L’Inconnue e os lábios da vida
Foi durante um carnaval, acampando no litoral norte de São Paulo com uns amigos, que tive a chance de salvar uma pessoa de afogamento pela primeira vez. Andando na praia, havíamos avistado uma multidão em volta de um corpo, já roxo, que fora retirado da água minutos antes.
Não sei bem o que aconteceu, mas logo em seguida lembro de estar realizando primeiros socorros no sujeito que, para alegria minha (e dele), acordou e voltou a respirar novamente. Foi a primeira vez que tive a sensação única de trazer alguém de volta à vida. Tudo graças ao treinamento de CPR (primeiros socorros) que aprendi quando escoteiro.
Aprendi a operação com o corpo de bombeiros. Usamos um boneco, um modelo, que ensinou a mim e outros colegas como proceder em casos de afogamento. Sempre que me lembro dessa experiência, lembro do rosto do modelo, na verdade, “da” modelo, pois o molde foi feito a partir de uma mulher que realmente existiu.
E se você nunca encostou seus lábios nessa mulher, está perdendo a oportunidade de conhecer uma das modelos mais famosas da história humana: L’Inconnue de la Seine (A desconhecida do Sena). Essa mulher costumava ficar pendurada junto a Mozart e Napoleão. Sério. Pendurada morta.
A fama dela tem um começo inusitado. Em 1960, o médico austríaco Peter Safar estava aperfeiçoando as técnicas de CPR e procurava por uma forma das pessoas praticarem a rotina. Encontrou um fabricantes de brinquedos norueguês, Asmund Laerdal, que também fazia próteses de plásticos e outros aparatos para treinamento militar.
Safar não precisou de muito para convencer Asmund a trabalhar no projeto, pois seu filho quase havia morrido afogado anteriormente e faria de tudo para que nenhum outro pai passasse pela mesma aflição. Asmund concordou em construir um modelo para que as técnicas fossem praticadas e disseminadas mundo a fora. Mas o boneco precisava de um rosto…
Asmund achou que as pessoas da época poderiam ficar intimidadas em treinar com um rosto masculino, então procurou por rostos femininos. Queria a face de uma morta que fosse, de certa forma, atraente. A face que encontrou estava numa máscara, uma máscara da morte, muito comum no começo do século passado.
Naquela época, tão logo a pessoa era declarada morta, colocava-se argila sobre o rosto para tirar o molde, que era usado para fazer uma máscara, capturando a essência do rosto da pessoa morta para a prosperidade. Isso era muito comum na Europa, principalmente em Paris.
E numa loja de máscaras, junto com replicas de Mozart, Napoleão, Chopin, e outros famosos, encontrava-se eternizado o rosto da misteriosa dama do Sena, L’Inconnue. Ela não fora poeta, compositora, ou uma celebridade, era apenas uma indigente. Segundo rumores, a mulher não era nem francesa, mas havia migrado para Paris por volta de 1920. E na mais romântica das cidades, havia se apaixonado loucamente por um rapaz, incapaz de retribuir o sentimento.
Abandonada, e possivelmente grávida, decide se suicidar jogando-se de uma das pontes do Sena. Morre afogada e o corpo, recuperado. Afogamentos no Sena eram comuns e os corpos recuperados pela policia local eram pendurados numa vitrine da prefeitura para o reconhecimento de eventuais parentes. O corpo dela chamava a atenção, pois o rosto era considerado muito atraente, com um leve sorriso doce, sereno, na face.
A beleza dela fez com que fosse tirado um molde para uma máscara da morte, na tentativa de conservar a expressão única daquela afogada desconhecida.
O mistério por trás da mulher aumentava na mesma intensidade que acumulava-se curiosos para admirar o corpo exposto na vitrine. Ganhou o apelido de “L’inconnue de la Seine”, na falta de melhor definição. Reproduções da máscara da mulher ganharam as ruas de Paris e o desconhecido rosto virou uma mórbida sensação fashion, tornando-se o ideal erótico de um período.
As pessoas conversavam sobre ela pelas ruas e se perguntavam, quem a fez pular? Quem fora o amante? De quem era aquele rosto afinal? Rilke escreveu sobre ela, Anais Nin também, Albert Camus comparou seu sorriso enigmático ao de Mona Lisa, e a face da dama morta ganhou o mundo.
Asmund não teve dúvidas quando viu uma das milhares copias da máscara da mulher: aquele seria o rosto do primeiro manequim de CPR da história. Deu nome ao manequim, chamaria “RessusciAnne”. Sua única modificação foi no sorriso, a boca aberta era necessária para a técnica do Dr. Safar.
Ninguém sabe muito mais sobre a mulher. Alguns contradizem essa história e juram que ela nunca morreu, pois o rosto estaria muito tranquilo e conservado para um suicida afogado. Talvez ela tenha sido apenas uma mulher atraente que alguém decidiu fazer uma máscara.
Existe ainda uma outra versão, que diz que uma eventual irmã gêmea da mulher vai até Paris, 50 anos depois, e reconhece a face da irmã numa das máscaras. Uma se imortaliza jovem enquanto a outra envelhece… Enfim, talvez ela tenha ficado famosa justamente porque é desconhecida.
Estima-se que 300 milhões de pessoas treinaram CPR em manequins RessusciAnne. É intrigante imaginar que todas essas pessoas, inclusive eu mesmo, aprenderam como salvar pessoas de afogamentos justamente debruçando-se sobre o rosto de uma mulher que morrera afogada.
O legado de L’inconnue é que milhares de pessoas no mundo todo tentam ressuscitá-la todos os dias e, de certa forma, trazê-la de volta à vida, assoprando nos eternos lábios, agora abertos.