Os primeiros mil dias de nossas vidas
Ao ser recrutado para a Pediatria da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, ouvi a seguinte frase do chefe do departamento: “Alysson, em teoria, se fizermos nosso trabalho direito, as pessoas não mais precisarão de médicos no futuro”. Ele está certíssimo.
A grande maioria das doenças genéticas tem alguma causa em estágios iniciais do desenvolvimento humano. Hoje acredita-se que mesmo doenças que afetam adultos e idosos, como Alzheimer ou Esclerose Lateral Amiotrófica podem ter origens nos primeiros dias de vida do indivíduo. Às vezes são pequenas e sutis alterações moleculares que irão se desdobrar em catastróficas reações metabólicas anos mais tarde. Descobrir o que pode dar errado é o primeiro passo para prevenir problemas futuros.
Por isso vejo com bons olhos o projeto americano “Os primeiros mil dias de vida”, que tem como objetivo acompanhar cinco mil mulheres durante o período de gravidez e seus futuros filhos até os dois anos de idade. O desenho experimental vai permitir que os pesquisadores tirem conclusões prospectivas. É diferente do que acontece hoje em dia, quando os pais visitam o médico e têm que lembrar o que aconteceu exatamente no passado, quando os sintomas de alguma doença surgiram, exercício sempre complicado e com bias dos próprios pais. O projeto, com um custo de US$ 75 mil e liderado pela Inova Institute, irá monitorar essas crianças usando aplicativos eletrônicos para coleta massiva de dados relacionados à saúde dos participantes.
Outros projetos semelhantes já existem e estão em andamento, financiados por outras instituições americanas. Porém, o projeto da Inova se diferencia pela intensa coleta de dados genéticos e habilidade de relacionar esses resultados com dados clínicos. Além disso, é intenção do projeto contrastar esses dados com uma matriz de parâmetros ambientais, como estresse e nutrição, coletados no mesmo período. Isso pode ser útil, pois existem diversas correlações anedóticas entre certas doenças humanas e infecções durante a gestação, por exemplo.
Com uma amostra de cinco mil indivíduos, estima-se que alguns irão apresentar deficiências do desenvolvimento, como autismo. Nesses casos, o grupo irá aumentar a coleta de dados, na esperança de identificar fatores ainda desconhecidos que possam estar contribuindo para doenças. Serão coletadas amostras de urina e sangue da mãe e da criança, durante o segundo e terceiro semestre de gestação. Irão providenciar o genoma completo de cada participante junto com uma análise de expressão gênica e marcadores epigenéticos do sangue, procurando por genes que possam estar fugindo do padrão durante o desenvolvimento. Pretender analisar esse padrão a cada seis meses, incluindo amostras dos pais e irmãos quando possível. Além disso, o grupo pretende estudar o comportamento de microRNAs, pequenos fragmentos de RNA com funções regulatórias no genoma.
A capacidade de relacionar tudo isso com a exposição de drogas ou outros fatores ambientais durante a gravidez é uma ferramenta poderosa, pois trará pistas do que estaria contribuindo com eventuais doenças humanas. É uma busca por fatores de risco às cegas e sem bias. Infelizmente, mesmo com uma amostra inicial grande, imagino que o grupo tenha problemas estatísticos ao tentar sugerir fatores de risco com essa ou aquela doença, pois nesse grupo, o número de pacientes com uma determinada condição será relativamente baixo. Acho que a solução nesse caso seria aumentar a participação de pacientes, colaborando com outros grupos através de consórcios internacionais que seguissem protocolos semelhantes em outras partes do mundo.