De olho no futuro
Sempre fui fascinado por olhos, estruturas extremamente complexas que transmitem informações visuais do mundo exterior diretamente ao cérebro. A captura de cada momento da vida é única, individual. Mesmo olhos que não enxergam, choram e transmitem emoções. Para os românticos, olhos são as janelas da alma.
Lembro bem aquela famosa cena do clássico Blade Runner, de 1982, quando os replicantes em busca de respostas para longevidade se encontram com o cientista responsável pela fábrica de olhos. “Eu só faço olhos”, explica o velho oriental numa situação pouco confortável, completando que o processo requer boa dose de design genético.
De fato, os experimentos clássicos do neurocientista Nicholas Dale e da bióloga experimental Elizabeth Jones demonstraram claramente a contribuição genética durante o processo de desenvolvimento do olho em um modelo de estudo com sapos. Descobriram genes envolvidos na formação de olhos quando acionados nos estágios embrionários em células que normalmente levariam ao desenvolvimento da cabeça, criando olhos adicionais nos indivíduos testes.
Mas o processo da geração de olhos requer também pistas químicas, fatores ambientais que, junto com o código genético, auxiliam as células-tronco embrionárias a se especializarem em olhos durante o desenvolvimento. O mais fascinante disso tudo é estamos conseguindo aplicar o conhecimento gerado em modelos experimentais mais simples, como sapos, peixes e moscas-da-fruta, em organismos complexos como mamíferos. Nessa área, destaco o trabalho do japonês Yoshiki Sasai.
Sasai surpreendeu o mundo ao publicar ano passado na famosa revista cientifica “Nature” uma receita para fazer olhos em cultura, em laboratório, usando células-tronco embrionárias. O trabalho é mais do que um exemplo de engenharia de tecidos, ataca uma das questões mais fundamentais da biologia: como algumas células-tronco do embrião se organizam para formar estruturas complexas? O time de Sasai se aproveita de dados gerados de outros organismos para testá-los em células-tronco embrionárias de camundongos ou humanas. É pura tentativa e erro.
Para chegar nesse modelo, Sasai teve que ter um pouco de sensibilidade e perspicácia. Imaginou que o olho não se desenvolve normalmente em cima de uma placa de plástico, como os modelos atuais de laboratório. Por isso, decidiu deixar as células-tronco flutuando em contato com um coquetel de agentes químicos para que elas formassem “corpos embrionários”, o que favorece o aparecimento de estruturas à retina. Essa simples etapa do processo levou cinco anos para ser otimizada. Após algumas semanas em suspensão, as estruturas ficavam aparentes e precisavam ser retiradas do restante de outras células não diferenciadas. Sasai faz isso através de uma microcirurgia embaixo de um microscópio. As estruturas então estão isoladas e prontas para amadurecerem em estufas que simulam as condições ideais do organismo vivo. O passo final foi induzir a retina a autoinvaginar – se dobrar – para dar origem ao copo ocular. A forma que o grupo encontrou de estimular essa invaginação foi através de uma pequena lesão com um pulso de laser. Resta saber se essas estruturas conseguem persistir vivas em cultura tempo suficiente para completar a formação responder à luz. O processo todo foi filmado e modelado por computador. Partes do protocolo podem ser visualizadas aqui.
A aplicação medicina é óbvia. As células que recebem a luz podem ser reconstruídas em laboratório para transplantes, o que pode curar diversos tipos de cegueira. Hoje, as estruturas oculares geradas em laboratório ainda não estão prontas para serem transplantadas. Sabe-se muito pouco sobre como fazer a conexão nervosa entre retina e cérebro. Acredito que a técnica seja muito mais promissora como fonte de tecido para restauração de retinas danificadas em condições como degeneração macular ou retinite pigmentosa. Vale notar que isso já foi conseguido com sucesso em modelos roedores experimentais. Já as doenças que afetam as vias neurais na retina, como o glaucoma, podem ser mais difíceis de curar.
Acredito que as implicações desse tipo de trabalho sejam mais abrangentes do que o uso clinico. Os resultados sugerem que as células-tronco embrionárias possuam a informação necessária para formar tecidos complexos espontaneamente, basta saber como induzi-las. É o começo de uma era importante para a pesquisa com células-tronco.