Cheirando perigo
Compreensão da resposta inata a odores servirá no futuro para desenvolver intervenções terapêuticas em casos como síndrome do pânico ou estresse pós-traumático
Animais conseguem cheirar a presença de potenciais predadores por meio da detecção de sinais químicos que sinalizam perigo. Essa percepção do odor do perigo permite uma série de ações premeditadas, como o afastamento físico ou avaliação do risco, garantindo a sobrevivência da presa.
Camundongos expostos a predadores naturais, como gatos ou serpentes, exibem um repertório de comportamentos que se assemelham ao “medo” em humanos. Interessante notar que a presença do odor dos predadores já é suficiente para estimular esse mecanismo em camundongos, sugerindo que o sistema olfativo tem papel fundamental nesse processo.
Um experimento clássico mostrou que camundongos tendem a ficar a maior parte do tempo isolados no canto da gaiola oposto a uma estopa molhada com urina de gato. Além disso, níveis hormonais de estresse aumentam nesses animais. Esse comportamento defensivo de repulsa reproduz-se com odores de outros predadores, como serpentes ou ratos. O fato de que essas observações tenham sido reproduzidas em camundongos de laboratório, nunca expostos a predadores naturais, sugere que a resposta aos odores é inata ou instintiva, e não aprendida durante a vida do animal. Também conclui-se que a organização dos circuitos neuronais responsáveis por esse comportamento é programada geneticamente.
Um defeito que cria coragem
No entanto, a contribuição dos órgãos olfativos, a natureza química dos odores e a identidade dos neurônios sensoriais envolvidos nesse tipo de comportamento eram desconhecidos. Mas uma observação feita pelo brasileiro Fabio Papes, membro de um grupo de pesquisa do Instituto Scripps de San Diego, na Califórnia (EUA), trouxe uma contribuição valiosa para esse processo fundamental. O trabalho foi publicado recentemente numa das mais prestigiosas revistas científicas (Papes e colegas, Cell 2010).
Papes percebeu que camundongos geneticamente alterados e defectivos em uma região do olfato conhecida como órgão vomeronasal (VNO) não evitavam a presença de predadores no mesmo ambiente. Na verdade, até procuravam uma interação investigativa, correndo risco de vida. Veja bem, isso acontecia mesmo na presença funcional de outros sentidos, como o sistema visual. Concluiu-se que o VNO seria então a região do olfato responsável pelo comportamento instintivo de medo do predador natural. O grupo de pesquisadores decidiu então encontrar qual a natureza dos odores dos predadores.
Focou-se primeiramente na urina de rato como material primário. Fracionaram-se os componentes da urina até encontrar o principio ativo, chamado de Mup13. A síntese química de proteínas Mup13 recombinantes em laboratório mostrou-se tão eficaz na indução de medo nos camundongos quanto o componente natural. Além disso, descobriu-se que a Mup13 estimulava uma classe específica de neurônios olfativos, ativando diversas regiões relacionadas ao olfato no cérebro de camundongos.
O grupo também isolou a proteína homóloga à Mup13 na urina de gatos, conhecida como Feld4. A ideia era entender como os receptores olfativos haviam evoluído para reconhecer uma variedade de predadores. (Interessante que camundongos também produzem uma proteína semelhante à Mup13 na própria urina, mas estaria envolvida com a agressividade entre animais machos.)
As proteínas de rato/gato e camundongo são relacionadas evolutivamente, mas não induzem exatamente ao mesmo comportamento (medo x agressão). Isso acontece porque elas não estimulam necessariamente os mesmos neurônios olfativos, sinalizando comportamentos distintos para o cérebro. Essa parece ser a solução molecular encontrada pela natureza para lidar com a evolução de detectores moleculares específicos de cada espécie.
Aplicações
Como líder de seu próprio grupo de pesquisa, Papes deve focar suas atividades em descobrir mais detalhes sobre como os sistemas sensoriais são interpretados pelo cérebro e traduzidos em comportamento. As bases neurais dessas redes nervosas servirão, num futuro próximo, para possibilitar intervenções terapêuticas em alguns distúrbios neurológicos, como a síndrome do pânico ou estresse pós-traumático.
Fabio Papes é hoje professor de genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi lá mesmo, em Barão Geraldo, que nos conhecemos durante a graduação de ciências biológicas. Apesar de ter sido meu “bicho” (calouro), Papes nunca apresentou qualquer reação de medo a feromônios veteranos e trilhou uma carreira invejável. Ao meu ver, Papes é um dos principais representantes de uma nova geração de neurocientistas brasileiros com potencial para causar um impacto transformador na ciência nacional.
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