mas lento. Descobrimos o principio fundamental da genética, evolução, biologia molécula, etc. Com isso, fomos capazes de curar diversas doenças, prever processos biológicos complicados entre outras coisas. Porém, ainda sinto que estamos bem pra atrás em diversas áreas, como por exemplo no entendimento do cérebro. A ciência tem sido lenta por diversas razões, incluindo interesses financeiros, egocentristas e falta de visão cooperativista. Então, penso que a ciência poderia ser ainda mais eficiente se fosse otimizada seguindo algumas dessas idéias que listo abaixo.
Começaria por fazer a ciência um patrimônio da humanidade. Seria a real ciência sem fronteiras, aonde não haveria conhecimento restrito por barreiras territoriais. O fim da ciência “nacional” seria acompanhado por um esforço mundial, aonde grupos de cientistas trabalhando numa mesma área usariam de ferramentais virtuais para dividir resultados antes de serem publicados. Obviamente que esse tipo de parceria iria gerar questionamentos sobre os direitos autorais ou mesmo royalties gerados por produtos oriundos dessa pesquisa. Não quero causar a impressão que sou a favor de uma ciência comunista, não é isso. Argumento que da mesma forma que hoje já existem consórcios mundiais que conseguem resolver a questão financeira, as consequências da ciência mundial seriam voltadas para o bem da humanidade, portanto o produto final seria igualmente dividido entre os grupos participantes.
A forma de publicar também deveria ser seriamente alterada. Na minha visão “bossa-nova” existiriam apenas três jornais, de livre acesso, funcionando como uma dinâmica forma de blog. A submissão dos trabalhos é uma só, direta. Manteria a revisão por pares, mas abriria o processo para deixá-lo mais transparente. Além disso, incluiria comentários da comunidade em geral. A diferença entre publicar no jornal X em relação ao jornal Y seria apenas de caráter classificatório: trabalhos que descrevem um novo fenômeno (exploratórios), aqueles que propõe uma nova teoria baseando-se em alguns dados e trabalhos que provem uma hipótese (mecanisticos). A própria comunidade cientifica se encarregaria de julgar qual a classificação dos trabalhos através de votos online. Essa classificação ajudaria os outros cientistas (que não são necessariamente daquela área), a julgar como os resultados publicados permitiram a avançar o conhecimento.
Acabaria de vez com a estabilidade do pesquisador em universidades ou institutos de pesquisa públicos, fazendo com que o processo seja o mais meritocrático possível. Além disso, dividiria os pesquisadores em categorias como administrador, executor e teórico. Todos teriam o mesmo treinamento, mas escolheriam a carreira a seguir basendo-se naquilo que gostam mais de fazer. Hoje em dia, a maioria dos pesquisadores fazem tudo junto, não necessariamente da melhor forma possível. A última categoria seria a de professor, encarregados de passar o conhecimento e não necessariamente gerá-lo. Sei que todo tipo de classificação é, de certa forma lúdico, e portanto não imagino que essas classes sejam rígidas, mas flexíveis, mutáveis. Poderíamos até dispor de um serviço rotacional.
Outra parte que eu alteraria seria o financiamento para pesquisas. Acho que todo pesquisador que começa deveria receber um “startup” rico o suficiente para deixá-lo independente por um certo período. Depois disso, o volume de financiamento para determinado grupo ou pesquisador seria modulado em relação a produtividade. Já sei, alguém vai dizer que produção é difícil de se julgar. Concordo que seja difícil, mas não podemos esquecer que conhecemos apenas no esquema atual. Ao eliminarmos a perfumaria dos jornais (impacto, nome, grupo editorial, etc) conseguiríamos ter uma visão mais clara da contribuição do pesquisador, pois estaríamos julgando qualidade do conhecimento gerado.
Enfim, é impossível criar um modelo de ciência novo o suficiente que deixe de lado todos os problemas anteriores. Também é impossível criar o modelo ideal. Mas o exercício de imaginar um mundo cientifico mais eficiente, pode incitar discussões interessantes entre gerações de cientistas que tem o poder de fazer alterações significativas no sistema.
O cenário parece algo semelhante ao filme “O Senhor dos Anéis”, com diversas espécies humanoides convivendo no mesmo mundo. Talvez esse seja um mundo semelhante ao que aconteceu há cerca de 50 mil anos atrás. Homo sapiens, Neandertais e mais dois grupos da espécie humana conviveram e provavelmente tiveram relações amorosas. Essa é a conclusão da análise de DNA extraído de um osso oriundo de um pododáctilo Neandertal numa caverna nas montanhas Altai da Sibéria.
O artelho (articulação pela qual o pé se prende à perna) fossilizado do Neandertal deu o que falar e foi tema de um estudo publicado nesta semana na revista científica “Nature”. Os cientistas compararam a sequência do genoma do fóssil com o genoma de outros 25 humanos modernos, além do genoma dos Denisovans, um grupo de humanos que também conviveu com os Neandertais.
De acordo com as análises, o material genético dos Neandertais contribui com cerca de 2% do genoma dos humanos modernos fora da África, e com 0.5% do genoma dos Denisovans. Já os Denisovans contribuem com 0.2% do DNA de pessoas com origem asiática ou americanos nativos. Mas a maior surpresa foi a descoberta de um quarto tipo de hominídeo, contribuindo com cerca de 6% do DNA dos Denisovans. Mas quem seriam esses seres? A identidade desse quarto grupo ainda é um mistério. Especula-se que esses possam ser descendentes do Homo erectus, mas isso precisa ser confirmado.
As análises de DNA de espécies humanas extintas têm contribuído muito para iluminar como o mundo deve ter sido para nossos antepassados. A Eurásia, durante as fases finais do Pleistoceno, parace que era um lugar interessante para um hominídeo. Diversos grupos de humanos, com grandes números de indivíduos bem distintos fisicamente, coabitavam a terra, encontrando-se eventualmente e fazendo sexo.
O ossinho foi achado na mesma caverna em que arqueologistas haviam descoberto evidências da presença dos Denisovans, grupo que mostrou-se distinto dos Neandertais e humanos modernos já em 2010. Nesse caso, o ossinho fossilizado era de uma mulher Neandertal. Pode-se inclusive saber que os pais dela eram parentes entre si, irmãos de uma mesma mãe, primos de segundo grau ou mesmo tio e sobrinha. O acasalamento entre as espécies aconteceu num período quando a população dos Neandertais já estava em declínio, na borda da extinção praticamente. Isso talvez justifique o cruzamento entre parentes próximos.
Pelo estudo, pode-se estimar também que o ancestral comum entre Neandertais e Denisovans separou-se da linhagem dos humanos atuais há cerca de 600 mil anos. Com base nas sequências dessas três espécies, pode-se concluir que a espécie humana moderna começou a sobressair em número há pelo menos um milhão de anos. E foi há apenas 30 mil anos que o humano moderno, o Homo sapiens, deve ter sido o único sobrevivente humano do mundo. O porquê e como isso aconteceu ninguém sabe. O fato é que as evidências de que esses grupos humanos se miscigenaram geneticamente estão cada vez mais fortes, aguçando a curiosidade dos cientistas.
O mapeamento genético de espécies humanas extintas vai nos ajudar a entender por que os humanos modernos são os únicos sobreviventes de diversas tribos que um dia andaram pela Terra. A diferença entre humanos e Neandertais é relativamente pequena, o que permitirá o catálogo das alterações genéticas que distinguem os humanos modernos das outras espécies. Acredito que em algumas dessas modificações genômicas estariam escondidos os segredos que tornaram possível a conquista do planeta pelos humanos modernos, através do domínio da cultura e tecnologia. Quem viver verá.
Trabalhos recentes têm confirmado o que se promete ser uma revolução na forma como conectamos genética e neurociência. Em 2005, meus colegas e eu publicamos um artigo sugerindo que, através de observações indiretas, o cérebro humano seria um mosaico genético, em que cada neurônio individual estaria modificado geneticamente pela atividade de genes saltadores. Apesar de polêmica que causou naquele momento, essa teoria fez sentido ao contemplarmos o conhecimento da época em doenças hereditárias e altamente complexas.
Em 2007, a área da genética sofreu outro abalo com a descoberta que mutações somáticas estavam associadas ao autismo. Hoje sabemos que essas alterações espontâneas no DNA afetam também outras doenças, como esquizofrenia ou síndrome bipolar. Essas mutações são chamadas de “somáticas” porque ocorrem em regiões especificas do cérebro adulto. Durante muito tempo, cientistas estudaram o papel dessas mutações em câncer, mas neurocientistas e psiquiatras nunca se interessaram muito no assunto porque neurônios são células que não se dividem. No estudo de doenças neurológicas, o material genético para estudo acaba vindo de tecidos periféricos, como pele e sangue, pois nunca se imaginou que o DNA do cérebro de um indivíduo pudesse conter genomas múltiplos.
No ano passado, um trabalho de Harvard publicado na revista “Cell” mostrou evidências físicas da presença de genes saltadores no cérebro humano. O grupo conseguiu identificar pegadas de alterações genéticas através do sequenciamento de neurônios individualizados, a prova final de que o fenômeno realmente acontece no cérebro humano. Mês passado, dois grupos da Califórnia deram mais um passo nesse sentido. No primeiro trabalho, publicado na revista ”Science” por um grupo do instituto Salk, sequenciou-se neurônios do córtex humano revelando que cerca da metade deles apresentavam alterações genéticas únicas. Essas alterações não eram sutis, mas dramáticas, com perdas de milhares de bases, pedaços gigantes de cromossomos estavam faltando em algumas células. Em outra publicação independente, um grupo de engenheiros da Universidade da Califórnia em San Diego desenvolveu uma nova plataforma para sequenciamento de células individualizadas. Ao aplicar a nova metodologia também no cérebro humano, detectou-se ganhos de pedaços enormes de cromossomos em neurônios distintos. O trabalho, publicado na “Nature Biotechnology”, confirma o que já suspeitávamos: em nosso cérebro reside uma variação genética intrínseca e enorme.
Mas se os neurônios são células que não se dividem, de onde surgem essas alterações? Muitas dessas mutações somáticas podem ter sido causadas justamente pela atividade de genes saltadores durante o desenvolvimento embrionário, quando as células progenitoras que darão origem ao cérebro estão proliferando loucamente. No feto, as progenitoras neurais são as células que se dividem mais rapidamente no corpo. Estima-se cerca de 100 mil divisões por minuto durante as semanas 10 e 24 da gestação, quando o cérebro chega a produzir 10 bilhões de células. De certa forma, não deveria ser surpresa alguma constatar que o cérebro é um tecido que acumula alterações genéticas. Surpresa seria a de não encontrar nenhuma alteração.
Seriam essas modificações, frequentemente em um único neurônio, relevantes para o indivíduo? Estariam elas ligadas a transtornos do desenvolvimento? Ainda não sabemos interpretar essa variação genética no cérebro, mas o estudo desse mecanismo no câncer, por exemplo, levou ao desenvolvimento de uma série de medicamentos. É plausível então imaginar que, no cérebro, mutações podem ser a causa de doenças neurológicas ou mesmo de habilidades excepcionais em alguns indivíduos. Sob a ótica evolucionária, alterações no DNA seriam o motor evolutivo para um cérebro mais sofisticado. O custo disso seria a enorme diversidade cognitiva das populações humanas.
A sensação de que é preciso fazer algo é comum em familiares próximos, indivíduos afetados por alguma doença ou condição incurável. Por experiência própria, recebo centenas de mensagens toda semana de pais de autistas brasileiros perguntando o que é possível fazer para acelerar o processo de descoberta e chegar logo a tratamentos clínicos. O sentimento não é restrito ao Brasil e acontece com familiares em outras partes do mundo também.
Minha intenção com essa coluna é discutir formas que podem acelerar todo o processo, mostrando algumas das iniciativas que acontecem fora do Brasil. Nos EUA, a consciência de que curas para doenças complexas serão fruto de uma colaboração multidisciplinar começa a tomar impulso. Encontros como o P4C (Partners for Cure), acontecem cada vez com mais frequência. Nesses encontros, uma mistura de cientistas, grupos de familiares, investidores, médicos e profissionais da indústria farmacêutica exploram o “quem” e “quando” os tratamentos vão surgir.
Ao perguntarmos “quem” serão os responsáveis pelas curas, esbarramos nos modelos tradicionais de pesquisa científica. Poucos sabem que, apesar de muitos cientistas se dedicarem a buscar curas para diversas doenças, a moeda científica são trabalhos publicados em revistas. Pouco importa academicamente se os dados gerados serão realmente utilizados clinicamente. Além disso, cientistas também se preocupam com financiamento e gerenciamento do laboratório, algo que frequentemente desvia o foco da cura. Portanto, o modelo atual de ciência é desconectado com a urgência dos pacientes. Um exemplo claro é o tempo de publicação de um trabalho cientifico (meses ou anos depois de que a descoberta foi feita). Publicações mais rápidas poderiam disseminar novos conhecimentos mais efetivamente.
Iniciativas que surgem desses encontros são modelos experimentais que já estão sendo desenvolvidos por associações de pacientes. Uma conclusão comum é que a união de organizações sem fins lucrativos com a indústria, governo e laboratórios acadêmicos tem sido uma atraente opção positiva para todas as partes envolvidas. Algumas dessas iniciativas podem ser exemplificadas pela fundação Michael J. Fox de combate ao Mal de Parkinson. Nesse caso, o grupo desenvolveu um aplicativo de celular que detecta alterações no padrão de voz de pacientes e a relaciona com o progresso clínico da doença. De forma semelhante, um grupo de ELA (esclerose lateral amiotrófica) conseguiu reunir dados clínicos de 8.600 pacientes identificados a partir de 18 ensaios clínicos. Esses dados estão sendo estudados por cientistas de mais de 30 países diferentes. Um modelo inédito também está em andamento numa iniciativa de combate ao câncer. Uma nova empresa, Curious, organiza pesquisas cientificas mediada por grupos de pacientes através de plataformas de acesso aberto.
Fora da esfera cientifica, familiares e pacientes podem contribuir de outras formas. A doação filantrópica a laboratórios acadêmicos é algo comum nos EUA. Ao contribuir financeiramente para um laboratório, associações de pacientes ajudam o cientista a focar na cura. Essa ajuda não precisa vir necessariamente de associações de familiares ou ONGs. A doação individual é frequentemente esquecida como uma opção viável, principalmente no Brasil, aonde a cultura da doação filantrópica praticamente não existe. Falo com experiência no exterior, apesar de meu laboratório já ter recebido doações nos EUA, Europa e Ásia, nunca houve uma única contribuição vinda do Brasil. Por menor que seja, todo apoio recebido acaba somando para acelerar a desejada cura. Esse tipo de crowdfunding tem crescido em outras esferas da sociedade, muitas vezes com projetos bem menos impactantes do que o tratamento de uma doença humana.
Outra forma de contribuição são formas de conscientização social. Nisso, os americanos dão show de criatividade. Vista algo da cor rosa e lute pelo câncer de mama. Deixe o bigode crescer e converse sobre o câncer de próstata. Na minha área, autismo, grupos de pais estão revolucionando esse conceito através de parcerias com a iniciativa privada. Uma vez por mês, a famosa rede de cinemas americana AMC recebe os autistas e familiares para pré-estreias. Todos no cinema são informados previamente do evento. As luzes na sala são controladas para que o ambiente não fique completamente escuro, e o som moderado. Além disso, os autistas podem se levantar, correr, dançar e se expressar da forma que quiserem. Atitudes semelhantes acontecem em academias de ginástica, piscinas, bufês infantil, cafés, cabeleireiros, dentistas, com baby-sitters, etc. Além de prestar um serviço comunitário para os familiares, essas iniciativas localizadas ajudam na divulgação e conscientização do autismo. Aos poucos, o autismo vai sendo divulgado em comunidades pequenas, que vão amplificando o conhecimento.
Finalmente, existe a opção de lobby político. Pode-se ressaltar a importância e o impacto de um tratamento para os cofres públicos, por exemplo. Nos EUA, esse lobby acontece bi-lateralmente, ou seja, tanto políticos que procuram mais conhecimento, como grupos de pais que se reúnem com políticos cobrando serviços. Quando sugiro isso a grupos brasileiros, o desânimo é aparente. A sensação de impotência e incompetência política em nosso país é muito grande. Parece ser mais fácil conseguir uma audiência com o presidente dos EUA do que com um vereador brasileiro. Mas não podemos esquecer que a tendência é melhorar. Os recentes avanços políticos no Brasil são uma indicação de novos ares.
Foto: Cure It Foundation
A identificação de características celulares e moleculares que diferem os humanos de outros primatas é algo essencial para o entendimento básico da evolução da nossa própria espécie. Com as melhorias da tecnologia de sequenciamento de DNA, descobrimos que somos muito parecidos geneticamente com nossos primos evolutivos, incluindo os chimpanzés, os bonobos e os gorilas. Por outro lado, análises anatômicas e comportamentais mostram o quanto diferentes somos dos outros primatas.
Esse cenário nos mostra que as pequenas variações genéticas entre essas espécies são, portanto, bem significativas. Cientistas do mundo todo especulam sobre as consequências dessas variações para a fisiologia humana: neurônios humanos devem gastar mais energia, músculos dos chimpanzés são mais fortes, e por aí vai. Porém, até hoje era impossível desenhar experimentos controlados a nível molecular e celular sobre a evolução humana, provando causalidade entre as diferenças genéticas e os fenótipos celulares em células vivas de chimpanzés e bonobos. Parte dessa dificuldade vem das restrições de trabalho com material biológico de primatas, principalmente quando estão ameaçados de extinção.
Quando criança, lembro que gastava horas pensando em questões filosofais como “de onde viemos?” e “quem somos?”. Esse tipo de questionamento sempre me deixou com vontade de estudar evolução humana, principalmente sob a ótica da neurociência. Porém, nunca soube direito como poderia contribuir para essas questões fundamentais até que decidi aplicar técnicas de reprogramação celular para gerar células pluripotentes de outros primatas. Com isso, poderia obter material biológico de estágios iniciais do desenvolvimento e comparar as espécies. Células da pele de chimpanzés e bonobos foram obtidas do zoológico de San Diego e reprogramadas para um estágio embrionário. O estudo que descrevo abaixo é fruto de uma cooperação internacional e culminou com um trabalho publicado hoje na revista cientifica Nature (Marchetto et al, Nature 2013).
Nesse trabalho, procuramos responder uma questão essencial sobre a origem do homem moderno: por que temos tão pouca variabilidade genética quando comparados aos chimpanzés ou outros primatas? Eu explico melhor. Análises de sequenciamento do genoma humano revelaram que temos pouquíssima diversidade na população. Somos muito parecidos entre nós e o conceito de raça entre os humanos modernos pode ser considerado apenas uma curiosidade geográfica. Do ponto de vista genético, somos todos irmãos. Isso contrasta muito com chimpanzés, por exemplo. Uma simples colônia de chimpanzés na África tem mais variabilidade genética do que a humanidade inteira!
Uma teoria para explicar isso sugere que os humanos modernos passaram por um “gargalo evolucionário”, reduzindo dramaticamente a população humana. Consequentemente, reduzimos a variação genética também. Ou seja, somos todos muito similares uns aos outros porque fomos originados de uma população inicial muito pequena. Esse gargalo pode ter sido consequência de uma infecção viral, mudanças climáticas ou qualquer outro fator que fizesse com que apenas uma pequena porcentagem, com os mais adaptados, sobrevivesse e procriasse.
Essa teoria pode ser confirmada em nosso modelo, contrastando células-tronco induzidas de humanos, chimpanzés e bonobos. A variabilidade gerada pela atividade de elementos móveis no genoma (uma das ferramentas evolutivas para gerar diversidade genética) é significativamente menor em humanos quando comparada com os outros dois primatas. Análises de expressão gênica ajudaram a desvendar o porquê disso. Mecanismos moleculares responsáveis por manter a estabilidade do genoma são mais rigorosos em humanos. Seria como se as células-tronco embrionárias dos outros primatas tolerassem mais insultos na molécula de DNA.
Essa observação não serve apenas para confirmar uma teoria evolucionária antiga, mas também traz insights sobre os mecanismos moleculares envolvidos nesse fenômeno. Vou mais além, nosso dados fazem pensar: será que o fato de os humanos terem menos diversidade genética foi algo positivo pra humanidade moderna? Acho que sim, pelo menos por enquanto. Imagino que a dramática redução de diversidade dos nossos ancestrais nos aproximou empaticamente, favorecendo cooperação entre grupos. Humanos modernos são muito mais tendenciosos a trabalhar junto aos seus semelhantes. No momento após o gargalo, os humanos que restaram eram nada mais do que uma grande família. E ainda somos, o que induziria a cooperação entre nações. Grupos de chimpanzés, ao contrário, são extremamente hostis uns aos outros e não são necessariamente dispostos a trabalhar em conjunto. É uma especulação interessante.
De qualquer forma, nosso trabalho é pioneiro no sentido de criar uma nova ferramenta para estudos de evolução utilizando-se de células-tronco pluripotentes induzidas. Esse modelo já está sendo aplicado ao estudo do desenvolvimento do cérebro humano. Estamos começando a comparar neurônios e glia (células não-neuronais, pouco caracterizadas, mas que possuem funções importantes no cérebro) derivados de humanos e outras espécies, durante a maturação neural. O conhecimento vai além de um mero egocentrismo antropológico. Acredito que resultados desses estudos serão benéficos para doenças humanas, como autismo e esquizofrenia.
Esse trabalho conta com a participação de outros colegas brasileiros. Foi liderado pela Carol Marchetto (atualmente a brasileira mais influente internacionalmente quando o assunto é células-tronco) e com participação dos bioinformatas Apuã Paquola e Roberto Herai, ambos fazendo pós-doutoramento em San Diego. Pois é, um trabalho desse calibre tinha que ter uma participação criativa brasileira muito forte.