Num piscar do cérebro

seg, 19/07/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Blog-Olhos-2Diversas vezes ao dia piscamos o olho. Em teoria, a cada piscada experienciamos um momento de completa escuridão. A cada minuto, temos 6 segundos de completa escuridão que, somados por toda a vida, seriam alguns anos passados no escuro, inconscientes mesmo estando acordados. Por que isso acontece? A ideia é que o cérebro interpreta a piscada, editando os momentos escuros da nossa experiência.

E por que piscamos? Não me refiro a piscadas induzidas, códigos de corte ou qualquer outra forma de comunicação. Qual seria a real razão daquela piscada involuntária? A maioria das pessoas vai acabar respondendo que piscamos para lubrificar o olho. Mas, se fosse isso mesmo, piscaríamos menos em ambientes mais úmidos ou piscaríamos mais em dias secos, por exemplo. Pois não é que cientistas testaram essa ideia, comparando a quantidade de piscadas de pessoas dentro e fora de saunas? Resultado: a umidade não afeta a frequência de piscadas.

Novos conceitos sobre o assunto surgiram de um “piscólogo” amador: Walter Murch, que escreveu o livro “In the Blink of an Eye”. Cinéfilos vão reconhecer esse nome. Walter é editor de filmes famosos, como O Poderoso Chefão. Sua atividade como editor consiste em retirar cenas que não serão usadas e unir pedaços do filme que foram gravados de forma independente. Quanto assistimos a um filme editado e vemos as diversas tomadas, os vários ângulos de uma mesma cena, interpretamos tudo isso como se fosse um contínuo. Na realidade, a cena final é fruto de um árduo trabalho de edição.

Walter tem uma técnica especial para emendar cenas de um filme. O que ele faz é assistir a cena a ser editada diversas vezes seguidas e, intuitivamente, para a cena quandoacredita que deva ser cortada e unida com outra parte. A intuição é confirmada repetindo-se o processo diversas vezes, até encontrar o momento exato em que acontece a maioria dos cortes.

Em cenas envolvendo pessoas, Walter notou que o momento do corte da cena é justamente quando o ator pisca. A partir dessa observação, ele criou uma teoria para o significado do piscar em humanos. Não seria induzido pela umidade do globo ocular ou ambiente, mas as piscadas funcionariam como uma forma de pontuação mental. Uma ideia certamente atraente, mas sem nenhuma base científica.

Mas dois pesquisadores japoneses, Tamami Nakano e Shigeru Kiazawa, resolveram testar essa hipótese experimentalmente. Eles fizeram o experimento com uma série de indivíduos, aplicando eletrodos nas pálpebras de cima e de baixo do olho de cada pessoa. Com a piscada, os eletrodos se aproximavam, produzindo uma corrente elétrica sensível o suficiente para que pudesse ser gravada pelos pesquisadores.

Os indivíduos assistiram a uma película enquanto eram observados. Cada um viu o mesmo filme três vezes. O filme escolhido foi Mr. Bean, uma comédia britânica com pouquíssimos diálogos verbais. A maioria das cenas cômicas são mudas, restando apenas o estímulo visual. Num filme de 2 horas, você perde algo em torno de 16 minutos piscando. O pior, nem percebemos que perdemos isso tudo.

Os resultados obtidos foram surpreendentes. Cada pessoa pisca nos exatos mesmos momentos ao ver o filme repetidamente. Pode-se prever quando uma pessoa vai piscar em cada cena. Mas mais estranho ainda, as cenas eram comuns entre diferentes pessoas. Ou seja, eles descobriram que a grande maioria das pessoas entravam em sincronia, piscando exatamente nos mesmos momentos do filme.

Para se ter uma ideia dos resultados, imagine a cena: você num cinema com 200 pessoas. Fica escuro, o filme rola e você começa a assistir. Na sua primeira piscada, outras 70 pessoas piscam exatamente ao mesmo tempo junto com você, inconscientemente, como asas de borboletas batendo ao mesmo instante.

A explicação parece ser que as pessoas se sincronizam de forma intuitiva com a história do filme. As piscadas tendem a acontecer entre cenas menos importantes, hiatos na história. A sincronicidade das piscadas aconteciam geralmente na conclusão de uma ação do ator. Por exemplo, numa das cenas Mr. Bean entra numa sala e fecha a porta. No momento exato em que o ator termina de fechar a porta, naquele milésimo de segundo, todo mundo pisca.

Cientistas afirmam que o cérebro não permite perder momentos importantes na história, usando a piscada como uma forma de pontuação do pensamento. A questão sobre o motivo da piscada ainda não foi respondida ou mesmo por quê piscamos de qualquer forma. Será mesmo que só conseguimos processar a vida em pedaços? Em curta-metragem?

Bom, talvez seja isso mesmo. Só processamos ideias curtas e precisamos de intervalos para “salvar” as ideias antes de começarmos a interagir com outras. A piscada seria o momento que o cérebro encontra para estocar a informação e seguir em frente. Certamente algo fundamental a ser descoberto sobre o cérebro e que pode trazer pistas sobre a evolução da cognição humana.

Será que a frequência das piscadas vem se alterando com as gerações? Como medir isso? Poderíamos usar filmes antigos ou teríamos que medir agora e esperar que alguém faça a comparação no futuro? E qual a diferença da frequência de piscadas entre nossos “primos” mais próximos, como chimpanzés e bonobos?

Tudo o que você sempre quis saber sobre tratamentos com células-tronco

sex, 09/07/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Células-tronco

Crédito: Cleide Souza / Lance-RJ

É fácil de encontrar algum conhecido que tenha esperança no potencial extraordinário dos tratamentos terapêuticos com células-tronco. O assunto é controverso mesmo no meio médico. Cientistas também não escapam da confusão, afinal são diversos tipos de células-tronco com diferentes aplicações. Simplesmente não dá pra saber tudo o que está acontecendo. Nessa situação, a sociedade sai perdendo, pois não tem acesso a informações atualizadas, não sabe quais os tratamentos disponíveis. Pior, fica sem saber se pode ou não confiar em tal clínica, quanto custa o tratamento ou se é realmente seguro e eficaz.

Células-tronco estão na mídia o tempo todo, mas a informação que chega até o paciente é pulverizada. Foi com a intenção de centralizar essas informações e facilitar a transmissão dos dados sobre tratamentos disponíveis a pacientes e profissionais de saúde que a Sociedade Internacional de Pesquisa com Células-Tronco (ISSCR, na sigla em inglês) lançou recentemente um portal de acesso para a comunicação dos avanços em células-tronco na área clínica (https://www.closerlookatstemcells.org//AM/Template.cfm?Section=Home).

O ISSCR é uma sociedade internacional sem fins lucrativos cujo objetivo é a divulgação dos avanços na área de células-tronco. Participo da sociedade desde sua criação, em 2002, e sempre admirei a forma como é liderada, com uma mistura balanceada de cientistas, pacientes e clínicos. O lançamento desse portal ressalta a preocupação da ISSCR com a transmissão da informação ao público, de forma transparente e sem preconceito.

O portal é bem organizado, de fácil navegação e com linguagem leiga, acessível. A grande desvantagem para o público brasileiro é que a página não tem tradução para o português. Por outro lado, as vantagens são muitas. Além de listar diversas informações úteis e vídeos de cientistas discutindo terapias, oferecidos através de um sistema de busca simples, o portal é interativo e permite a avaliação independente de clínicas em qualquer lugar do globo que ofereçam tratamentos com células-tronco.

O paciente que considera um tratamento é auxiliado na avaliação do método e da clínica que o oferece. Uma série de questões são sugeridas para o paciente perguntar ao médico sobre o procedimento. Talvez mais importante seja a ferramenta que permite recomendar uma clínica para uma revisão científica e médica rigorosa feita pela ISSCR. O órgão vai avaliar a base cientifica, o procedimento clínico, as condições, os profissionais e a eficácia do tratamento, confirmando ou não se existe fraude envolvida.

O protocolo de avaliação levará alguns meses e será padrão. O comitê é formado por membros internacionais, evitando qualquer tipo de preconceito contra o tratamento oferecido. A ISSCR preferiu seguir esse procedimento ao invés de apenas listar as clínicas que considera de baixa qualidade, o que poderia ser algo certamente tendencioso. O racional da avaliação e o protocolo a ser utilizado foi publicado recentemente por um grupo multidisciplinar (Taylor e colegas, Cell Stem Cell 2010). A ideia é evitar que as clínicas se aproveitem do desespero do paciente, cobrando por um tratamento não provado ou ainda experimental. Todos os resultados serão publicados online. Acredito que, com o tempo, as próprias clínicas (pelo menos as mais sérias) vão fazer questão de ser validadas pela ISSCR, ganhando um selo de confiança e atraindo mais clientes.

Achei a idéia da avaliação internacional fantástica, pois permite que clínicas fora dos EUA ou Europa, que não sofrem com a lentidão dos padrões altamente rigorosos dos órgãos de saúde (o FDA americano e EMA europeu), de conseguir atrair atenção mundial com tratamentos efetivos, mas que sofriam preconceitos. Isso deve fortalecer a imagem da pesquisa clínica desses países, levando a publicações em revistas de alto impacto, por exemplo. A meu ver, ótima oportunidade para o Brasil.

Outra parte sensacional desse portal é dedicada ao processo de geração do conhecimento científico que leva a um protocolo clínico. Nessa seção, intitulada de “How science becomes medicine”, está descrito em detalhes e com linguagem clara quais são os passos que a ciência tem que seguir para descobrir e confirmar a eficácia de um tratamento.

As células-tronco exercem hoje um papel único na história da medicina. Pacientes desesperados pela cura, depositam todas as esperanças em tratamentos derivados das pesquisas com células-tronco. A dura realidade é que, salvo algumas doenças sanguíneas, as células-tronco não “curaram” nada até agora. O sonho da cura não pode ameaçar a qualidade da ciência. As direções a seguir no futuro só devem ser decididas pelos resultados gerados nos laboratórios e não por sonhos. A ciência é a única atividade humana que poderá transformar esperanças em realidade.

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Você não é só você: carregamos células maternas na maioria de nossos órgãos

seg, 05/07/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

microquimerismo_595Apesar de ser um campo de pesquisa novo e não muito na moda, os dados são surpreendentes e prometem influenciar interpretações biológicas e filosóficas sobre individualidade e relação mãe-filho. Estudos recentes indicam que a transferência celular entre o feto e a mãe durante a gestação é um fenômeno comum. E que a troca de células persiste nos dois indivíduos anos após o nascimento. Essa troca também pode acontecer entre gêmeos no útero ou – ainda não confirmado –, durante um aborto espontâneo.

Microquimerismo é o nome dado ao fenômeno biológico referente a uma pequena população de células ou DNA presente em um indivíduo mas derivada de um outro organismo geneticamente distinto. Eventos naturais de microquimerismo estão sendo conectados a doenças autoimunes – como o caso de escleroderma e lúpus. Além disso, a presença de microquimerismo em células do coração de indivíduos infartados sugere que o fenômeno possa contribuir com o reparo natural de certos tecidos do corpo.

Pesquisas nessa área começaram a partir de estudos de rejeição de tecidos transplantados. Era curioso observar a falta de rejeição de órgãos entre indivíduos não compatíveis. Apesar de raros, esses casos despertaram a curiosidade de pesquisadores que passaram a procurar formas de explicar a integração do tecido transplantado na ausência de uma reação imunológica.

Utilizando-se de sondas especificas para o cromossomo Y (aquele presente só em homens), foi revelado que diversos tecidos de mulheres que haviam passado por um transplante continham células masculinas. A observação mais impressionante foi que essas células masculinas não se limitavam apenas ao tecido transplantado, mas podiam ser encontradas espalhadas por diversos órgãos da mulher.

Até aí, a explicação mais óbvia seria que células transplantadas teriam migrado e se inserido em outros tecidos do corpo da mulher receptora. A explicação parecia verossímil até que se descobriu que o fenômeno também ocorria em algumas mulheres que nunca haviam recebido transplante algum. De onde estariam vindo as células masculinas no corpo dessas mulheres?

A análise do histórico médico revelou uma correlação extremamente curiosa: apenas as mulheres que tiveram filhos homens antes do teste apresentaram microquimerismo masculino. Essa correlação levou à interpretação de que existe uma troca natural entre células do feto e maternas durante a gravidez. Isso também explicava a falta de rejeição em algumas mulheres, pois o microquimerismo celular era mais frequente e havia estimulado o sistema imune do transplantado anteriormente.

Essa quebra de dogma (de que somos feitos unicamente a partir de nossas células embrionárias) estimulou estudos em doenças autoimunes. Em diversos trabalhos realizados, níveis de DNA masculino estavam presentes em quantidades significativamente maiores em tecidos de mulheres com esclerose sistêmica quando comparados com mulheres sadias. Todas as mulheres com esclerose sistêmica haviam tido filhos homens. Esses dados foram reproduzidos em modelos animais, utilizando-se camundongos fêmeas.

Os estudos não são completamente conclusivos ainda. Pode-se argumentar, por exemplo, que o nível de microquimerismo aumentou em função da própria doença. Segundo essa visão, as células masculinas estariam proliferando como consequência da doença, e não como causa.

Em outra doença autoimune, o lúpus em neonatos, a interpretação é semelhante. Nessa doença, o neonato com baixo sistema imunológico estaria mais propenso a receber células maternas, aumentando o microquimerismo. Estudos subsequentes nesses pacientes mostraram que as células maternas persistem na pessoa adulta, especializando-se em diversos tecidos e tornando-se parte integral do corpo do indivíduo.

Em adição aos trilhões de células derivadas do óvulo fertilizado que fomos um dia, cada um de nós possui células adquiridas de um outro organismo, geneticamente distinto. No útero, as recebemos através de uma infusão de nossas mães. Mulheres grávidas também coletam uma amostra derivada do embrião em desenvolvimento. Que essas células cruzem a placenta não é novidade. Afinal de contas, o tecido que conecta a mãe ao feto não é uma barreira impenetrável, mas uma fronteira seletiva, permitindo a passagem de nutrientes e fatores necessários ao desenvolvimento do feto. O que é novidade é que as células trocadas persistem no organismo receptor, residindo em diversos órgãos.

Essas células têm a capacidade de contribuir para o reparo de tecidos danificados ou mesmo ser alvo de doenças autoimunes. Portanto, esse microquimerismo parece contribuir tanto para a saúde quanto para a doença, dependendo da situação. Essa área de estudo é relativamente recente em biologia e, como toda disciplina atípica, requer um estágio de estabelecimento até que a massa de cientistas preste atenção e reconheça o fenômeno como relevante.

Intuitivamente, sinto-me feliz sabendo que carrego um pouco de minha mãe comigo. Acho que o mecanismo pode ser visto, primeiramente, como uma forma adicional de proteção materna, mas que nos acompanha pela vida inteira. De qualquer forma, me faz pensar: se carrego um pouco de células maternas protetoras na maioria de meus órgãos, qual será então o impacto de neurônios da minha mãe no meu cérebro?

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