Como vamos tratar as doenças mentais?

seg, 09/07/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Caso não tenham percebido, vivemos uma crise na medicina experimental. Medicamentos desenvolvidos nos últimos 60 anos são prescritos amplamente pelos médicos, mas causam pouco efeito nos pacientes. O mais surpreendente é que, mesmo com essa janela de oportunidade, testemunhamos uma diminuição dramática de interesse da indústria farmacêutica e biotecnológica para o desenvolvimento de novos fármacos.

Enquanto as intervenções psicossociais, incluindo novas tecnologias como o uso de tablets, mostram-se extremamente promissoras, a ausência de um plano estratégico para o desenvolvimento de medicamentos mais eficientes é preocupante. A situação é ainda mais grave porque grande parte da população humana é afetada por doenças mentais, causando sérios problemas financeiros para familiares e para o governo. Tome por exemplo o caso do autismo, que afeta cerca de 1% das crianças norte-americanas: o custo para o governo durante a vida de um único indivíduo autista beira os US$ 3,2 milhões (quase R$ 6,5 milhões). Isso representa um custo anual de US$ 35 bilhões (quase R$ 71 bilhões) para a sociedade americana. Números semelhantes servem para a esquizofrenia e quase o triplo do custo vai para o mal de Alzheimer.

Mas o que pode ser feito então?

A descoberta e desenvolvimento de novos medicamentos é um processo lento, caro e de alto risco. Dados recentes sugerem que para cada nova droga que entra no mercado, foram gastos, em média, mais de US$ 2 bilhões de dólares (cerca de R$ 4 bilhões) durante um período de 15 anos. Além disso, o processo falha em mais de 95% das vezes (referências sobre o cálculo desses números estão abaixo). Dá para entender por que a indústria tem fugido dessa área. O gráfico abaixo dá uma dimensão dos riscos e dos custos com que os pesquisadores arcam:

Os governos podem investir mais em novos medicamentos? Os governos têm o direito de não investir mais em novos medicamentos? Ignorar essa questão é simplesmente riscar a palavra “esperança” do dicionário dos pacientes que não respondem aos medicamentos atuais. Na ausência de suporte do governo, resta a solidariedade humana. Enquanto nos EUA o hábito cultural da doação de dinheiro para pesquisas é presente em todas as esferas sociais, em outros países, como o nosso, a filantropia é ainda incipiente. Apesar de estarmos na era do “crowdfunding”, não temos motivos para esperar que a moda pegue para fins científicos.

Uma ideia interessante para acelerar a entrada de novas drogas no mercado é melhorar o fluxo, desde a descoberta até o uso clínico. Obviamente, não temos como acelerar o teste rigoroso e cauteloso em seres humanos, mas podemos acelerar o processo que leva as drogas a serem testadas. Nos EUA, algumas estratégias estão sendo estudadas. Entre elas, destaco o “reposicionamento de drogas”, ou seja, pegar uma droga que falhou em estágios clínicos para uma doença “x” e testá-la contra uma doença “y”. Remédios que já foram testados em humanos e não serviram para o Alzheimer podem ser úteis para o autismo, por exemplo. Essa realocação de medicamentos permite encurtar em alguns anos todo o processo.

Mas não adianta ter drogas disponíveis para testes se não sabemos exatamente como elas funcionam. Os antidepressivos atuais são um bom exemplo. Usamos antidepressivos há três décadas, mas eles não funcionam para todos pacientes. Melhores tratamentos requerem uma melhor ciência, um melhor conhecimento da biologia por trás dos sintomas. É através da compreensão dos mecanismos celulares e moleculares que são desenvolvidas novas terapias contra o câncer a todo o momento. Claramente, isso não tem sido aplicado para doenças mentais e, portanto, não existem novas terapias para autismo ou depressão. Por quê? Possivelmente porque estamos usando os modelos errados. Testam-se novas drogas contra o câncer em células tumorais retiradas dos próprios pacientes. Se a substância bloqueia o crescimento dessas células em laboratório, possivelmente irá funcionar da mesma forma no organismo. Se der negativo, testa-se outra.

 

A lógica funcionaria também para doenças mentais. No entanto, não havia como isolar neurônios dos pacientes em laboratório e tudo era feito em modelos animais, em camundongos, que são extremamente caros. Não existem roedores com Alzheimer, esquizofrênicos ou autistas. A indústria farmacêutica sofreu um rombo financeiro enorme por ter apostado alto em modelos animais, muitas inclusive faliram. Não quero negar a contribuição de modelos animais para o entendimento de doenças humanas – esses modelos são e vão continuar sendo elementos críticos para o progresso da ciência. Mas os modelos animais não são consistentes para prever como os compostos vão funcionar em seres humanos. Neurônios humanos são, com certeza, mais complexos. Por isso mesmo, aposto em novos modelos produzidos a partir da reprogramação celular, gerando redes neurais derivadas de pacientes em quantidades suficientes para testes em laboratório. Mesmo com as limitações da reprogramação genética – afinal, não deixa de ser um modelo humano in vitro –, acredito que seja o que mais se aproxima do sistema nervoso do paciente. O sucesso dessa nova forma de encarar a busca de novos fármacos vai depender de centros criados a partir de consórcios colaborativos e multidisciplinares entre cientistas e a comunidade clínica – acelerando os testes em humanos –, além da parceria com empresas privadas ou filantrópicas – cobrindo as inconsistências governamentais.

Essas ideias fazem parte do que entendemos como medicina experimental, portanto ainda é um experimento em progresso. Considerando a taxa de sucesso atual – menos de 5% das drogas desenvolvidas vêm a funcionar em humanos –, acho que essas ideias não são tão caras e valeria o risco. Se não funcionarem, saberemos que esse não é o caminho e economizaremos para investir em outras opções. Na minha visão, essas são alternativas razoáveis e podem destacar mundialmente países emergentes, como o Brasil, como líderes de um novo modelo para o tratamento de doenças mentais.

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7 Comentários para “Como vamos tratar as doenças mentais?”

  1. 1
    Tati:

    Remédios não são a única opção e nem acredito que sejam o ponto mais importante de um processo terapêutico. De fato, nos casos mais severos onde a doença é mais forte que a capacidade cognitiva do indivíduo então, realmente, um medicamento proporciona uma vida de maior qualidade. Mas terapias centradas no apoio psicoemocional e trabalho corporal e principalmente uma desmistificação da doença mental, que ainda encerra um estigma, pesado dificulta todo o tratamento e aumenta a angústia do paciente. E depois querem tratar essa angústia com remédios! A mente dos profissionais de saúde, da administração pública e da sociedade deve evoluir e os centros de tratamento (CAPS) devem avançar com os atendimentos.

  2. 2
    Luís Rogério Peres Vargas:

    O Professor Alysson Muotri merece nosso reconhecimento pelo seu pioneirismo e rigor científico. Em tempos em que se destaca tanto a dignidade da pessoa humana como princípio nuclear a ser tutelado, a apatia dos governos quanto ao investimento no desenvolvimento de novos fármacos se traduz em gritante exemplo de descaso com o ser humano. Também é um desleixo para com o Erário, uma vez que a falta de uma política mais atual e eficaz nesse campo (de um novo paradigma experimental) é um verdadeiro desrespeito com o dinheiro público. Penso que, mais uma vez, o caminho será o da pressão política, para que se façam enxergar questões tão cruciais como a da necessidade de resgatar-se a dignidade dos enfermos mentais e de suas famílias.

  3. 3
    Rafael:

    Otimo texto

  4. 4
    Humberto:

    sabemos medicamentos são desenvolvidos após passarem por várias etapas clínicas, e só recebem a licença para comercialização após 10, 20 anos de testes de eficácia, segurança e estabilidade.
    Mas um ser humano vive 70 anos ou mais! Como saber se esses antidepressivos (e ansiolíticos, etc) usados atualmente pela nossa geração, não podem causar males lá na frente? ninguém sabe.

  5. 5
    Tati:

    Nenhum comentário até agora? Poxa isso é que é tabu. Vou iniciar dizendo que esse assunto realmente assusta as pessoas; é melhor ser portador de HIV ou ter câncer do que uma doença mental. Minha opinião é que muita gente recebe remédio desnecessariamente quando deveria existir outra opção baseada no amor e apoio emocional partindo da própria família em primeiro lugar. Todos vão dizer “sim, lógico que eu apoio meu familiar doente” – Mas será que apoia ou sufoca? Quando um psiquiatra ou psicólogo diagnostica uma patologia mental ele condena a pessoa a um estado de incapacidade da onde ela dificilmente sai com saúde; a pessoa perde a capacidade de cuidar de si mesma, ela não tem competência para isso. Ora, isso cria uma angústia ainda maior e depois querem tratar essa angústia a base de remédios. A família embarca no diagnóstico e entra na síndrome do protecionismo, esmagando a pessoa com medos e cuidados obsessivos. O cerco é total. Nos casos onde existe perda da capacidade cognitiva ou risco de vida, os medicamentos podem ajudar, mas ele nunca substitui um tratamento humanizado. Eu mesma fui diagnosticada bipolar e provei sessão após sessão, dia após dia que esse era um falso diagnóstico, mas lógico, sofri muito antes de conseguir. Resultado .. o médico me pediu desculpas em uma consulta particular. Existem muitos absurdos, existem psicólogos e psiquiatras que só pioram a vida do paciente, e esses são muitos, acreditem. O modelo de tratamento proposto pela reforma psiquiatrica é uma maneira mais humana de tratar essas síndromes, o trabalho dos CAPS precisa se desenvolver, mas acima de tudo, a mentalidade da sociedade frente a essas questões deve mudar com urgência.

  6. 6
    Marcelo Ribeiro Lima:

    Brilhante contribuição, meu amigo Alysson. Toda luz pra o amigo!

  7. 7
    Mailton Vasconcelos:

    Bem complicado falar em fármacos para o tratamento de transtornos de desenvolvimento, como o caso do autismo e até a depressão senil. Se há uma opnião formada a respeito da eficácia desses possíveis tratamentos, isso só ilustra o quadro atual de que diversas teorias estão por trás da busca pelas bases dessas doenças.



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