Pacto com Deus e o replicante católico

ter, 30/08/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A espécie humana sempre foi curiosa por robôs, especialmente aqueles com aparência humana, como os replicantes do clássico Blade Runner. Não sou diferente e, quando criança, cheguei a construir diversos robôs com caixas de papel e pedaços de brinquedos quebrados. Essa fascinação talvez exista porque nos identificamos com robôs, passamos nossas emoções aos objetos fisicamente parecidos com a gente. Existe algo de místico quando nos aproximamos dos humanoides, como se fossem, literalmente, parte humanos. Interessante notar que um dos primeiros replicantes teve uma origem religiosa, a partir de um pacto com o criador.

 

Estamos em 1562. Naquele ano, o homem mais poderoso do planeta, o Rei Filipe II, encontra-se numa delicada situação. Basicamente, ele era o cara. Amigão do Papa, controlava toda a América e boa parte da Europa, as Filipinas recebem o nome em sua homenagem e por aí vai. Esse rei tinha um filho, o príncipe espanhol Dom Carlos, com então 17 anos. A traição motora adolescente foi responsável pela queda do príncipe das escadarias do palácio, machucando gravemente a cabeça numa porta. Não parecia grave, estava inicialmente consciente, mas com o tempo a cabeça começa a inchar e ele tem delírios, espasmos e vai perdendo a visão. Acaba ficando completamente cego, fraco.

 

Toda a Espanha fica agitada. A noticia é vista como um castigo divino e as pessoas começam a jejuar, participar em cerimonias religiosas duvidosas entre outras coisas. Imediatamente, o rei convoca os melhores médicos do mundo para a Espanha. Esses médicos tentam de tudo, fazem um buraco no crânio para aliviar a pressão, sangrias, tentam todo tipo de medicamento…nada funciona. Concluem que o garoto está morrendo. A incerteza da cura cria um estado de agonia sobre o futuro do reino.

 

Dizem os relatos que o rei ajoelha-se perto da cama do filho e faz um pacto com Deus. O pacto é o seguinte: se Deus fizer o milagre de curar seu filho, ele, o rei, fará um milagre e oferecerá para Deus. Parece pretensioso da parte do rei, mas lembre-se que ele é visto como um super-homem, outro deus entre os mortais. Passa uma semana e o príncipe recupera a visão. Passa um mês e ele está normal, como se não tivesse caído. Assim que recupera as forças, ele conta pro rei sua bizarra experiência enquanto estava inconsciente. Relata ao pai que teve um sonho, uma visão de uma figura humana, um monge segurando uma cruz. No sonho, o monge se aproxima dele deitado e diz que tudo vai ficar bem. A história é confirmada por uma testemunha que ouviu o príncipe murmurar a conversa com o monge durante um dos delírios noturnos.

 

Dom Carlos recupera-se e a história se espalha. A questão que todo mundo tem é: quem seria o monge que visitou o príncipe durante a beira-morte? A descrição do príncipe não é de um monge genérico. Ele descreve claramente que o monge que o visitou tinha a cabeça raspada, nariz pontudo, olhar destemido, tipo de hábito, mesmo a descrição da cruz é feita nos menores detalhes. Por mais surreal que pareça, as pessoas reconhecem quem é o monge: um frei local que morreu 100 anos antes, chamado Diego de Alcalá. Essa figura sagrada está associada a dezenas de milagres. Esse mesmo padre que abençoou a cidade de San Diego, na Califórnia, durante a colonização espanhola. Um verdadeiro mito católico cujos restos mortais tem poderes de cura.

 

Com todas essas evidências, o rei agora tem que fazer bonito e apresentar um milagre em contrapartida, para honrar seu pacto divino. Para isso, o recruta um grande e mundialmente renomado relojoeiro da época e pede para que ele faça uma versão mecânica de Diego de Alcalá, um monge mecânico ou um padre robô, como queira. Encontrei-me com esse robô recentemente, em visita ao museu Smithsonian, na capital americana. Esse autômato de 450 anos está em boas condições e continua funcionando. O robô foi feito de ferro e madeira, tem o rosto esculpido em semelhança ao padre original, com nariz fino, cabeça raspada e o olhar focado. Anda, um pé depois do outro, com o hábito, o terço, a cruz, as sandálias. Ele se movimenta  lentamente, a boca mexe como se estivesse rezando, muda de direção, mexe um braço como se estivesse benzendo e o outro batendo no peito – o ato da mea culpa. Depois de alguns passos, levanta a cruz aos céus e a beija. Faz isso repetidamente, como um cristão perfeito.

 

É justamente aí que talvez esteja a resposta para uma pergunta que me deixou bem curioso. Porque o rei, ao invés de levantar uma enorme catedral ou conquistar outros territórios em nome da igreja, optou pelo replicante? Uma interpretação seria que o rei queria dividir os poderes de cura com seus súditos. Todo o maquinário do robô está escondido debaixo do habito, criando uma ilusão de autonomia, um milagre. Outra possível interpretação é que o robô seria uma máquina incansável de rezar. Rezando sem parar, o Rei teria delegado ao robô a tarefa cristã da reza, de pedir perdão e agradecer a Deus pela recuperação de seu filho. Estaria ele tentando iludir Deus? Por fim, uma resposta alternativa seria a da criação de um cristão perfeito, para servir ao criador através do método católico da reza e repetição ritual. O robô seria a imagem ideal do adorador divino, humanamente impossível.

Comportamento coletivo

qua, 17/08/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Sempre fui fascinado pelo comportamento coletivo de animais em geral. Gosto de observar as mudanças radicais, em ondas, dos grupos de pássaros no céu azul ou o movimento coordenado de abelhas, formigas e peixes. Sempre quis saber exatamente o que se passava com esses grupos de animais: estariam desviando de algum perigo ou apenas seguindo o comportamento aleatório de um líder egocêntrico?

 

Recentemente, tive a rara oportunidade de interagir com Iain Couzin, um pesquisador inglês que lidera um grupo de pesquisa na Universidade de Princeton, nos EUA. O grupo de Iain tenta desvendar questões relacionadas com o comportamento coletivo de uma série de animais, buscando modelos matemáticos que traduzam a ação isolada de indivíduos ao nível macroscópico (sociedades).

 

Uma visita ao laboratório desse apreciador de cervejas escuras é como uma volta à infância. Enquanto alguns tentam modelar o comportamento de andorinhas, outros gostam de manipular robôs predadores num aquário com milhares de peixinhos assustados. Tudo isso para entender como o estímulo visual consegue induzir ondas de comportamento na população. É interessante notar que essas ondas acontecem mesmo na ausência de um predador. Se algum indivíduo do grupo acha que sentiu um perigo em potencial e desviou da rota, será seguido por centenas de outros membros do grupo. Isso acontece com diversos tipos de pássaros e peixes. A liderança é constantemente transferida entre membros do grupo, um claro exemplo de democracia espontânea.

 

O movimento dos insetos é tão curioso quanto. Talvez o comportamento mais essencial para sobrevivência de colônias de formigas é a exploração do ambiente desconhecido em volta do ninho a procura de comida. Milhares de formigas “trabalhadoras” têm que se organizar para explorar e trazer nutrientes utilizando rotas desconhecidas e aparentemente aleatórias. Num dos estudos de Iain, fica claro que as formigas criam espontaneamente mapas inteligentes de navegação, facilitando o encontro entre os indivíduos da colônia. Na figura ao lado, é possível observar o resultado de meia-hora de exploração de um ninho de formigas deslocado para um ambiente desconhecido. A figura foi feita através da captura dos hormônios deixados pelos indivíduos durante o processo inicial exploração (quando mais forte o traço, maior a concentração de hormônios). Veja que a criação de um “rodoanel” e rotas alternativas para se chegar ao centro da colônia é um dos comportamentos mais marcantes e talvez essencial para a dinâmica de comunicação do grupo. Essa geometria também permite otimizar a exploração e captura de alimentos.

 

Ainda entre os insetos, acho que a descoberta mais fascinante de Iain diz respeito as rotas migratórias de grilos. As peregrinações de grilos são conhecidas há muito tempo. Descrições do fenômeno estão presentes em diversas obras literárias, preocupando líderes mundiais, poetas e cientistas. Os enxames chegam a cobrir um terço do planeta, destruindo toda a vegetação por onde passam. A praga afeta sociedades humanas: uma em cada dez pessoas sofrem economicamente com as consequências dessa migração. Como essa massa de insetos começa a migrar é um grande mistério.

 

Iain descobriu, por acaso, que os grilos não são necessariamente vegetarianos, mas curtem uma proteína enquanto estão crescendo. E a melhor fonte proteica desses insetos adolescentes são eles mesmos. Essa observação levou Iain a propor que a força motora do movimento de migração é justamente a fuga dos grilos que nasceram primeiro, os que vão na frente. Para provar que o canibalismo é realmente o responsável pelo enxame, foram feitas cirurgias em alguns indivíduos, cortando o nervo que transmite a dor pelo abdômen. Esses animais não sentiam necessidade de marchar pra frente quando observados numa arena artificial e acabavam morrendo, sendo devorados pelos que vinham atrás. Pois é, mordidas no traseiro parecem ser o grande motivador dessas marchas bíblicas devastadoras.

 

Todos esses modelos podem ser aplicados em escalas diferentes, como no comportamento de átomos, moléculas, células e redes neurais. A aplicação dessa modelagem em populações humanas parece estar próxima. Sistemas de segurança ou mesmo agências de publicidade poderão beneficiar-se desse conhecimento. Talvez o mais intrigante seja entender como alguns indivíduos conseguem mobilizar milhares de pessoas apenas com carisma e ideias. Esse tipo de trabalho promete grandes insights antropológicos.



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