Reprogramação celular parecia ficção científica, mas virou realidade

ter, 09/10/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Transformar um tipo de célula em outro, como pele em neurônio, parecia coisa de ficção cientifica. Mais incrível ainda era a possibilidade de transformar uma célula já madura numa célula-tronco, ainda não especializada. Essa plasticidade, ou capacidade adaptativa, da célula esbarrava em um dos grandes dogmas da biologia: de que, durante o desenvolvimento, as células do embrião vão se especializando em outros tipos de forma irreversível, formando os tecidos do individuo adulto.

Pois é, esse dogma caiu e, este ano, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina reconheceu dois pioneiros da plasticidade celular, John B. Gurdon e Shinya Yamanaka. Segue abaixo minha perspectiva dessa história que está apenas começando e promete ser a grande vedete da medicina no futuro.

(Na foto acima, Gurdon e sua cabeleira impecável. Trabalho com óvulos de sapos quebrou dogma da biologia)

O dogma da identidade irreversível das células começou a despencar com a pesquisa do inglês Gurdon, em 1962, que mostrou ser possível reprogramar células adultas para um estágio embrionário, pela transferência do núcleo em um ambiente propício. Gurdon, um típico Lord inglês, de fala suave e cabeleira farta, criou o ambiente utilizando óvulos de sapos, grandes, fáceis de manusear. A técnica levava o nome de clonagem celular. A observação abriu as portas da imaginação humana e o feito foi replicado em diversas espécies.

Veio então a ovelha Dolly, pelas mãos de Ian Wilmut, mostrando que a clonagem funcionava também em organismos mais complexos. Veio depois o veterinário sul-coreano Hwang Woo-suk, que disse ter feito o mesmo com células humanas. Era fraude. Os resultados “fabricados” foram publicados em 2005 na revista Science e depois retratados. Tornou-se dos maiores escândalos na área de células-tronco. Além disso, o episódio infame trouxe um alerta sobre a ética nesse campo de pesquisa, pois Hwang havia usado óvulos “doados” de estudantes em seu laboratório.

A dificuldade de conseguir óvulos humanos para pesquisa, somada à crescente atmosfera anticélulas-tronco embrionárias humanas promovida por setores mais conservadores da sociedade, emperrou o progresso da ciência nesse campo por alguns anos.

(Abaixo, trecho da revista “Época” de maio 2007, quando o foco da discussão no Brasil ainda eram as células-tronco embrionárias)

Em paralelo à carreira de Gurdon, o frustrado ortopedista japonês Shinya Yamanaka decidiu seguir a carreia acadêmica, abandonando a medicina. Sua frustração aumentou ainda mais com um período de pós-doutorado nos EUA que não lhe trouxe a satisfação desejada. Yamanaka voltou ao Japão e colaborou com um dos maiores centros de sequenciamento do mundo, o Riken.

Esse grupo estava interessado em estudar quais genes seriam diferentemente regulados em células-tronco embrionárias e em células de tecidos adultos. Ele teve acesso privilegiado à lista de genes que eram ativos unicamente em células-tronco embrionárias. Foi aí que teve a ideia de forçar a atividade desses genes em células somáticas da pele, por exemplo, buscando a reprogramação genética.

Foi literalmente um trabalho de japonês! Yamanaka e seu aluno, K. Takahashi, fizerem o experimento buscando sistematicamente a combinação de genes que levaria à reversão celular. Mais tarde, o próprio Yamanaka reconheceria que esse tipo de experimento jamais seria executado por um estudante não-asiático, em geral mais avessos a experimentos repetitivos e demorados – uma clara demonstração de como a cultura influencia no desenvolvimento da ciência. Apesar da descrença de feras da comunidade científica de que a estratégia funcionaria (por ser simples demais!), Yamanaka prosseguiu e publicou seus achados revolucionários em 2006, em um elegante trabalho na famosa revista “Cell”.

(Abaixo, o simpático Shinya: de ortopedista medíocre a prêmio Nobel em tempo recorde)

Os resultados não repercutiram de imediato. Como os experimentos foram feitos em camundongos, restava saber se o mesmo seria válido para humanos. O próprio Yamanaka desconfiava que talvez fosse preciso uma combinação de diferente de genes, específicos para a espécie humana. Além disso, as implicações da reprogramação não eram óbvias. Porém, estava claro para quem acompanhava a história toda que seria uma questão de tempo até descobrir a combinação exata em humanos. Em entrevista para a revista “Época” em maio de 2007 sobre revoluções na ciência, o pesquisador disse que a reprogramação celular iria dominar completamente a pesquisa em células-tronco. Opinião não compartilhada pelos colegas brasileiros naquele momento, que ainda focavam a discussão no uso de células-tronco embrionárias humanas versus células-tronco adultas.

Foi em dezembro de 2007 que Yamanaka e colegas publicaram um outro artigo na “Cell”, mostrando que a reprogramação funcionava em humanos, com os mesmos fatores que deram certo em camundongos. O impacto agora fora imediato, o fenômeno era altamente reprodutível e foi prontamente replicado por outros laboratórios. A facilidade da técnica foi democrática. Qualquer laboratório do mundo podia reprogramar células, gerando grande excitação na área. Agora seria possível cultivar células-tronco semelhantes às embrionárias, mas oriundas de um pedacinho da pele de um indivíduo adulto. Com elas, podia-se gerar um espectro enorme de células especializadas, contendo o mesmo genoma da pessoa ou do paciente. Essas células, em teoria, não seriam rejeitadas em um futuro transplante celular e poderiam substituir as células-tronco embrionárias derivadas de embriões humanos, pondo um fim na discussão ética.

Talvez a motivação de Yamanaka tenha sido inicialmente o transplante celular. Porém, a aplicação imediata da reprogramação celular aconteceu de forma diferente. Ao capturar o genoma de pacientes em um estágio embrionário, cientistas poderiam agora criar modelos de doenças humanas em laboratório. Acompanhar o desenvolvimento embrionário humano em condições controladas era praticamente impossível, e muito do que sabemos a respeito de doenças vinha de modelos animais (quando existiam).

Um exemplo disso foi descrito pelo meu grupo em 2010, quando mostramos que a técnica de reprogramação podia trazer insights para uma forma sindrômica do espectro autista. Revelamos defeitos em sinapses e mostramos a reversibilidade da condição em neurônios humanos, quebrando outro dogma, agora da neurociência. O trabalho foi publicado na revista “Cell” e contribuiu para coroar a tecnologia de Yamanaka, abrindo perspectivas de modelagem para diversas outras doenças humanas e acelerando a descoberta de novos medicamentos. A tecnologia ecoou também no Brasil. Já no começo de 2011, o trabalho pioneiro da dra. Patrícia Beltrão-Braga mostrou ser possível reprogramar células extraídas da polpa de dentes de leite. Os participantes desse trabalho foram provavelmente os primeiros brasileiros a terem células reprogramadas – ponto para a ciência brasileira.

Isso tudo mostra que a simplicidade do método de Yamanaka foi o fator responsável pela disseminação rápida dessa tecnologia, trazendo resultados imediatos para a pesquisa básica. Efeito semelhante aconteceu com o Nobel de Medicina dedicado ao processo de interferência do RNA, em 2006.

Muitos se questionaram se o prêmio de 2012 não deveria ser divido com Ian Wilmut, cuja equipe clonou a ovelha Dolly, ou James Thompson, o primeiro a cultivar células-tronco embrionárias humanas em laboratório – mas acredito que eles fizeram apenas contribuições incrementais. Outro que deve ter ficado com um gostinho amargo foi o pesquisador alemão radicado em Boston (EUA) Rudolf Jaenisch. Apesar da enorme contribuição de Jaenisch para as pesquisas com células-tronco e, mais recentement, para elucidar como a reprogramação funciona a nível molecular, sua participação não deixa de ser igualmente incremental. Ex-alunos de Jaenisch, em atividades patéticas, até tentaram ressaltar a importância desse grupo, talvez com o intuito de chamar a atenção do Comitê do Nobel. Além disso, acredito que a publicação de uma carta aberta ano passado, assinada por Yamanaka e outros pesquisadores, sobre uma possível dominância de pesquisadores de Boston em certas revistas cientificas, afetou a já remota chance de Jaenisch.

O impacto real da descoberta de reprogramação celular ainda está por vir. Pesquisadores já estão criando formas mais eficientes e seguras de reprogramar células adultas, e o sonho de regeneração usando transplante de células-tronco do próprio paciente fica a cada dia mais próximo. A técnica está sendo usada para modelagem de diversas doenças humanas e vai, com certeza, trazer novas oportunidades terapêuticas. Além disso, o uso menos convencional da reprogramação celular, como para a preservação de espécies em extinção ou estudos evolucionários, estão em andamento. E o emprego dessa técnica parece estar limitado apenas pela criatividade humana.

Um passo para curar lesões da medula

sáb, 06/10/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O rapaz da foto ao lado não é apenas mais um cadeirante. É o cientista Paul Lu, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), que assina um recente trabalho cientifico, talvez o de maior impacto na área de regeneração de lesões da medula espinhal, publicado neste ano pela revista “Cell”.

Encontrei-me com Paul a primeira vez quando fazia uma entrevista para uma vaga na UCSD em 2001. Paul já trabalhava com o grupo de Mark Tuszynski, um dos mais feras na área de regeneração de lesões medular usando células-tronco. Paul entrara para o grupo de Mark após ter sido atropelado por um carro em uma visita a San Diego. A mudança de estilo de vida fez com que a motivação de Paul se direcionasse para a grande promessa da medicina regenerativa: o uso de células-tronco como fonte de reposição dos neurônios degenerados durante acidentes desse tipo.

O trauma da medula espinhal é basicamente uma lesão na medula espinhal, diretamente na medula ou indiretamente através de lesões em ossos, tecidos ou vasos sanguíneos adjacentes. Quanto mais perto do pescoço, maior o impacto da lesão, atingindo membros superiores e inferiores. Pelo que sabemos através de modelos animais, assim que a lesão atinge a medula espinhal, temos o rompimento dos nervos que atravessam a região, levando à desconexão dos membros com o cérebro, resultando em paralisia. Esse processo é rápido, acontece em dias. Além disso, o sangramento, o acúmulo de líquidos e o inchaço podem ocorrer dentro ou fora da medula espinhal – mas dentro do canal espinhal. O acúmulo de sangue ou líquidos pode comprimir a medula espinhal e lesioná-la, piorando ainda mais o quadro. Como se não bastasse, a morte dos neurônios estimula um processo inflamatório que impede o crescimento de novos neurônios na região. Esse ambiente hostil tem sido o grande impedimento do uso de células-tronco como alternativa terapêutica, pois as células transplantadas para a região da lesão não conseguem se especializar em neurônios funcionais.

Estudos anteriores haviam se utilizado de células-tronco neurais adultas, ou seja, isoladas diretamente do sistema nervoso, como fonte de células para transplante. Essas células podem ser encontradas em biópsia de tecidos olfativos ou de cérebro de fetos abortados e doados para pesquisa. A grande sacada de Paul foi utilizar células embrionárias, com um poder de diferenciação maior. Paul utilizou células extraídas do cérebro embrionário de animais e as transplantou em ratos que tiveram a medula espinhal totalmente lesada. Ele observou que, ao contrário das células-tronco adultas, as embrionárias conseguiam se diferenciar de forma muito eficiente, gerando neurônios que conseguiram atravessar a lesão e estender processos neuronais, conectando-se de forma funcional com o outro lado da lesão, recuperando a transmissão do impulso nervoso pela medula. Os animais transplantados recuperaram a sensibilidade e passaram a se movimentar depois de um tempo.

Para provar que o sistema funcionaria em humanos, Paul decidiu usar células-tronco embrionárias humanas. Os resultados foram ainda mais impressionantes. A plasticidade das células humanas não deixou a desejar e também fez os animais recuperarem a atividade motora. As imagens do trabalho mostram que o numero de neurônios formados após o transplante é muito superior ao que era conseguido com células-tronco adultas. Isso sugere que a capacidade de se especializar em neurônios, mesmo num ambiente não muito receptivo, é superior quando a célula-tronco é mais imatura. Provavelmente, essas células seriam as melhores para tratamento de lesões da medula em humanos. Obviamente, um cuidado a ser tomado é a ocorrência de teratomas, ou tumores de origem embrionária, que podem se originar a partir de células-tronco não especializadas que, por ventura, sobrevivam após o transplante. De qualquer forma, esse tipo de efeito colateral pode ser controlado com drogas que atingem apenas as células-tronco imaturas, em divisão.

O trabalho de Paul dá um passo importante para a medicina regenerativa. Identifica a melhor fonte de células-tronco e as condições ideais para esse tipo de transplante. Os ensaios clínicos em humanos deverão começar em breve. Vale a pena contrastar esse tipo de estratégia com a que foi proposta pela empresa californiana Geron um tempo atrás. A Geron apostava em transplante de células neurais precursoras capazes de produzir mielina – a barreira de gordura que protege os neurônios. O objetivo era o de evitar a degeneração dos neurônios sobreviventes, e não a regeneração da lesão. Com resultados pré-clínicos muito menos claros que os descritos por Paul, a Geron conseguiu a aprovação do FDA para testes em humanos, mas a empresa acabou falindo antes de concluir esses ensaios. Baseando-se nos dados do Paul, é possível prever que os transplantes da Geron em humanos não seriam bem sucedidos.

A primeira descrição de uma lesão medular da espinha e sua consequência para um ser humano está num papiro egípcio com mais de 3,5 mil anos de idade. O documento descreve claramente os sintomas clínicos e os efeitos traumáticos de uma tetraplegia. Também diz que esse tipo de lesão é incurável. É irônico imaginar que tanto tempo depois, um passo importante para o tratamento e eventual cura de lesões desse tipo venha justamente de um cadeirante.



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