Receita para virar ‘gênio’: 10 mil horas de dedicação apaixonada

ter, 21/09/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Sempre me irritei com a ideia de que existam superdotados, gênios fora-da-curva na população, muito superiores cognitivamente do que a maioria das pessoas. A razão dessa irritação é que eu nunca encontrei uma pessoa que pudesse realmente chamar de gênio. Pessoas cultas, inteligentes sim, mas gênio eu nunca vi.

Foi no meu primeiro ano de pós-doutoramento nos EUA que tive a oportunidade de conhecer cientistas que haviam feito descobertas importantes na biologia, as quais eu admirava. Entre eles, alguns prêmios Nobel. Era um encontro anual, promovido pela fundação Pew, que financiava minha bolsa na época. Iria me reunir pela primeira vez com gênios em potencial. Eu e outros brasileiros estávamos super ansiosos para o encontro.

A possibilidade de encontrar um gênio pela primeira vez me fez perder a timidez e conversar ativamente com diversas personalidades da academia americana, além dos concorridos prêmios Nobel. O sotaque curioso e o fato de ser brasileiro contribuíram para facilitar o entrosamento, afinal já chegamos rotulados de exóticos. Papo vem, papo vai, chego ao final do congresso decepcionado, pois nenhuma daquelas pessoas era um gênio para mim. Não me interpretem mal: os pesquisadores foram excelentes, com uma visão científica e crítica muito mas apurada que a média. Realmente inteligentes, sem sombra de duvida. Gênios, fora-da-curva? Não.

Minha opinião contrastava radicalmente com a de meus entusiasmados colegas, que não paravam de elogiar o quão geniais eram esses caras. Nem ousei verbalizar o que tinha achado com medo de parecer convencido. Pior, podia muito bem ser minha reduzida capacidade mental que não sabia apreciar a genialidade dos geniais. Tudo bem, estava pronto para aceitar o fato e tentar melhorar. Mas acho que a maior razão para essa minha opinião vem do fato de que as pessoas bem-sucedidas em determinadas áreas dominam muito bem apenas a sua arte. No entanto, não demonstram a mesma fluência em contextos diferentes. Durante o papo com aqueles cientistas moleculares, percebi que sabiam tanto de economia quanto eu.

Mais para frente em minha carreira, decidi organizar uma série de seminários, com pesquisadores bem-sucedidos. A proposta era ter, por uma hora, o palestrante discorrendo sobre sua carreira, criatividade, como as ideias afloram etc. Consegui financiamento do instituto (na época estava no Salk, em La Jolla) e comecei a convidar as personalidades. O convite era sempre aceito com muita empolgação e curiosidade sobre esse novo conceito de seminário. Durante dois anos, trouxe convidados famosos no meio acadêmico, de Oliver Sacks até diversos Nobéis. Todos brilhantes, interessantes, nenhum gênio.

Recentemente encontrei alguém que pensa parecido. Na verdade, vai além. É um desmascarador de gênios. O autor, Malcolm Gladwell, chegou a escrever um livro sobre isso (Outliers ou “Fora de Série” em Português), onde descreve a história de diversas personalidades “geniais” e como foi que se destacaram em suas respectivas artes sem precisar de um QI anormal. Entre os gênios desmascarados, encontram-se Bill Gates, Mozart e até os Beatles.

O autor explora o conceito da pequena vantagem inicial. Segundo essa ideia, aqueles que foram favorecidos em estágios iniciais de suas carreiras teriam mais chances de ser bem-sucedidos no futuro por causa de um acúmulo gradual de oportunidades. Além disso, o autor aponta duas outras características das celebridades (não no conceito deturpado, coloquial, mas no conceito real, daquele que fez algo célebre). Primeiro, o oportunismo. Bill Gates só conseguiu ser programador na sua época de estudante porque teve acesso a um dos únicos computadores que permitiam programação direta nos EUA.

A outra característica são as dez mil horas de dedicação exclusiva. Lennon e Paul só deram o salto criativo com os Beatles depois de dez mil horas tocando num strip club em Hamburgo nos anos 60. Mozart só tocava música dos outros aos 13 anos, aos 17 era considerado bom, mas só depois dos 23 é que virou um virtuose. Durante os treinos, acumulou as dez mil horas necessárias para o salto qualitativo. A hipótese foi testada com jogadores de xadrez e, aparentemente, funcionou. O “talento” para jogar xadrez como um mestre “aparece” depois de anos de prática exclusiva.

Vale notar que, em todos os exemplos, a vantagem inicial, o oportunismo e as dez mil horas de treinamento não garantem que você se torne uma celebridade instantânea. Existe um algo mais que é essencial. Isso eu aprendi conversando com os palestrantes que vinham contar suas histórias. Posso dizer que a maioria, de uma forma ou de outra, se qualificava no processo de criação de Gladwell. Mas o que faz a pessoa realmente especial é a paixão pelo assunto. A paixão é que faz você passar pelas dez mil horas de trampo como se fosse um hobby. Talvez seja por isso que os gênios só estão acima da média quando o assunto é apaixonante para eles.

Por isso mesmo, acho uma babaquice escolas ou programas para superdotados ou pais que se gabam que o filho começou a ler aos 2 anos de idade, muito antes dos outros amiguinhos. É tão importante assim a leitura dos livros aos 2 anos de idade? O que realmente importa é o que a criança vai fazer com essa vantagem daqui a alguns anos e não com 2, 8 ou 11 anos de idade. Eles ainda vão precisar de uns 20 anos até fazer alguma contribuição especial para a humanidade.

Uma pesquisa nos EUA, que acompanhou a trajetória de vida de crianças com os mais altos QIs de uma geração, mostrou que eles não se deram melhor que o resto. A maioria das pessoas de sucesso tem QI na média da população da sua geração.

Mas talvez realmente existam casos reais de genialidade inerente. A grande variabilidade cognitiva humana permite essa possibilidade. Mas para a grande maioria dos casos, a minha conclusão é simples: aqueles classificados de “gênios” não têm um talento natural, mas uma paixão obsessiva pelo que fazem. A paixão sozinha não vai garantir o sucesso, mas é o primeiro passo. Sem esse amor incondicional por uma atividade, você jamais será classificado como genial.

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Uma década de ‘livre acesso’ científico

seg, 13/09/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A ideia de tornar as publicações científicas da área de saúde “abertas”, ou seja, de livre acesso na internet completa dez anos. A idéia inicialmente surgiu de um grupo de biólogos que notaram que os jornais científicos estariam se tornando cada vez mais caros, de difícil acesso a pacientes ou outros profissionais da área de saúde. Até mesmo outros cientistas estariam tendo dificuldade em acessar os trabalhos publicados, pois nem toda biblioteca possui condições financeiras de arcar com as assinaturas dos jornais científicos atuais.

Duas propostas emergiram desse grupo. Primeiro, cientistas deixariam as publicações disponíveis num repositório por um determinado período e qualquer pessoa com acesso à internet poderia ler ou baixar os artigos naquele intervalo. Segundo, criaram um tipo de jornal em que os autores pagariam uma determinada taxa para publicar os resultados. Assim, o jornal teria uma forma de se financiar por meio dos próprios pesquisadores em vez de depender de assinaturas do público. Essa taxa poderia sair das fundações que financiam a pesquisa, sejam governamentais ou privadas. O jornal então disponibilizaria a pesquisa tão logo fosse aceita para publicação. Estava criado então o conceito de publicação de acesso livre, conhecida no meio como “open access”.

A premissa era que a ciência caminharia mais rapidamente, pois qualquer um poderia ver os resultados publicados imediatamente, facilitando colaborações etc. Além disso, o modelo deixaria a pesquisa mais próxima dos pacientes, médicos e outros interessados e não apenas aos acadêmicos ou pesquisadores.

Vale lembrar que no modelo “open access”, assim como nos casos de publicações tradicionais, a revisão dos pares continua sendo a estratégia para determinar se um trabalho tem mérito para ser publicado ou não. Para aqueles não familiarizados com o esquema científico, toda vez que um trabalho é proposto para uma revista, os editores buscam a opinião (em geral anônima) de outros pesquisadores da área. Salvo em revistas mais interessadas no impacto da pesquisa do que na ciência em si, um parecer positivo garante a publicação no jornal.

Um dos jornais mais expressivos nesse linha é a revista “PLoS ONE” (Public Library of Science ONE). O jornal tem atraído muitos pesquisadores e tem sido alvo de controvérsias no meio acadêmico. O jornal publica 75% dos artigos submetidos, o que é uma taxa excepcionalmente alta. Ou seja, o trabalho tem que ter algum defeito fundamental no design experimental ou interpretação dos resultados para não ser publicado. Sendo razoável, o artigo será aceito e publicado.

No último ano, o jornal publicou cerca de sete mil artigos, tornando-se a maior revista científica da atualidade. Tamanho sucesso permite que o jornal se sustente financeiramente, além de permitir a existência de outros jornais da mesma família, jornais com uma porcentagem de aceite mais rigorosa. Logicamente que esse modelo estimula a justa preocupação de que a revista estaria interessada mais em quantidade do que qualidade.

Hoje em dia, entre 7% e 11% de todos os jornais científicos oferecem alguma forma de “open access”. Apenas 20% dos artigos científicos estão disponíveis de graça na internet. A projeção é de que exista um crescimento de 1% ao ano. Esse crescimento, por menor que seja, tem despertado uma reação das editoras tradicionais. Esses jornais agora estão flertando com essa ideia, apostando em alguma forma de acesso livre que também seja viável financeiramente. Como no caso da PLoS ONE, uma alternativa é a criação de um jornal satélite de livre acesso. Outra saída é através de revistas híbridas. Nesse último caso, os autores pagariam uma taxa extra opcional para deixar o artigo aberto.

No entanto, isso ainda acontece de forma muito suave, talvez porque seja cedo para apostar no livre acesso como uma forma de negócio rentável. Por outro lado, talvez não haja opção num futuro próximo: as revistas vão sentir a pressão das agências de fomento, ou mesmo das comunidades de médicos e pacientes, que exigem a publicação do trabalho em acesso livre.

Faz sentido, na maioria dos casos. O trabalho é financiado por associações de pacientes ou governamentais, com dinheiro público. É com esse raciocínio que o Congresso americano está debatendo a requisição de publicação aberta para grupos de pesquisa que recebam verba do governo federal. Atitudes semelhantes já ocorrem em alguns países da Europa, como Inglaterra.

Com o crescimento vagaroso e uma certa polêmica sobre a qualidade da pesquisa publicada nos jornais “open access”, não acho que o modelo vá dominar o futuro próximo. Muito provavelmente teremos algo em paralelo.

Talvez uma alternativa para conciliar as duas ideias seja uma forma de “iResearch”, como referência ao “iTunes” (programa da Apple que permite a compra de músicas individuais ou em álbum). Nesse modelo científico, o interessado não precisaria comprar a revista inteira (ou no caso do iTunes, o álbum com todas as músicas), mas apenas os trabalhos que interessam (no caso do iTunes, apenas as músicas daquele álbum que você mais aprecia).

Esse modelo não acabou com o mercado de CDs, mas oferece uma opção, aumentando ainda mais o comércio musical. Lógico que para isso funcionar no esquema acadêmico, o preço de cada artigo individual teria que ser bem razoável. Bom, talvez o modelo não funcione mesmo num mercado que não tenha tantos consumidores assim (será?).

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