No caminho das células-tronco
No começo, achei inusitado e suspeito o pedido da diretora Daniela Broitman de me incluir no documentário “Marcelo Yuka no caminho das setas”, sobre a trajetória do músico Marcelo Yuka, ex-baterista do Rappa, em sua busca por um tratamento com células-tronco. As setas todas apontavam para as células-tronco. Pensei que poderia entrar numa roubada, com uma certa exposição indesejada. Convenhamos, a posição de cientista é extremamente desconfortável, sinto-me na corda bamba o tempo inteiro.
Se por um lado, trabalho justamente com células-tronco porque acredito em seu potencial regenerativo e as vejo como a grande promessa da medicina, por outro, tudo isso ainda é muito novo. Ao falar empolgado desse potencial, corro o risco de instigar a mídia e a sociedade a acreditar que a cura está logo ali. Se reduzo meu entusiasmo, o risco é de tirar a esperança de milhares de pessoas que se beneficiariam com uma terapia de células-tronco, afastando investimentos e atrasando o progresso da ciência. O balanço é justamente o que me mantém na onda. (Abaixo, Marcelo Yuka e eu)
Yuka, assim como eu, sabe dar valor às ondas, prazer que lhe foi tragicamente confiscado. A lesão na medula o tirou do mar, da batera do Rappa, do banheiro e o fez questionar sobre sua dignidade como ser humano. Lembro que falamos por horas sobre a dignidade do cadeirante, daquilo que nos define como ser humano perante uma sociedade que ainda precisa a aprender a ter respeito pelos deficientes. Nesse aspecto, o Brasil não engatinha, se arrasta, isola seus filhos diferentes.
Por outro lado, a ciência fora do Brasil corre a passos largos. Este ano, tratamentos com células-tronco embrionárias humanas melhoraram a visão de pacientes com um tipo de cegueira degenerativa, sem efeitos colaterais. Parece milagre, mas não, é ciência mesmo. A tecnologia foi aplicada em humanos em tempo recorde. Essas células foram descritas pela primeira vez em 1998. Em geral, leva-se o dobro ou mais de tempo para um tratamento desse tipo ser comprovado clinicamente.
Este ano, também houve avanços importantes nas pesquisas de lesões na medula. De forma irônica, o cientista que liderou o estudo mais impressionante até o momento é um cadeirante, Dr. Paul Lu, meu colega na Universidade da Califórnia, em San Diego. O que aprendemos ao longo dos anos é que a região lesionada da medula cria um ambiente hostil, impedindo a regeneração neuronal. Outros tipos celulares se aproveitam dessa região altamente inflamada para se proliferar, mas não os neurônios.
Regenerar neurônios lesados é muito difícil, por isso se aposta no transplante de células-tronco. Essas células fariam o que o corpo não consegue fazer: produzir novos neurônios que reestabeleçam a comunicação entre o cérebro e os membros. Mas não sabíamos quais as condições ideais do transplante, muito menos quais células-tronco usar (células-tronco adultas, retiradas de fetos abortados ou mesmo do bulbo olfatório de pessoas adultas).
Todas elas são menos potentes que as células-tronco embrionárias e apenas contribuíram para uma melhora muito sutil. Paul Lu apostou nas células-tronco embrionárias, junto com um coquetel de fatores anti-inflamatórios, aplicados diretamente na região da lesão. Os resultados foram impressionantes e sacudiram os cientistas da área. Testes em humanos devem começar em breve.
Esse tipo de trabalho também ajuda a desmoralizar o mercado negro de tratamentos duvidosos com células-tronco. Alguns centros de pesquisa têm se aproveitado dessa situação para oferecer tratamentos a preços exorbitantes. Uns se baseiam em resultados preliminares com roedores, mostrando vídeos de ratinhos paralisados que voltam a caminhar. Leitor, a ciência já curou lesão medular em camundongos e ratos diversas vezes! Mas isso não deve ser visto como prova definitiva de que funciona em humanos.
A capacidade de autorregeneração de roedores é altíssima. Além disso, esses animais são pequenos, e melhoras sutis produzidas por um transplante celular podem levar a resultados dramáticos. Infelizmente, quando esses tratamentos são repetidos em animais de grande porte, como primatas e suínos, mostram o quão ineficazes esses protocolos realmente são.
As agências de fomento governamentais dos EUA já perceberam isso e têm reduzido o financiamento para testes em roedores, além de dar mais suporte a experimentos em animais cujos tamanho e fisiologia da medula espinhal sejam mais próximos aos do ser humano. Pode ser mais caro fazer isso a principio, mas evitam-se maiores gastos e, principalmente, tempo com projetos sem aplicação terapêutica.
Minha admiração pelo Yuka e pela Daniela cresceu junto com esse projeto. Meus medos iniciais se desmistificaram, e acho que a mensagem de paz que esses dois trazem é muito positiva para o Brasil. Faz tempo que não falo com o Yuka, mas sei que sua posição amadureceu. As setas continuam apontando para as células-tronco. Ele sabe que o caminho é longo, vagaroso, mas que cada passo conquistado traz mais esperança. Por essa causa, vale lutar.