L’Inconnue e os lábios da vida

ter, 31/01/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Foi durante um carnaval, acampando no litoral norte de São Paulo com uns amigos, que tive a chance de salvar uma pessoa de afogamento pela primeira vez. Andando na praia, havíamos avistado uma multidão em volta de um corpo, já roxo, que fora retirado da água minutos antes.

Não sei bem o que aconteceu, mas logo em seguida lembro de estar realizando primeiros socorros no sujeito que, para alegria minha (e dele), acordou e voltou a respirar novamente. Foi a primeira vez que tive a sensação única de trazer alguém de volta à vida. Tudo graças ao treinamento de CPR (primeiros socorros) que aprendi quando escoteiro.

Aprendi a operação com o corpo de bombeiros. Usamos um boneco, um modelo, que ensinou a mim e outros colegas como proceder em casos de afogamento. Sempre que me lembro dessa experiência, lembro do rosto do modelo, na verdade, “da” modelo, pois o molde foi feito a partir de uma mulher que realmente existiu.

E se você nunca encostou seus lábios nessa mulher, está perdendo a oportunidade de conhecer uma das modelos mais famosas da história humana: L’Inconnue de la Seine (A desconhecida do Sena). Essa mulher costumava ficar pendurada junto a Mozart e Napoleão. Sério. Pendurada morta.

A fama dela tem um começo inusitado. Em 1960, o médico austríaco Peter Safar estava aperfeiçoando as técnicas de CPR e procurava por uma forma das pessoas praticarem a rotina. Encontrou um fabricantes de brinquedos norueguês, Asmund Laerdal, que também fazia próteses de plásticos e outros aparatos para treinamento militar.

Safar não precisou de muito para convencer Asmund a trabalhar no projeto, pois seu filho quase havia morrido afogado anteriormente e faria de tudo para que nenhum outro pai passasse pela mesma aflição. Asmund concordou em construir um modelo para que as técnicas fossem praticadas e disseminadas mundo a fora. Mas o boneco precisava de um rosto…

Asmund achou que as pessoas da época poderiam ficar intimidadas em treinar com um rosto masculino, então procurou por rostos femininos. Queria a face de uma morta que fosse, de certa forma, atraente. A face que encontrou estava numa máscara, uma máscara da morte, muito comum no começo do século passado.

Naquela época, tão logo a pessoa era declarada morta, colocava-se argila sobre o rosto para tirar o molde, que era usado para fazer uma máscara, capturando a essência do rosto da pessoa morta para a prosperidade. Isso era muito comum na Europa, principalmente em Paris.

E numa loja de máscaras, junto com replicas de Mozart, Napoleão, Chopin, e outros famosos, encontrava-se eternizado o rosto da misteriosa dama do Sena, L’Inconnue. Ela não fora poeta, compositora, ou uma celebridade, era apenas uma indigente. Segundo rumores, a mulher não era nem francesa, mas havia migrado para Paris por volta de 1920. E na mais romântica das cidades, havia se apaixonado loucamente por um rapaz, incapaz de retribuir o sentimento.

Abandonada, e possivelmente grávida, decide se suicidar jogando-se de uma das pontes do Sena. Morre afogada e o corpo, recuperado. Afogamentos no Sena eram comuns e os corpos recuperados pela policia local eram pendurados numa vitrine da prefeitura para o reconhecimento de eventuais parentes. O corpo dela chamava a atenção, pois o rosto era considerado muito atraente, com um leve sorriso doce, sereno, na face.

A beleza dela fez com que fosse tirado um molde para uma máscara da morte, na tentativa de conservar a expressão única daquela afogada desconhecida.

O mistério por trás da mulher aumentava na mesma intensidade que acumulava-se curiosos para admirar o corpo exposto na vitrine. Ganhou o apelido de “L’inconnue de la Seine”, na falta de melhor definição. Reproduções da máscara da mulher ganharam as ruas de Paris e o desconhecido rosto virou uma mórbida sensação fashion, tornando-se o ideal erótico de um período.

As pessoas conversavam sobre ela pelas ruas e se perguntavam, quem a fez pular? Quem fora o amante? De quem era aquele rosto afinal? Rilke escreveu sobre ela, Anais Nin também, Albert Camus comparou seu sorriso enigmático ao de Mona Lisa, e a face da dama morta ganhou o mundo.

Asmund não teve dúvidas quando viu uma das milhares copias da máscara da mulher: aquele seria o rosto do primeiro manequim de CPR da história. Deu nome ao manequim, chamaria “RessusciAnne”. Sua única modificação foi no sorriso, a boca aberta era necessária para a técnica do Dr. Safar.

Ninguém sabe muito mais sobre a mulher. Alguns contradizem essa história e juram que ela nunca morreu, pois o rosto estaria muito tranquilo e conservado para um suicida afogado. Talvez ela tenha sido apenas uma mulher atraente que alguém decidiu fazer uma máscara.

Existe ainda uma outra versão, que diz que uma eventual irmã gêmea da mulher vai até Paris, 50 anos depois, e reconhece a face da irmã numa das máscaras. Uma se imortaliza jovem enquanto a outra envelhece… Enfim, talvez ela tenha ficado famosa justamente porque é desconhecida.

Estima-se que 300 milhões de pessoas treinaram CPR em manequins RessusciAnne. É intrigante imaginar que todas essas pessoas, inclusive eu mesmo, aprenderam como salvar pessoas de afogamentos justamente debruçando-se sobre o rosto de uma mulher que morrera afogada.

O legado de L’inconnue é que milhares de pessoas no mundo todo tentam ressuscitá-la todos os dias e, de certa forma, trazê-la de volta à vida, assoprando nos eternos lábios, agora abertos.

O teste do marshmallow

qui, 12/01/12
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O ano novo chegou e agora, algumas semanas já se passaram em janeiro e eu pergunto a quantas andam suas resoluções e promessas de ano novo? Lógico, estou falando daquelas de curto prazo: controlar a alimentação, fazer mais exercícios, começar aprender uma nova língua. É curioso como algumas pessoas conseguem seguir em frente com as resoluções de ano novo, enquanto outras acabam desistindo cedo e voltam ao comportamento anterior. Seria esse poder determinista algo que algumas pessoas nascem com ele ou isso é algo que pode ser ensinado?

Gostaria de tentar responder essa pergunta usando como exemplo o trabalho do psicólogo Walter Mischel, da Universidade Columbia, em Nova York, EUA. Walter tem um trabalho excelente que começou com uma observação curiosa em suas próprias filhas. Na final dos anos 60, Walter tinha três meninas com idades entre 2 e 5 anos. Como muitos pais provavelmente notam, muitas mudanças acontecem no comportamento das crianças por volta dos 4 anos. Quando uma das suas filhas fez 4 anos, ela adquiriu repentinamente a capacidade de retardar a gratificação imediata. Andando no mercado, a menina fazia um escândalo porque queria alguma coisa e tinha que ser na hora. Depois dos 4 anos, passou a entender que se esperasse ao chegar em casa, poderia negociar algo melhor. Walter observou esse tipo de autocontrole acontecer com todas as suas filhas, como se estivessem programadas pra isso.

Na ausência de qualquer literatura cientifica sobre o assunto naquela época, Walter decidiu aplicar uma metodologia cientifica para confirmar essas obervações preliminares. Inventou o teste do marshmallow. Recrutou crianças com diversas idades na escolinha das filhas e as colocou num quarto, sentadas de frente para uma mesa com um prato com um marshmallow. Falou para cada uma delas que poderiam comer o marshmallow na hora, ou esperar um pouco e ai teriam dois marshmallows. Nesse instante, Walter deixava as crianças sozinhas no quarto e registrava a reação de cada uma com uma câmera oculta. Ficavam sozinhas no quarto, de frente para o doce, refletindo sobre o que fazer. Não existia nenhum tipo de distração no quarto, nenhum outro brinquedo, fotos na parede, nada, só a tentação do marshmallow.

O resultado foi pura agonia. As crianças cheiravam o doce, lambiam, colocavam de volta na mesa. Outros, ficavam chutando a pesa, viravam de costas, ficavam cantarolando. Enfim, uma infinidade de comportamentos agonizantes, verdadeira tortura mental, onde uns comiam e outros esperavam. Foram testadas 500 crianças e Walter confirmou a observação inicial, a partir dos 4 anos de idade, as crianças passavam a ter autocontrole e não comiam o doce imediatamente. A variação de tempo que essas crianças conseguiam se controlar foi grande, uns seguravam por 1-2 minutos, outros até 10 minutos, numa média de 7-8 minutos. Mas o mais impressionante foi o que aconteceu em seguida, 5-6 anos depois desse experimento.

Walter estava conversando com suas filhas informalmente e perguntou como estavam os coleguinhas, agora já em idade escolar. A resposta variava, alguns estavam indo muito bem, outros tinham mais dificuldade na escola. Walter notou uma tendência, aqueles que haviam segurado a tentação do marshmallow por mais tempo, estavam se dando melhor nos testes escolares. Decidiu então esperar mais 5 anos, quando os indivíduos estariam prestando o equivalente ao nosso ENEM, um dos testes mais importantes na carreira escolar americana.

Veja bem, a idéia não era encontrar correlação nenhuma entre o ridículo teste do marshmallow e as notas escolares dos adolescentes, mas a conclusão foi oposta. A correlação foi extremamente significativa. Aqueles garotos de 4 anos que esperaram mais tempo antes de comer o doce foram os que tiveram as melhores notas nos testes. Notas muito melhores mesmo, a diferença foi gritante, não marginal apenas. Além disso, outros estudos mostraram que as crianças com tempos maiores no teste do marshmallow entraram em melhores escolas, tinham um comportamento melhor. Em nítido contraste, aqueles com tempo menores eram classificados pelos pais como garotos problemáticos, com mal comportamento na escola, envolvimento com drogas e passagens pela policia, inclusive.

Esses resultados foram tão estranhos que Walter decidiu continuar o estudo. Fez uma análise muito mais profunda dos mesmos indivíduos, 40 anos depois do teste do marshmallow. Tudo era melhor nos garotos que tiveram mais autocontrole as 4 anos: melhores empregos, salários mais altos, até a condição física era melhor. Os dados são tão fortes que fazem pensar: será que esse teste, aos 4 anos de idade, consegue realmente prever como vai ser a vida adulta dessas crianças? Uma interpretação desses dados, que não pode ser descartada, é que o autocontrole é geneticamente programado em cada pessoa, em cada cérebro. Ou você demonstra isso até os 4 anos de idade, ou, está estatisticamente condenado ao fracasso.

Mas, felizmente, existem outras formas de interpretar esses dados. Walter revisitou os vídeos das crianças aos 4 anos e concluiu que, absolutamente, todas as crianças passavam pela agonia do açúcar, mesmo aqueles que seguraram a tentação por mais tempo. Eles não foram modelos de força, também sofreram no teste. A única diferença entre os dois grupos de crianças, foi que as crianças que seguraram por mais tempo simplesmente acharam formas de se distrair da tentação: virando as costas, falando sozinhas, cantando, até brincando com o doce de alguma forma. Pois bem, esses garotos simplesmente tinham uma melhor estratégia para lidar com a situação. E estratégia pode ser ensinada, adquirida.

E isso foi feito, num outro experimento, foi possível transformar garotos com menos autocontrole, apenas sugerindo a eles uma estratégia, como pensar em uma historinha, imaginar que o doce é uma pedra, ou simplesmente olhar para o lado. Ainda não deu tempo de verificar se os garotos que aprenderam a estratégia vão conseguir melhores notas no colégio. Sinceramente, não tenho tanta certeza do resultado. Acho que como quase tudo na vida, a genética faz a diferença, mas a experiência pode alterar isso de forma significativa, ambos fatores interagindo e influenciando ao outro. Além disso, vale lembrar que, mesmo nos estudos do Walter, existem claras exceções. Alguns garotos que não conseguiram segurar o impulso do marshmallow, de alguma forma, estavam entre os que se deram melhor na carreira.

Sempre haverá mágica na vida.



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