Cérebro em mutação

seg, 14/11/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Talvez o aspecto mais fascinante da neurociência moderna seja a percepção de que cada cérebro é único, resultado da interação genética com o ambiente. Mas será mesmo só isso que nos define como seres únicos?

Lembro daquele filme estranho, chamado “Boys from Brazil”, dirigido por Franklin Schaffner. A trama é sobre um plano do nazista Josef Mengele de ressuscitar Adolf Hitler por meio de um programa de clonagem. Para isso, Mengele recruta mulheres brasileiras e insere o genoma de Hitler, obtido a partir de um pedaço de pele e sangue, em óvulos para que gerem os tais clones. As crianças nascem e são adotadas por casais espalhados pelo mundo todo. Sabendo do importante papel do ambiente na formação da mente humana, Mengele deixa instruções especificas para que os clones sejam criados em condições ambientais idênticas a de Hitler durante sua vida. Obviamente, o plano é descoberto e agentes britânicos impedem que as condições sejam replicadas, alterando o estilo de vida dos casais. Mas alguns agentes mais temerosos decidem ir atrás da lista de crianças para assassiná-las antes que cresçam. A lista é queimada com o argumento de que as crianças não mais terão o mesmo ambiente que Hitler teve durante sua infância.

 

A ficção chegou até a realidade e muita gente ainda acha que seja possível reproduzir o caráter de alguém apenas com genética e ambiente. O antigo site “letsclonejesus.com” pedia doações para clonar Jesus usando-se amostras de DNA extraído do santo sudário. O site também procurava virgens dispostas a engravidar e viver como a mãe de cristo nos dias atuais. Já vi o mesmo pro Elvis. Surreal.

Na verdade, experimentos conduzidos em laboratório mostraram que isso é impossível. Animais clonados e com o ambiente reproduzido em condições rigorosamente controladas em laboratório acabam tendo comportamentos individuais e capacidade cognitiva tão distintos quanto eu e você. Em humanos, a natureza fez o experimento pra gente. Gêmeos idênticos, vivendo no mesmo ambiente, podem ser fisicamente indistinguíveis mas frequentemente apresentam gostos, tendências e perspectivas do mundo completamente diferentes. Sem querer negar a forte contribuição genética ou ambiental, pergunto: qual outro fator contribui para a individualidade do cérebro?

Semana passada, o grupo escocês liderado por Geoff Faulkner, da mesma universidade de Ian Wilmut (isso mesmo, aquele que clonou a ovelha Dolly) publicou um artigo na renomada revista Nature, trazendo fortes evidências para a teoria do acaso genético e gene egoísta. O conceito de acaso e serendipidade neuronal foi inicialmente proposto em 2005 com base em dados experimentais em camundongos por este que vos escreve. Na época, pensei até em deixar a ciência devido à forte reação de oposição e ao peso do que uma proposta como essa causa nos dogmas centrais da neurociência. Novas hipóteses não são sempre bem vindas na ciência e leva-se tempo até que sejam reconhecidas e validadas. Cientistas podem ser mais mesquinhos do que garotos do secundário sacaneando a espinha na testa do colega…

O grupo de Faulkner mapeou o genoma de regiões diferentes do cérebro humano, mostrando que as células do cérebro são geneticamente heterogêneas, principalmente os neurônios. Ao contrário da maioria das células presentes no resto dos tecidos do corpo, os neurônios acumulam alterações genéticas durante a vida, formando cicatrizes moleculares que nos acompanham pelo resto de nossas vidas. Alterações em outras células são, em geral, corrigidas imediatamente. Essas alterações são produzidas por regiões de DNA que não conhecemos muito bem, mas que possuem a capacidade de “saltar” de uma região para outra, como se fossem elementos autônomos vivendo dentro do núcleo das células neuronais. Apesar de esses elementos constituírem mais da metade do genoma humano, são frequentemente chamados de “DNA-lixo” ou genes egoístas e poucas pessoas estudam o que eles realmente fazem na célula.

Os saltos esporádicos desses elementos alterariam o comportamento dos neurônios de forma sutil, moldando as redes neurais responsáveis por nossos sentimentos e personalidade. Obviamente, isso tudo ainda é uma hipótese que precisa ser validada cientificamente, o que não será nada fácil. Porém, acredito que o investimento valha a pena. Se o cérebro humano for realmente constituído por uma instabilidade genética intrínseca, pode ser que exista um limite tolerável de variação. Níveis muito acima ou abaixo desse limite podem alterar o funcionamento do cérebro, talvez levando a pessoas com habilidades acima média, como um Picasso ou Einstein. Por outro lado, as variações podem ser mais dramáticas, levando a quadros complexos e heterogêneo como no caso do autismo e esquizofrenia. Esse tipo de proposta pode ajudar a explicar essas condições humanas e trazer novos insights terapêuticos.

Incluindo autistas na ciência

qui, 03/11/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Quando se fala em indivíduos autistas, a maioria imagina pessoas isoladas socialmente, com dificuldade em comunicação e envolvidas em comportamentos repetitivos e estereotipados. De fato, para ser considerado dentro do espectro autista, basta apresentar sintomas relacionados a essas características. Porém, essa definição é restrita, rasa, e não reflete a condição autista em sua totalidade. O lado positivo do autismo é pouco lembrado, o que contribui para problemas de inclusão social.

Indivíduos autistas são extremamente focados e conseguem se dedicar a uma atividade especifica por muito tempo. Em geral, essa dedicação vem acompanhada de uma atenção aos detalhes, sensibilidade ao ambiente e capacidade de raciocínio acima do normal, o que colocaria essas pessoas em vantagem em determinadas situações. Uma dessas situações está presente justamente em alguns aspectos do processo científicos.

A ciência não vive apenas de criatividade e pensamento abstrato. Na verdade, a maioria dos cientistas segue uma carreira metódica, racional, com incrementos sequenciais no processo de descoberta científica. Esse trabalho exige atenção e dedicação acima do normal, por isso mesmo cientistas acabam sendo “selecionados” para esse tipo de atividade. O momento de “eureca” é extremamente raro na ciência.

Da mesma forma, são raros os casos de autistas superdotados, com capacidades extraordinárias. Esse tipo de característica, retratada no filme RainMan, acaba ajudando esses indivíduos a se estabelecerem de forma independente. É o caso de Stephen Wiltshire que vive de sua arte porque consegue desenhar em três dimensões uma cidade inteira após sobrevoá-la de helicóptero uma única vez. Mas e no caso dos outros indivíduos, que não necessariamente possuem uma habilidade tão evidente? Será que poderíamos incorporá-los em alguma outra atividade aonde suas características sejam de grande vantagem?

Indivíduos autistas usam o cérebro de forma diferente. Regiões do cérebro relacionadas ao processo visual são, em geral, bem mais acentuadas. Por isso mesmo, autistas conseguem perceber variações em padrões repetidos mais rapidamente e com mais precisão do que pessoas “normais”, ou fora do espectro autista. Autistas também superam não-autistas em detectar variações em frequências sonoras, visualização de estruturas complexas e manipulação mental de objetos tridimensionais.

Retardo intelectual é, quase sempre, relacionado ao autismo. Mas vale lembrar que a maioria dos testes utiliza linguagem verbal, o que coloca os autistas em desvantagem. Esse tipo de abordagem merece uma revisão mais criteriosa. Aposto que se refizéssemos algumas dessas pesquisas os resultados seriam diferentes e contribuiriam para a redução do preconceito.

Muitos autistas poderiam ser aproveitados pela academia. Desde cedo, esses indivíduos demonstram profundo interesse em informações, números, geografia, dados, enfim, tudo que é necessário para a formação de um pensamento científico. Além disso, possuem capacidade autodidática e podem se tornar especialistas em determinada área – ambas as características são importantes no cientista. Algumas das vantagens intelectuais (e mesmo pessoais) de indivíduos autistas acabam sendo atraentes em laboratórios científicos. Não me interprete mal, não estou sugerindo o uso de autistas como objeto de estudo (o que já acontece e é útil também), mas como agentes da descoberta cientifica.

Tenho certeza de que poderíamos incluir cientistas autistas no contexto de descoberta cientifica atual e explorar esse tipo de inteligência. Um exemplo disso é o laboratório do Dr. Laurent Mottron, que trabalha com a cientista-autista Michelle Dawson faz 7 anos. Laurent descreveu recentemente sua experiência empregando cientistas autistas na última edição da revista Nature. Michelle tem a capacidade de manusear mentalmente um número enorme de dados ao mesmo tempo, faz isso naturalmente. E enquanto não conseguimos nem lembrar o que vestimos ontem, autistas como Michelle nos surpreendem com uma memoria impecável.

Ela recorda todos os dados gerados do laboratório e tem papel fundamental no desenho de experimentos de outros cientistas. Juntos, Laurent e Michelle já assinaram mais de 14 trabalhos juntos. Outro exemplo clássico é Temple Grandin, autista que obteve seu PhD em veterinária e, usando seu raciocínio visual, desenvolveu novos protocolos para redução de estresse em animais para o consumo de carne. Grandin é atualmente professora da Universidade Estadual do Colorado, nos EUA.

Acredito que autistas podem dar uma contribuição excepcional para o mundo se conseguirmos colocá-los no ambiente ideal. É um desafio social, mas que começa com a conscientização da condição autista. Organizações internacionais já existem com a finalidade de auxiliar autistas a se encaixarem no mercado de trabalho. Exemplos são as firmas Aspiritech, nos EUA, e Specialisterne, na Holanda. Com o tempo, outros lugares vão perceber que a mão-de-obra autista é extremamente especializada e começarão a explorar esse nicho.

Obviamente o autismo traz limitações, como o entrosamento social, problemas motores e a dificuldade de comunicação. Com isso, eles não vão conseguir se adaptar facilmente a trabalhos que envolvam comunicação social intensa. Em casos mais graves, muito provavelmente, vão depender da sociedade por toda a vida. Ignorar essas limitações é tão prejudicial quanto ignorar as vantagens que o autismo pode oferecer nos casos mais leves. Talvez o maior reflexo de uma sociedade avançada esteja em como ela acomoda suas minorias. Enquanto as oportunidades terapêuticas para o autismo não chegam, acredito que o que esses indivíduos mais precisam agora seja respeito, inclusão e, acima de tudo, oportunidades.



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