Os primeiros mil dias de nossas vidas

qui, 27/02/14
por marina |
categoria Espiral

Ao ser recrutado para a Pediatria da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, ouvi a seguinte frase do chefe do departamento: “Alysson, em teoria, se fizermos nosso trabalho direito, as pessoas não mais precisarão de médicos no futuro”. Ele está certíssimo.

A grande maioria das doenças genéticas tem alguma causa em estágios iniciais do desenvolvimento humano. Hoje acredita-se que mesmo doenças que afetam adultos e idosos, como Alzheimer ou Esclerose Lateral Amiotrófica podem ter origens nos primeiros dias de vida do indivíduo. Às vezes são pequenas e sutis alterações moleculares que irão se desdobrar em catastróficas reações metabólicas anos mais tarde. Descobrir o que pode dar errado é o primeiro passo para prevenir problemas futuros.

Por isso vejo com bons olhos o projeto americano “Os primeiros mil dias de vida”, que tem como objetivo acompanhar cinco mil mulheres durante o período de gravidez e seus futuros filhos até os dois anos de idade. O desenho experimental vai permitir que os pesquisadores tirem conclusões prospectivas. É diferente do que acontece hoje em dia, quando os pais visitam o médico e têm que lembrar o que aconteceu exatamente no passado, quando os sintomas de alguma doença surgiram, exercício sempre complicado e com bias dos próprios pais. O projeto, com um custo de US$ 75 mil e liderado pela Inova Institute, irá monitorar essas crianças usando aplicativos eletrônicos para coleta massiva de dados relacionados à saúde dos participantes.

Outros projetos semelhantes já existem e estão em andamento, financiados por outras instituições americanas. Porém, o projeto da Inova se diferencia pela intensa coleta de dados genéticos e habilidade de relacionar esses resultados com dados clínicos. Além disso, é intenção do projeto contrastar esses dados com uma matriz de parâmetros ambientais, como estresse e nutrição, coletados no mesmo período. Isso pode ser útil, pois existem diversas correlações anedóticas entre certas doenças humanas e infecções durante a gestação, por exemplo.

Com uma amostra de cinco mil indivíduos, estima-se que alguns irão apresentar deficiências do desenvolvimento, como autismo. Nesses casos, o grupo irá aumentar a coleta de dados, na esperança de identificar fatores ainda desconhecidos que possam estar contribuindo para doenças. Serão coletadas amostras de urina e sangue da mãe e da criança, durante o segundo e terceiro semestre de gestação. Irão providenciar o genoma completo de cada participante junto com uma análise de expressão gênica e marcadores epigenéticos do sangue, procurando por genes que possam estar fugindo do padrão durante o desenvolvimento. Pretender analisar esse padrão a cada seis meses, incluindo amostras dos pais e irmãos quando possível. Além disso, o grupo pretende estudar o comportamento de microRNAs, pequenos fragmentos de RNA com funções regulatórias no genoma.

A capacidade de relacionar tudo isso com a exposição de drogas ou outros fatores ambientais durante a gravidez é uma ferramenta poderosa, pois trará pistas do que estaria contribuindo com eventuais doenças humanas. É uma busca por fatores de risco às cegas e sem bias. Infelizmente, mesmo com uma amostra inicial grande, imagino que o grupo tenha problemas estatísticos ao tentar sugerir fatores de risco com essa ou aquela doença, pois nesse grupo, o número de pacientes com uma determinada condição será relativamente baixo. Acho que a solução nesse caso seria aumentar a participação de pacientes, colaborando com outros grupos através de consórcios internacionais que seguissem protocolos semelhantes em outras partes do mundo.

Possível prevenção do autismo no pré-natal?

qui, 13/02/14
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O espectro autista afeta cerca de 1% da população mundial e é caracterizado por dificuldades na fala, relações sociais e comportamentos estereotipados, comprometendo a qualidade de vida e independência dos pacientes.

Formas sindrômicas de autismo, como a síndrome de Rett ou a síndrome do X-frágil são, em geral, mais severas clinicamente. Porém, estes tipos de autismo resultam em modelos genéticos mais simples que têm facilitado o entendimento do autismo, pois os diversos tipos de autismo possuem um denominador comum. Modelos animais da síndrome do X-frágil recapitulam alguns comportamentos autistas nos camundongos. Da mesma forma, sabe-se que certas drogas, quando administradas em roedores, também induzem comportamentos autistas nesses animais. É o caso do anti-convulsivo valproato de sódio que, quando administrado em ratas grávidas, geram prole com sintomas do autismo. Esses modelos animais, apesar de não refletirem completamente a condição humana, são ferramentas experimentais excelentes, permitindo testar hipóteses que são moralmente inaceitáveis em seres humanos.

Recentemente, foram publicados na revista cientifica “Science” resultados que mostram ser possível prevenir o autismo nesses dois modelos experimentais: em animais previamente tratados com valproato de sódio e em camundongos geneticamente manipulados para representar a síndrome do X-frágil (Tyzio et al, 2014). Nesse trabalho, os pesquisadores trataram as fêmeas grávidas com a droga bumetanida, um tipo de diurético também usado para hipertensão arterial, um dia antes de parir. Filhotes nascidos das mães tratadas não apresentaram distúrbios comportamentais semelhantes ao autismo. Literalmente, conseguiram prevenir o aparecimento desses sintomas ainda na gravidez, sugerindo que o autismo possa ser tratado ainda no útero.

Esses dados parecem dar suporte a um ensaio clínico europeu feito com a bumetanida em 60 crianças autistas de alto-funcionamento, também conhecido como Aspergers, sugerindo uma melhora no quadro clínico (Lemonnier et al, 2012). Essa droga mimetiza os efeitos da oxitocina, um hormônio liberado durante a gravidez que protege o feto, além de facilitar a relação afetiva da mãe com o futuro bebê. Nos roedores, a bumetanida foi responsável por diminuir a alta excitação em certas regiões do cérebro, algo também observado em pacientes autistas, ela agiu como um freio eletroquímico, atuando a comunicação neuronal.

Apesar de animadores, os resultados tem pouca aplicabilidade em humanos. Além de não sabermos se o processo também acontece em humanos, também não temos como diagnosticar o autismo esporádico, a grande maioria dos casos, em fetos para um eventual tratamento durante a gravidez. De qualquer forma, o estudo chama a atenção para esse momento do parto, quando acontecem diversas alterações neuroquímicas no cérebro do feto, importante para o desenvolvimento normal do indivíduo.

Esse estudo, junto com outros semelhantes, soma-se às evidências de que o autismo é tratável, e possivelmente curável. Esse tipo de notícia é que reforça a esperança daqueles que lutam para tornar melhorar a qualidade de vida dos autistas e seus familiares.



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