No caminho das células-tronco

sáb, 15/12/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

No começo, achei inusitado e suspeito o pedido da diretora Daniela Broitman de me incluir no documentário “Marcelo Yuka no caminho das setas”, sobre a trajetória do músico Marcelo Yuka, ex-baterista do Rappa, em sua busca por um tratamento com células-tronco. As setas todas apontavam para as células-tronco. Pensei que poderia entrar numa roubada, com uma certa exposição indesejada. Convenhamos, a posição de cientista é extremamente desconfortável, sinto-me na corda bamba o tempo inteiro.

Se por um lado, trabalho justamente com células-tronco porque acredito em seu potencial regenerativo e as vejo como a grande promessa da medicina, por outro, tudo isso ainda é muito novo. Ao falar empolgado desse potencial, corro o risco de instigar a mídia e a sociedade a acreditar que a cura está logo ali. Se reduzo meu entusiasmo, o risco é de tirar a esperança de milhares de pessoas que se beneficiariam com uma terapia de células-tronco, afastando investimentos e atrasando o progresso da ciência. O balanço é justamente o que me mantém na onda. (Abaixo, Marcelo Yuka e eu)

Yuka, assim como eu, sabe dar valor às ondas, prazer que lhe foi tragicamente confiscado. A lesão na medula o tirou do mar, da batera do Rappa, do banheiro e o fez questionar sobre sua dignidade como ser humano. Lembro que falamos por horas sobre a dignidade do cadeirante, daquilo que nos define como ser humano perante uma sociedade que ainda precisa a aprender a ter respeito pelos deficientes. Nesse aspecto, o Brasil não engatinha, se arrasta, isola seus filhos diferentes.

Por outro lado, a ciência fora do Brasil corre a passos largos. Este ano, tratamentos com células-tronco embrionárias humanas melhoraram a visão de pacientes com um tipo de cegueira degenerativa, sem efeitos colaterais. Parece milagre, mas não, é ciência mesmo. A tecnologia foi aplicada em humanos em tempo recorde. Essas células foram descritas pela primeira vez em 1998. Em geral, leva-se o dobro ou mais de tempo para um tratamento desse tipo ser comprovado clinicamente.

Este ano, também houve avanços importantes nas pesquisas de lesões na medula. De forma irônica, o cientista que liderou o estudo mais impressionante até o momento é um cadeirante, Dr. Paul Lu, meu colega na Universidade da Califórnia, em San Diego. O que aprendemos ao longo dos anos é que a região lesionada da medula cria um ambiente hostil, impedindo a regeneração neuronal. Outros tipos celulares se aproveitam dessa região altamente inflamada para se proliferar, mas não os neurônios.

Regenerar neurônios lesados é muito difícil, por isso se aposta no transplante de células-tronco. Essas células fariam o que o corpo não consegue fazer: produzir novos neurônios que reestabeleçam a comunicação entre o cérebro e os membros. Mas não sabíamos quais as condições ideais do transplante, muito menos quais células-tronco usar (células-tronco adultas, retiradas de fetos abortados ou mesmo do bulbo olfatório de pessoas adultas).

Todas elas são menos potentes que as células-tronco embrionárias e apenas contribuíram para uma melhora muito sutil. Paul Lu apostou nas células-tronco embrionárias, junto com um coquetel de fatores anti-inflamatórios, aplicados diretamente na região da lesão. Os resultados foram impressionantes e sacudiram os cientistas da área. Testes em humanos devem começar em breve.

Esse tipo de trabalho também ajuda a desmoralizar o mercado negro de tratamentos duvidosos com células-tronco. Alguns centros de pesquisa têm se aproveitado dessa situação para oferecer tratamentos a preços exorbitantes. Uns se baseiam em resultados preliminares com roedores, mostrando vídeos de ratinhos paralisados que voltam a caminhar. Leitor, a ciência já curou lesão medular em camundongos e ratos diversas vezes! Mas isso não deve ser visto como prova definitiva de que funciona em humanos.

A capacidade de autorregeneração de roedores é altíssima. Além disso, esses animais são pequenos, e melhoras sutis produzidas por um transplante celular podem levar a resultados dramáticos. Infelizmente, quando esses tratamentos são repetidos em animais de grande porte, como primatas e suínos, mostram o quão ineficazes esses protocolos realmente são.

As agências de fomento governamentais dos EUA já perceberam isso e têm reduzido o financiamento para testes em roedores, além de dar mais suporte a experimentos em animais cujos tamanho e fisiologia da medula espinhal sejam mais próximos aos do ser humano. Pode ser mais caro fazer isso a principio, mas evitam-se maiores gastos e, principalmente, tempo com projetos sem aplicação terapêutica.

Minha admiração pelo Yuka e pela Daniela cresceu junto com esse projeto. Meus medos iniciais se desmistificaram, e acho que a mensagem de paz que esses dois trazem é muito positiva para o Brasil. Faz tempo que não falo com o Yuka, mas sei que sua posição amadureceu. As setas continuam apontando para as células-tronco. Ele sabe que o caminho é longo, vagaroso, mas que cada passo conquistado traz mais esperança. Por essa causa, vale lutar.

Guerra intestinal

qua, 05/12/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Toda semana, durante um dourado período da minha infância, um simpático nipo-brasileiro, vulgarmente chamado pelas crianças da rua de “japa do Yakult”, parava com sua perua invocada em frente de casa para oferecer o famoso complemento alimentar. Foi meu primeiro professor de microbiologia. Ouvindo o japa, aprendi que a bebida continha os tais lactobacilos vivos, que auxiliam na dinâmica e equilíbrio gastrointestinal.

Saber que nosso intestino era uma república composta por trilhões de microrganismos que contribuem diariamente para nossa fisiologia e bem estar foi uma grande surpresa. E como toda grande república, a perda do equilíbrio pode ter consequências graves. O intestino dos mamíferos é um ambiente altamente complexo e competitivo, onde os residentes estão em constante busca por alimento. Por isso, a colonização por patógenos invasores requer movimentos precisos e coordenados, como a luta por nutrientes, competição com bactérias residentes e ativação de genes virulentos. O grupo da brasileira Vanessa Sperandio, da Universidade do Texas Southwestern em Dallas, EUA, estuda exatamente esse tipo de guerra e colonização intestinal. Recentemente, Vanessa publicou na famosa revista “Nature” um interessante mecanismo molecular de como uma variação da bactéria Escherichia coli consegue se alojar no intestino. Essa E.coli é a maior causadora de lesões intestinais e diarreias do mundo, daí a importância em entender como ela consegue nos infectar.

Bactérias invasoras como esse tipo de E.coli precisam ativar um sistema interno de genes que coordenam uma seringa molecular. Essa seringa injeta fatores específicos na célula hospedeira, induzindo a formação de uma estrutura em forma de pedestal. Esse pedestal – ou cálice – que a célula forma após o contato com a bactéria invasora, permite o acoplamento ao epitélio do intestino do organismo e futura colonização. Bactérias presentes no lúmen intestinal usam açúcar do muco como alimentação e o excesso de açúcares processados dispersos no meio são capturados pelas bactérias invasoras como fonte de energia. Felizmente, esse açúcar extra é utilizado por bactérias invasoras como alimento e inibe o sistema genético de ativação da seringa molecular, impedindo a formação do pedestal. Passado o lúmen, as bactérias invasoras não encontram mais açúcares disponíveis, morrem de fome e são eliminadas do organismo. É um mecanismo de defesa sofisticado.

Pois bem, o grupo da Vanessa descobriu que esse tipo de E.coli adaptou esse comportamento de defesa do hospedeiro a seu favor. Basicamente, essa E.coli conseguiu fazer com que a seringa molecular possa ser ativada por hormônios produzidos pelo próprio organismo, como a adrenalina, abundantes justamente na saída do lúmen intestinal. Assim, quando as invasoras estariam prontas para morrer, conseguem iniciar o processo de colonização pelo acoplamento as células do intestino. Esse sistema que dribla o mecanismo de defesa intestinal é relativamente recente na evolução e, por isso mesmo, não é utilizado por outras bactérias. Sorte nossa. Sabendo-se agora como essa E.coli consegue nos infectar, fica mais fácil para desenhar mecanismos de prevenção, contribuindo para saúde humana.

Vanessa formou-se pela Unicamp é um desses casos de brasileiros que estabelecem uma carreira excepcional no exterior. Semelhante aos patógenos que estuda, Vanessa tem que lutar por financiamento num ambiente altamente competitivo como o meio acadêmico dos EUA. Conseguiu se estabelecer e tem contribuído com trabalhos significativos, publicados em revistas de alto impacto. Não cheguei a conhecê-la pessoalmente, pois quando comecei a trabalhar no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, ela já estava de saída. De qualquer forma, é interessante notar como o Brasil tem produzido alunos que simplesmente decolam em carreiras internacionais. Eu tenho acompanhado o trabalho de alguns ao longo dos anos, inclusive escrevendo sobre eles no Espiral. Tenho certeza que outros virão.



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