Pacientes como eu

seg, 30/07/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Grupos de pacientes estão administrando drogas experimentais por conta própria e dividindo os resultados na internet. Até que ponto isso é válido?

A história do surfista Eric Valor é comum entres os pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Num dos dias de surfe na Califórnia, Eric percebeu que seu pé não estava mais respondendo como de costume. Simplesmente não conseguia mais se posicionar na prancha. Os sintomas se estenderam por outros membros e os tremores nos músculos do braço foram ficando mais frequentes. Eric foi diagnosticado como portador de ELA em 2005 e hoje está paralisado do pescoço pra baixo, e se mantém vivo por meio de um respirador artificial.

Em 2010, Eric tomou conhecimento de um tratamento clinico experimental para sua doença. A droga NP001 foi desenvolvida por uma indústria farmacêutica na cidade de Palo Alto e os testes clínicos iniciais mostraram baixa toxicidade – ela seria, portanto, segura para o uso em humanos. Infelizmente, Eric não pode participar da pesquisa, pois o estado avançado da doença não permitiu que se enquadrasse nos testes clínicos. Frustrado, começou a pesquisar no PubMed – site que disponibiliza trabalhos publicados em pesquisa biomédica – como poderia conseguir o medicamento por outros meios. Depois de muita pesquisa, identificou um precursor da droga que poderia ser comprado na Tailândia, mas os custos de importação eram altíssimos. Após sucessivas pesquisas, concluiu que o principio ativo da NP001 poderia ser o químico denominado de clorito de sódio, usado em sistemas de purificação de água e de fácil acesso – não confundir com o cloreto de sódio, que é o sal de cozinha. Cerca de um ano atrás, ele começou a tomar o químico por conta própria. Vale lembrar que o uso oral do clorito de sódio não é aprovado para tratamento de nenhuma doença humana. Mesmo assim ele foi em frente e acredita que esteja funcionando, relatando melhorias no tônus muscular e articulação vocal.

A princípio, Eric preferiu manter sigilo, pois não sabia se o tratamento seria seguro. Mas o segredo acabou vazando. O interesse da comunidade de ELA foi grande e discussões online levaram a criação dos testes “DIY” (“do-it-yourself”, ou feito por conta própria). Cerca de 30 pacientes estão atualmente tomando clorito de sódio oralmente e registrando os resultados em uma rede social chamada “PatientsLikeMe” (“pacientes como eu”, em inglês) (https://www.patientslikeme.com/). Apesar de experimentos desse tipo não terem uma supervisão médica e cientifica rigorosa, como é requisitado em testes clínicos oficiais, outros dados gerados por pacientes nesse site já apareceram em prestigiadas revistas cientificas como a “Nature Biotechnology”.

No caso de Eric, o alerta da comunidade cientifica tem sido maior. Não sabemos realmente se o clorito de sódio é o principio ativo do NP001, o medicamento nunca foi administrado oralmente em humanos e os pacientes estão comprando o reagente diretamente de indústrias químicas. O clorito de sódio não é um reagente preparado para o consumo humano. Impurezas e outros problemas com o controle de qualidade podem interferir nos resultados de cada paciente. É uma situação difícil. Se por um lado existe uma obrigação moral de avisar os outros pacientes de que existe algo que possa funcionar, por outro lado, informações como essa podem ser interpretadas erroneamente por outros pacientes. Felizmente, nesse caso, o risco parece ser moderado e os resultados dos 30 pacientes estão sendo analisados. Mas a história poderia ter tomado outro rumo, com uma droga mais tóxica que piorasse o quadro clínico desses pacientes.

Como cientista, considero essas ações arriscadas demais. Poderia justificar por ser uma doença fatal e com baixa qualidade de vida, mas o formato não controlado dessas experiências traz pouca informação útil aos pacientes. Talvez a melhor forma de unir as boas intenções dos pacientes em tentar algo novo com testes clínicos de qualidade seja incorporar cientistas especializados nesse tipo de abordagem para gerenciar e orientar os testes DIY. Obviamente, isso precisaria de um suporte financeiro considerável e de cientistas dispostos a arriscar a carreira em experimentos desse tipo.

Como vamos tratar as doenças mentais?

seg, 09/07/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Caso não tenham percebido, vivemos uma crise na medicina experimental. Medicamentos desenvolvidos nos últimos 60 anos são prescritos amplamente pelos médicos, mas causam pouco efeito nos pacientes. O mais surpreendente é que, mesmo com essa janela de oportunidade, testemunhamos uma diminuição dramática de interesse da indústria farmacêutica e biotecnológica para o desenvolvimento de novos fármacos.

Enquanto as intervenções psicossociais, incluindo novas tecnologias como o uso de tablets, mostram-se extremamente promissoras, a ausência de um plano estratégico para o desenvolvimento de medicamentos mais eficientes é preocupante. A situação é ainda mais grave porque grande parte da população humana é afetada por doenças mentais, causando sérios problemas financeiros para familiares e para o governo. Tome por exemplo o caso do autismo, que afeta cerca de 1% das crianças norte-americanas: o custo para o governo durante a vida de um único indivíduo autista beira os US$ 3,2 milhões (quase R$ 6,5 milhões). Isso representa um custo anual de US$ 35 bilhões (quase R$ 71 bilhões) para a sociedade americana. Números semelhantes servem para a esquizofrenia e quase o triplo do custo vai para o mal de Alzheimer.

Mas o que pode ser feito então?

A descoberta e desenvolvimento de novos medicamentos é um processo lento, caro e de alto risco. Dados recentes sugerem que para cada nova droga que entra no mercado, foram gastos, em média, mais de US$ 2 bilhões de dólares (cerca de R$ 4 bilhões) durante um período de 15 anos. Além disso, o processo falha em mais de 95% das vezes (referências sobre o cálculo desses números estão abaixo). Dá para entender por que a indústria tem fugido dessa área. O gráfico abaixo dá uma dimensão dos riscos e dos custos com que os pesquisadores arcam:

Os governos podem investir mais em novos medicamentos? Os governos têm o direito de não investir mais em novos medicamentos? Ignorar essa questão é simplesmente riscar a palavra “esperança” do dicionário dos pacientes que não respondem aos medicamentos atuais. Na ausência de suporte do governo, resta a solidariedade humana. Enquanto nos EUA o hábito cultural da doação de dinheiro para pesquisas é presente em todas as esferas sociais, em outros países, como o nosso, a filantropia é ainda incipiente. Apesar de estarmos na era do “crowdfunding”, não temos motivos para esperar que a moda pegue para fins científicos.

Uma ideia interessante para acelerar a entrada de novas drogas no mercado é melhorar o fluxo, desde a descoberta até o uso clínico. Obviamente, não temos como acelerar o teste rigoroso e cauteloso em seres humanos, mas podemos acelerar o processo que leva as drogas a serem testadas. Nos EUA, algumas estratégias estão sendo estudadas. Entre elas, destaco o “reposicionamento de drogas”, ou seja, pegar uma droga que falhou em estágios clínicos para uma doença “x” e testá-la contra uma doença “y”. Remédios que já foram testados em humanos e não serviram para o Alzheimer podem ser úteis para o autismo, por exemplo. Essa realocação de medicamentos permite encurtar em alguns anos todo o processo.

Mas não adianta ter drogas disponíveis para testes se não sabemos exatamente como elas funcionam. Os antidepressivos atuais são um bom exemplo. Usamos antidepressivos há três décadas, mas eles não funcionam para todos pacientes. Melhores tratamentos requerem uma melhor ciência, um melhor conhecimento da biologia por trás dos sintomas. É através da compreensão dos mecanismos celulares e moleculares que são desenvolvidas novas terapias contra o câncer a todo o momento. Claramente, isso não tem sido aplicado para doenças mentais e, portanto, não existem novas terapias para autismo ou depressão. Por quê? Possivelmente porque estamos usando os modelos errados. Testam-se novas drogas contra o câncer em células tumorais retiradas dos próprios pacientes. Se a substância bloqueia o crescimento dessas células em laboratório, possivelmente irá funcionar da mesma forma no organismo. Se der negativo, testa-se outra.

 

A lógica funcionaria também para doenças mentais. No entanto, não havia como isolar neurônios dos pacientes em laboratório e tudo era feito em modelos animais, em camundongos, que são extremamente caros. Não existem roedores com Alzheimer, esquizofrênicos ou autistas. A indústria farmacêutica sofreu um rombo financeiro enorme por ter apostado alto em modelos animais, muitas inclusive faliram. Não quero negar a contribuição de modelos animais para o entendimento de doenças humanas – esses modelos são e vão continuar sendo elementos críticos para o progresso da ciência. Mas os modelos animais não são consistentes para prever como os compostos vão funcionar em seres humanos. Neurônios humanos são, com certeza, mais complexos. Por isso mesmo, aposto em novos modelos produzidos a partir da reprogramação celular, gerando redes neurais derivadas de pacientes em quantidades suficientes para testes em laboratório. Mesmo com as limitações da reprogramação genética – afinal, não deixa de ser um modelo humano in vitro –, acredito que seja o que mais se aproxima do sistema nervoso do paciente. O sucesso dessa nova forma de encarar a busca de novos fármacos vai depender de centros criados a partir de consórcios colaborativos e multidisciplinares entre cientistas e a comunidade clínica – acelerando os testes em humanos –, além da parceria com empresas privadas ou filantrópicas – cobrindo as inconsistências governamentais.

Essas ideias fazem parte do que entendemos como medicina experimental, portanto ainda é um experimento em progresso. Considerando a taxa de sucesso atual – menos de 5% das drogas desenvolvidas vêm a funcionar em humanos –, acho que essas ideias não são tão caras e valeria o risco. Se não funcionarem, saberemos que esse não é o caminho e economizaremos para investir em outras opções. Na minha visão, essas são alternativas razoáveis e podem destacar mundialmente países emergentes, como o Brasil, como líderes de um novo modelo para o tratamento de doenças mentais.

Pernas, pra que te quero

seg, 02/07/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Talvez o erro mais comum ao interpretar os estudos de Charles Darwin seja o de acreditar que a sobrevivência da espécie humana esteja vinculada ao mais forte ou mais inteligente. Na verdade, a teoria de Darwin sugere que as chances de sobrevivência são maiores naqueles mais adaptados à transformação, à mudança.
A habilidade humana de sobreviver é guiada pelo inconformismo, do conflito até a transformação. Portanto, transformação e adaptação são as grandes vedetes do poder criativo humano.

Lynn Johnson/Aimeemullins.com

Aimee Mullins nasceu pra provar isso. Nasceu precoce, carregando uma deficiência congênita e teve as duas pernas amputadas abaixo do joelho com um ano de idade.
Desde então passou a andar usando próteses. Andar e correr. E correu tanto que em 1996 quebrou o recorde paraolímpico dos 100 metros rasos em Atlanta. Também formou-se em História e Diplomacia. Depois, virou modelo e atriz, atividades que exerce até hoje.

Mas foi em conversa com um grupo de crianças que Aimee passou a refletir sobre o potencial do deficiente físico na sociedade atual. Ela estava lá justamente para desmistificar o uso de próteses entre as crianças, permitindo que elas explorassem as pernas artificiais de silicone, imitando pernas comuns, e as pernas que usava para competir, com formato de palheta feitas de fibra de carbono.

Por brincadeira, perguntou às crianças que tipo de pernas seria necessário para pular sobre um prédio. Ouviu delas que seriam pernas de sapos ou cangurus. Até que um deles perguntou “Por que você não quer voar também?”. E foi nesse instante que a percepção das crianças mudou. Aimee deixou de ser vista como deficiente e passou a ser vista como supereficiente, alguém que poderia ter habilidades raras, extras, paranormais.

Foi pensando nisso que ela desafiou profissionais inovadores, fora do círculo tradicional de médicos protéticos, como cientistas, engenheiros, poetas e designers, a criar pernas que fossem além de simplesmente pernas. Sua intenção era a de frear a valorização e compartimentalização de forma, função e estética.

E foi no mundo da moda que Aimee desbravou esse conceito, desafiou o conceito de beleza, desfilando com pernas de madeira esculpidas a mão, pernas transparentes, feitas de materiais e formas que não necessariamente replicavam pernas humanas como o ideal estético. As próteses tornam-se poéticas, obras de arte, que convidam o olhar a explorar mais e não mais enganá-lo. Agora, as pernas de Aimee não buscam apenas andar ou correr, mas estimulam a imaginação.

Aimee também passou a brincar com sua constituição física. Possui pernas de diferentes tamanhos, que alteram sua altura dependendo do contexto social. E foi numa festa que ouviu de uma conhecida, surpresa com a repentina mudança de estatura de Aimee, que alterar a altura conforme sua vontade não era justo.
O comentário mostra que o diálogo de Aimee com a sociedade mudou. Não é mais o discurso pronto, e já defasado, de como o deficiente aceita ou supera as dificuldades.

Agora a conversa é sobre a adição de qualidades extras, é uma conversa sobre potencial. Significa que estamos entrando em uma nova fase na história humana, onde o deficiente não precisa mais se contentar em substituir o que lhe falta, mas pode criar em cima daquele espaço físico, tornando-se arquiteto da sua própria identidade.

Podem, inclusive, alterar constantemente sua identidade através do design corporal, combinando tecnologia com arte, com poesia, buscando o valor real do que conhecemos como individualidade humana.

Acho que o potencial humano de criação e transformação vai florescer quando abraçarmos de vez nossa diversidade, seja ela física ou cognitiva.



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