Testando a evolução humana em laboratório

qua, 23/10/13
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Image Source/AFP/Art Wolfe

A identificação de características celulares e moleculares que diferem os humanos de outros primatas é algo essencial para o entendimento básico da evolução da nossa própria espécie. Com as melhorias da tecnologia de sequenciamento de DNA, descobrimos que somos muito parecidos geneticamente com nossos primos evolutivos, incluindo os chimpanzés, os bonobos e os gorilas. Por outro lado, análises anatômicas e comportamentais mostram o quanto diferentes somos dos outros primatas.

Esse cenário nos mostra que as pequenas variações genéticas entre essas espécies são, portanto,  bem significativas. Cientistas do mundo todo especulam sobre as consequências dessas variações para a fisiologia humana: neurônios humanos devem gastar mais energia, músculos dos chimpanzés são mais fortes, e por aí vai. Porém, até hoje era impossível desenhar experimentos controlados a nível molecular e celular sobre a evolução humana, provando causalidade entre as diferenças genéticas e os fenótipos celulares em células vivas de chimpanzés e bonobos. Parte dessa dificuldade vem das restrições de trabalho com material biológico de primatas, principalmente quando estão ameaçados de extinção.

Quando criança, lembro que gastava horas pensando em questões filosofais como “de onde viemos?” e “quem somos?”. Esse tipo de questionamento sempre me deixou com vontade de estudar evolução humana, principalmente sob a ótica da neurociência. Porém, nunca soube direito como poderia contribuir para essas questões fundamentais até que decidi aplicar técnicas de reprogramação celular para gerar células pluripotentes de outros primatas. Com isso, poderia  obter material biológico de estágios iniciais do desenvolvimento e comparar as espécies. Células da pele de chimpanzés e bonobos foram obtidas do zoológico de San Diego e reprogramadas para um estágio embrionário. O estudo que descrevo abaixo é fruto de uma cooperação internacional e culminou com um trabalho publicado hoje na revista cientifica Nature (Marchetto et al, Nature 2013).

Nesse trabalho, procuramos responder uma questão essencial sobre a origem do homem moderno: por que temos tão pouca variabilidade genética quando comparados aos chimpanzés ou outros primatas? Eu explico melhor. Análises de sequenciamento do genoma humano revelaram que temos pouquíssima diversidade na população. Somos muito parecidos entre nós e o conceito de raça entre os humanos modernos pode ser considerado apenas uma curiosidade geográfica. Do ponto de vista genético, somos todos irmãos. Isso contrasta muito com chimpanzés, por exemplo. Uma simples colônia de chimpanzés na África tem mais variabilidade genética do que a humanidade inteira!

Uma teoria para explicar isso sugere que os humanos modernos passaram por um “gargalo evolucionário”, reduzindo dramaticamente a população humana. Consequentemente, reduzimos a variação genética também. Ou seja, somos todos muito similares uns aos outros porque fomos originados de uma população inicial muito pequena. Esse gargalo pode ter sido consequência de uma infecção viral, mudanças climáticas ou qualquer outro fator que fizesse com que apenas uma pequena porcentagem, com os mais adaptados, sobrevivesse e procriasse.

Essa teoria pode ser confirmada em nosso modelo, contrastando células-tronco induzidas de humanos, chimpanzés e bonobos. A variabilidade gerada pela atividade de elementos móveis no genoma (uma das ferramentas evolutivas para gerar diversidade genética) é significativamente menor em humanos quando comparada com os outros dois primatas. Análises de expressão gênica ajudaram a desvendar o porquê disso. Mecanismos moleculares responsáveis por manter a estabilidade do genoma são mais rigorosos em humanos. Seria como se as células-tronco embrionárias dos outros primatas tolerassem mais insultos na molécula de DNA.

Essa observação não serve apenas para confirmar uma teoria evolucionária antiga, mas também traz insights sobre os mecanismos moleculares envolvidos nesse fenômeno. Vou mais além, nosso dados fazem pensar: será que o fato de os humanos terem menos diversidade genética foi algo positivo pra humanidade moderna? Acho que sim, pelo menos por enquanto. Imagino que a dramática redução de diversidade dos nossos ancestrais nos aproximou empaticamente, favorecendo cooperação entre grupos. Humanos modernos são muito mais tendenciosos a trabalhar junto aos seus semelhantes. No momento após o gargalo, os humanos que restaram eram nada mais do que uma grande família. E ainda somos, o que induziria a cooperação entre nações. Grupos de chimpanzés, ao contrário, são extremamente hostis uns aos outros e não são necessariamente dispostos a trabalhar em conjunto. É uma especulação interessante.

De qualquer forma, nosso trabalho é pioneiro no sentido de criar uma nova ferramenta para estudos de evolução utilizando-se de células-tronco pluripotentes induzidas. Esse modelo já está sendo aplicado ao estudo do desenvolvimento do cérebro humano. Estamos começando a comparar neurônios e glia (células não-neuronais, pouco caracterizadas, mas que possuem funções importantes no cérebro) derivados de humanos e outras espécies, durante a maturação neural. O conhecimento vai além de um mero egocentrismo antropológico. Acredito que resultados desses estudos serão benéficos para doenças humanas, como autismo e esquizofrenia.

Esse trabalho conta com a participação de outros colegas brasileiros. Foi liderado pela Carol Marchetto (atualmente a brasileira mais influente internacionalmente quando o assunto é células-tronco) e com participação dos bioinformatas Apuã Paquola e Roberto Herai, ambos fazendo pós-doutoramento em San Diego. Pois é, um trabalho desse calibre tinha que ter uma participação criativa brasileira muito forte.

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14 Comentários para “Testando a evolução humana em laboratório”

  1. 1
    Eugênia Leão:

    Parabéns, excelente como sempre!

  2. 2
    sergio:

    Muito esclarecedor .

  3. 3
    Claudionir:

    Lamentável… Pra resumir… Fala-se muito mas na realidade é a mais pura tola teoria. Da-se voltas e voltas. O que se descobre de fato (como cìência) encaixa-se mais com o modelo Criacionista do que evolucionista. A começar pela frase ” somos todos muito similares uns aos outros porque fomos originados de uma população inicial muito pequena. (Sim – era somente um casal) Esse gargalo pode ter sido consequência de uma infecção viral, mudanças climáticas ou qualquer outro fator que fizesse com que apenas uma pequena porcentagem, com os mais adaptados, sobrevivesse e procriasse.” Basta olhar para a narração do Dlúvio em Gênesis. Como disse, Lamentável

  4. 4
    valeria:

    Excelente Dr.Alysson, como sempre. Parabens pelo seu esforco, pela sua dedicacao….Parabens a toda sua equipe e que Deus o recompense .Abs

  5. 5
    marcelo:

    a peste bubônica não dizimo 1/3 da população se não me engano… já poderia ter uma miscigenação desde esse principio?
    Muito bom o texto.
    Marcelo

  6. 6
    julio celso souza bomfim:

    Acredito em mais de um “gargalo”.

  7. 7
    invitro:

    Interessante!
    Esse gargalo evolutivo deveria ter ocorrido nos primórdios da humanidade? OU seria mais provavel que tenha sido depois? Sabemos da existência de diversos hominídeos e humanoides no decorrer das eras. Pouco provavel que somente uma espécie tenha passado pelo crivo evolutivo, mesmo com tais gargalos acontecendo mais de uma vez, mesmo que tenham sido de escalas globais. Não sei.
    O fato de nossa empatia ser favorecida pela ‘pressão genetica’ não é muito novo, agora pra mim é novo que a população do mundo TODO seja tão parecido geneticamente. Claro que outras questões de cunho social, economico e cultural são responsáveis pelos atos de barbárie que vemos, MAS não seria algo que poderia ser ‘suprimido’ pela programação genética? Digo, o instinto de sobrevivencia do grupo não deveria sobrepor a irracionalidade do ódio?

    Enfim, continua sendo bem interessante!

  8. 8
    Marcos Costa:

    Esse Claudionir, deve ser um genio com uma visao maior que todo corpo editorial da nature e dos cientistas que fizeram o trabalho! Com certeza um genio indomado !

  9. 9
    Roberto Belisário:

    “Por que temos tão pouca variabilidade genética quando comparados aos chimpanzés ou outros primatas?” -> Eu sempre me encanei com isso. A teoria do gargalo genético é muito interessante. A possibilidade de se testar modelos evolucionários em laboratório é muito auspiciosa. Muito boa pesquisa.

    Mas tenho reservas quanto a este texto. Acho que a palavra “confirmar” foi usada um tanto abusivamente. Modelos não “confirmam” teorias. Apenas uma massa suficientemente grande de confirmações de previsões de resultados experimentais poderia fazê-lo, e mesmo assim de forma aproximada. O que os resultados com as células-tronco poderiam fazer seeria apenas corroborar a teoria, isto é, ser consistentes com ela. O que o abstract do artigo original diz é bem mais matizado: “We propose that differences in L1 mobility may have differentially shaped the genomes of humans and NHPs and could have continuing adaptive significance.”
    https://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature12686.html

    O abstract não fala explicitamente da teoria do gargalo genético. Não tive acesso ao artigo inteiro; porém, do dito nesta matéria, parece-me que os resultados com as células-tronco nem mesmo corroboram a teoria do gargalo. Pois, quando descobrimos que “mecanismos moleculares responsáveis por manter a estabilidade do genoma são mais rigorosos em humanos”, estamos na verdade introduzindo outra causa para a pouca variabilidade, diferente e independente do pequeno tamanho da população inicial.

    Além disso, pode haver muitas outras causas adicionais para a nossa pouca variabilidade, além da maior estabilidade genômica. Uma que não se deve descartar são causas sociais. Por exemplo, grande parte dos seres humanos tem a tendência de odiar e matar aqueles que nos parecem diferentes – e, quando agem em grupo ao invés de individualmente, essa tendência parece atingir um número ainda maior de pessoas. Grande parte do arcabouço legal e jurídico das nossas culturas existe para neutralizar essa tendência.

    Não é tão difícil de cientistas sociais testarem essa possível causa adicional. Uma maneira seria fazer correlações estatísticas envolvendo, de um lado, nível de violência, dentro de grupos de pessoas, contra pessoas de aspecto ou de cultura visivelmente distinta, e, de outro, variabilidade cultural ou de aspecto físico dentro dos mesmos grupos. Pode-se partir da hipótese muito razoável de que uma tendência à violência entre pessoas com pouca variabilidade genética mas de fenótipos diferentes impicaria em uma tendência de violência também entre pessoas com variabilidade maior (que, presumivelmente, se pareceriam mais diferentes ainda).

    O estudo, porém, é extremamente interessante. Muito bom saber dessas portas abertas para os estudos sobre evolução.

  10. 10
    Luiz Rezende:

    Fico orgulhoso.

  11. 11
    bia:

    Muito show o trabalho. Equipe de brasileiros na Califa da orgulho! Parabens ao Dr. Muotri por liderar trabalhos instigastes e criativos. bjos

  12. 12
    thais:

    Uau, demais!!!

  13. 13
    Jivago J:

    Esses “mecanismos moleculares responsáveis por manter a estabilidade do genoma são mais rigorosos em humanos” seria um ganho evolutivo, no sentido de não permitir que se “perca” o que foi tão difícil de conseguir evolutivamente? Ou seja, seria isso um traço que “retarda” a evolução e prefere a manutenção?

  14. 14
    antonio:

    bacana



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