Para Charles Darwin, a origem da religião não era segredo. “Assim que os importantes traços cognitivos relacionados à imaginação, questionamentos e curiosidade juntam-se ao poder do raciocínio, o homem passa a desejar a conhecer as razões dos fenômenos que o cercam, especulando vagamente sobre sua própria existência…”, escreveu Darwin em “The Descent of Man”, na minha tradução livre.
No entanto, a “fé” sempre causou perplexidade a Darwin. Toda sociedade humana teve deuses. Sejam góticos, mitológicos ou maias, eles sempre estiveram presente. Em todas as culturas, os homens colocam esforços significativos na elaboração de catedrais, rituais. Sem nenhuma vantagem aparente na sobrevivência ou reprodução da população. Então, porquê e como a religião surgiu?
Não existe consenso entre os especialistas, mas novas ideias estão surgindo com a junção das disciplinas de arqueologia e estudos da mente. Esse campo emergente explora a hipótese de que a religião seria uma consequência natural da mente humana. Ou seja, os caminhos evolucionários que teriam criado nosso sofisticado cérebro, também teriam sido responsáveis pela crença no sobrenatural.
A afirmação é baseada em dados recentes que sugerem que os humanos teriam a tendência de procurar sinais de “agentes”, ou mentes como a nossa, no mundo natural. Em paralelo, arqueólogos buscam indícios de religião através da relação com outra atividade cognitiva humana: o comportamento simbólico levando a sociedades mais complexas. Esses dois campos tem se desenvolvido muito, mas a distância entre as evidências físicas arqueológicas e os modelos teóricos da neurociência ainda é enorme.
Através de objetos achados durante escavações arqueológicas, cientistas tentam unir o uso de símbolos com a emergência da espiritualidade humana. Cerca de 100 mil anos atrás, povos no sul da África, nas cavernas de Blombos, rabiscaram figuras geométricas em alguns objetos. Apesar de não ser possível associar esses registros com religião, é razoável pensar que o pensamento simbólico seria um pré-requisito para o comportamento espiritual.
Num período próximo, cerca de 95 mil anos atrás, encontrou-se esqueletos humanos em Qafzeh, Israel, sugerindo rituais de velório. Neandertais, há uns 65 mil anos atrás, também velavam seus mortos em algumas circunstâncias. Seriam essas as primeiras evidências de uma angústia metafísica?
Talvez tudo isso seja muito subjetivo para alguns, mas as pinturas dos caçadores da era do gelo são mais convincentes. Cerca de 30-35 mil anos atrás na Europa, temos o florescer do expressionismo simbólico, no período conhecido como a explosão do Paleolítico Superior.
Pinturas bem realísticas, retratando criaturas – meio-homem meio-animal – foram encontradas nas paredes das cavernas de Grotte Chauvet, na França. Também foram achadas pequenas esculturas em cavernas da Alemanha, incluindo uma “Vênus” e três “Homens-leão”, os primeiros seres quimeras.
A tal da Vênus ilustra bem a dificuldade em se conciliar as interpretações dos pesquisadores. Se por um lado, a mulher sem cabeça, com seios fartos e uma detalhada genitália é considerada como uma deusa da fertilidade, por outro lado, outros a consideram um típico exemplo de “paleo-porno”. Afinal, assim como a religião, a pornografia também sempre esteve presente em qualquer sociedade humana.
Ainda seguindo pistas arqueológicas, templos de 11 mil anos atrás foram achados em Gobekly Tepe, na Turquia. Ali, encontraram-se diversas esculturas de animais selvagem, indícios de velórios e de remoção do crânio. Mesmo assim, é difícil vincular esses achados com a adoração a deuses, a não ser que as culturas comecem a chamá-los por nomes específicos. Nesse caso, nos resta as culturas literárias da Mesopotâmia e Egito, cerca de 5 mil anos atrás. Nesses impérios, fica claro o poder e temor aos deuses nas escrituras.
Teriam sido doutrinados a crer ou já teriam nascidos crentes?
Segundo as novas ideias que estão emergindo de um modelo de religião cognitivo, humanos seriam tão especializados em compreender sinais e desejos de outros que se tornaram supersensíveis a “agentes” causadores. Essa sensibilidade seria uma consequência de uma hipertrofia cognitiva social, criando uma tendência em nosso cérebro de atribuir a um outro ser eventos estocásticos ou fenômenos naturais. Seríamos intuitivamente teístas por natureza.
Pesquisas recentes têm mostrado que crianças em idade pré-escolar preferem explicações teológicas a mecanísticas no que se refere a fenômenos naturais. Quando questionadas se as pedras seriam pontiagudas porque são constituídas por pequenas quantidades de matéria ou para proteção de animais que queiram sentar-se nelas, as crianças optam pela última explicação. Elas buscam uma qualidade animada para a pedra.
O valor de estudar isso em crianças é que elas podem distinguir melhor o que é inato do que é cultural. Mas é interessante notar que testes semelhantes, feitos em adolescentes sob pressão de responder rápido, resultaram em dados semelhantes. Pode ser que, sob pressão, nosso cérebro haja instintivamente, optando por explicações não científicas.
Essa disposição criacionista ecoa junto com uma outra tendência do cérebro humano: nosso supersensível detector de “agentes”, isto é, a capacidade de procurar por seres racionais mesmo em objetos inanimados. Num clássico experimento da década de 40, psicólogos notaram que pessoas assistindo animações de círculos, triângulos e quadrados tinham a inclinação de associar as formas geométricas a personagens, até mesmo criando narrativas em eventos aleatórios.
É o famoso barulho no meio da noite. Pensamos logo: quem está aí? É uma pergunta que surge quase instantaneamente. A tendência de procurarmos um agente pode ter sido programada em nosso cérebro pela evolução através de uma seleção natural que favoreceu falsos positivos. Afinal, um barulho no meio da noite pode muito bem ser um ladrão (ou um leão), nos colocando em estado de alerta.
Logicamente que isso está longe de ser uma explicação para a crença em deuses ou espíritos. Outra peça cognitiva que se encaixa perfeitamente nessa ideia vem da “teoria da mente” (conceito já discutido em colunas anteriores). A teoria da mente nada mais é do que a capacidade que temos de entender que um outro ser também tem uma mente, com intenções, desejos e crenças dela mesma.
Essa capacidade é desenvolvida com o tempo, sabe-se que só a adquirimos por completo depois dos 5 anos de idade, e nos auxilia a navegar nas complicadas relações sociais humanas. Enquanto o cérebro de um chimpanzé esta programado para lidar com relações pessoais num grupo de 50 indivíduos, o humano pode encarar até 150 pessoas.
Mas se já suspeitamos que um agente é o responsável por um evento misterioso, estamos a um passo pequeno para começarmos a imaginar que esse agente tem uma mente que funciona de forma semelhante à nossa. Oras, é lógico que o ladrão tropeçou no meio da noite procurando algo pra roubar. Elevando-se esse conceito a uma dimensão mais sofisticada, chegamos a uma rica representação do que deve ser a mente de um Deus. Passamos a atribuir desejos, paixões, ódio e vingança a um “agente-Deus”, da mesma forma que as sentimos.
Além disso, devemos estar também programados para não aceitar a morte da mente. Experimentos com crianças, mostrando um boneco de rato sendo engolido por um boneco de jacaré, mostrou que elas entendem a morte carnal, isto é, compreendem que o rato não precisa mais se alimentar, por exemplo. Mas falham em identificar a morte da mente.
Continuam a achar que o rato pode ter fome ou que estaria preocupado com seu irmão, indicando a persistência do estado psicológico, mas não físico. A separação da mente e corpo é comum em muitas religiões, retratada na vida após a morte ou reencarnação, sugerindo que talvez seja um fator humano universal na sua essência.
Nosso cérebro social pode explicar porque crianças são atraídas por animais falantes e fadas voadoras, mas religião é muito mais que isso. Derivar crenças a partir da arquitetura cognitiva da mente é, sem duvidas, necessário, mas não suficiente.
A velha alternativa continua valendo: a religião promove um comportamento cooperativo entre indivíduos desconhecidos e assim cria grupos estáveis capazes de adaptação em circunstâncias mais desafiadoras, como o frio intenso ou escassez de alimento. A religião melhoraria a sobrevivência e reprodução de seus membros.
Em suporte dessa ideia, vale lembrar que os homens são mais propensos a um comportamento altruísta e solidário se sabem que estão sendo vigiados. Dessa forma, a presença onipotente de um Deus supernatural e preocupado com a moralidade serve de estímulo ao comportamento altruísta, especialmente em grupos grandes ou quando o anonimato é possível. Mas existem poucas evidências científicas de que esse é realmente o caso. Faltam estudos investigando se os indivíduos realmente seguem todos os princípios da religião a que pertencem.
Acompanho essa discussão há um tempo e acredito que os objetos arqueológicos respondem apenas a um pedaço das questões e os modelos cognitivos ainda estão muito baseados em especulações. Mesmo assim, a forma como diferentes disciplinas têm convergido para a resolução desse problema sugere um aumento no interesse sobre o assunto.
Espero ver uma transformação nos próximos dez anos, com novas evidências e mais dados apontando para o porquê e como as religiões de fato surgiram e dominam sociedades humanas.