Cheirando perigo

seg, 31/05/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Compreensão da resposta inata a odores servirá no futuro para desenvolver intervenções terapêuticas em casos como síndrome do pânico ou estresse pós-traumático

Animais conseguem cheirar a presença de potenciais predadores por meio da detecção de sinais químicos que sinalizam perigo. Essa percepção do odor do perigo permite uma série de ações premeditadas, como o afastamento físico ou avaliação do risco, garantindo a sobrevivência da presa.

Camundongos expostos a predadores naturais, como gatos ou serpentes, exibem um repertório de comportamentos que se assemelham ao “medo” em humanos. Interessante notar que a presença do odor dos predadores já é suficiente para estimular esse mecanismo em camundongos, sugerindo que o sistema olfativo tem papel fundamental nesse processo.

crédito da imagem: Mauricio Duenas / AFP (9-9-2008)

crédito da imagem: Mauricio Duenas / AFP (9-9-2008)

Um experimento clássico mostrou que camundongos tendem a ficar a maior parte do tempo isolados no canto da gaiola oposto a uma estopa molhada com urina de gato. Além disso, níveis hormonais de estresse aumentam nesses animais. Esse comportamento defensivo de repulsa reproduz-se com odores de outros predadores, como serpentes ou ratos. O fato de que essas observações tenham sido reproduzidas em camundongos de laboratório, nunca expostos a predadores naturais, sugere que a resposta aos odores é inata ou instintiva, e não aprendida durante a vida do animal. Também conclui-se que a organização dos circuitos neuronais responsáveis por esse comportamento é programada geneticamente.

Um defeito que cria coragem
No entanto, a contribuição dos órgãos olfativos, a natureza química dos odores e a identidade dos neurônios sensoriais envolvidos nesse tipo de comportamento eram desconhecidos. Mas uma observação feita pelo brasileiro Fabio Papes, membro de um grupo de pesquisa do Instituto Scripps de San Diego, na Califórnia (EUA), trouxe uma contribuição valiosa para esse processo fundamental. O trabalho foi publicado recentemente numa das mais prestigiosas revistas científicas (Papes e colegas, Cell 2010).

Papes percebeu que camundongos geneticamente alterados e defectivos em uma região do olfato conhecida como órgão vomeronasal (VNO) não evitavam a presença de predadores no mesmo ambiente. Na verdade, até procuravam uma interação investigativa, correndo risco de vida. Veja bem, isso acontecia mesmo na presença funcional de outros sentidos, como o sistema visual. Concluiu-se que o VNO seria então a região do olfato responsável pelo comportamento instintivo de medo do predador natural. O grupo de pesquisadores decidiu então encontrar qual a natureza dos odores dos predadores.

Focou-se primeiramente na urina de rato como material primário. Fracionaram-se os componentes da urina até encontrar o principio ativo, chamado de Mup13. A síntese química de proteínas Mup13 recombinantes em laboratório mostrou-se tão eficaz na indução de medo nos camundongos quanto o componente natural. Além disso, descobriu-se que a Mup13 estimulava uma classe específica de neurônios olfativos, ativando diversas regiões relacionadas ao olfato no cérebro de camundongos.

O grupo também isolou a proteína homóloga à Mup13 na urina de gatos, conhecida como Feld4. A ideia era entender como os receptores olfativos haviam evoluído para reconhecer uma variedade de predadores. (Interessante que camundongos também produzem uma proteína semelhante à Mup13 na própria urina, mas estaria envolvida com a agressividade entre animais machos.)

As proteínas de rato/gato e camundongo são relacionadas evolutivamente, mas não induzem exatamente ao mesmo comportamento (medo x agressão). Isso acontece porque elas não estimulam necessariamente os mesmos neurônios olfativos, sinalizando comportamentos distintos para o cérebro. Essa parece ser a solução molecular encontrada pela natureza para lidar com a evolução de detectores moleculares específicos de cada espécie.

Aplicações
Como líder de seu próprio grupo de pesquisa, Papes deve focar suas atividades em descobrir mais detalhes sobre como os sistemas sensoriais são interpretados pelo cérebro e traduzidos em comportamento. As bases neurais dessas redes nervosas servirão, num futuro próximo, para possibilitar intervenções terapêuticas em alguns distúrbios neurológicos, como a síndrome do pânico ou estresse pós-traumático.

Fabio Papes é hoje professor de genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi lá mesmo, em Barão Geraldo, que nos conhecemos durante a graduação de ciências biológicas. Apesar de ter sido meu “bicho” (calouro), Papes nunca apresentou qualquer reação de medo a feromônios veteranos e trilhou uma carreira invejável. Ao meu ver, Papes é um dos principais representantes de uma nova geração de neurocientistas brasileiros com potencial para causar um impacto transformador na ciência nacional.

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A constante batalha feminina para suprimir o lado masculino

qua, 12/05/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Identidade feminina precisa estar constantemente ativa, reprimindo a expressão genética responsável pelo ‘default’ da especialização dos testículos.

Reversão sexual também traz esperança para casais homossexuais de mulheres que sonham em ter um filho biológico.

Menino ou menina? Em geral, essa é a pergunta mais comum que acompanha casais do mundo todo durante a gravidez. A definição do sexo tem origens embrionárias. A visão tradicional era de que as gônadas se diferenciavam em ovários ou testículos durante o desenvolvimento. A análise molecular dessa “escolha” traz implicações interessantes sobre a supressão masculina pelo feminino.

masc_fem_595Nos embriões de mamíferos, as gônadas são bivalentes, ou seja, podem formar tanto ovários quanto testículos, dependendo de uma sinalização embrionária pouco conhecida. Acreditava-se que nos organismos adultos, ovários e testículos estariam num estágio de especialização terminal – uma vez feita a escolha, não teria como voltar atrás. Em machos genéticos (XY), a especialização testicular acontece por meio da ativação de genes no cromossomo Y. Nas fêmeas (XX), a diferenciação do ovário ocorre na ausência desses genes, mas o mecanismo molecular responsável por isso ainda é obscuro. Um fator envolvido nesse processo é o gene conhecido como Foxl2.

O Foxl2 pertence a uma categoria de proteínas conhecida como fatores de transcrição. Funcionam como reguladores-mestre de outros genes, ligando ou desligando-os. Para entender melhor o papel do Foxl2, um grupo de pesquisa internacional decidiu eliminar o gene dos ovários de camundongas adultas (Uhlenhaut e colegas, Cell 2009). O resultado não poderia ser mais curioso.

Análises histológicas (histologia é a disciplina biomédica que realiza estudos da estrutura microscópica, composição e função dos tecidos vivos) de ovários sem o Foxl2 revelaram que as células femininas se trans-diferenciaram em células testiculares, capazes de produzir testosterona em níveis comparáveis a um animal macho. O achado mostra a importância do Foxl2 além de uma ajudinha durante a embriogênese, revelando uma enorme capacidade plástica dos órgãos reprodutores em adultos.

O que o grupo observou foi uma reprogramação celular da identidade das células femininas em células masculinas, convertendo o ovário em testículo. Nem preciso dizer que isso vai contra as ideias tradicionais de que uma vez determinado o sexo, ele seria mantido durante o resto da vida do indivíduo.

As ramificações das interpretações desse resultado são diversas e polêmicas. Para começar, o estudo indica que a escolha do sexo durante o desenvolvimento é reversível. Além disso, elege o gene Foxl2 como o guardião da identidade feminina. Dessa forma, o feminino só consegue se expressar pela supressão do masculino, ou seja, a identidade feminina precisa estar constantemente ativa, reprimindo a expressão genética responsável pelo “default” da especialização dos testículos. Vale notar que sempre se achou que eram os ovários que não precisavam de constante supressão, sendo completamente passivos. Claramente não é esse o caso.

Se essa via molecular for confirmada em outros organismos, ela poderá explicar, por exemplo, casos de conversão sexual observada em aves e peixes. Os resultados também podem ter importantes implicações médicas para pacientes que sofrem de falha prematura dos ovários, problemas na menopausa e uma série de doenças que afetam o desenvolvimento sexual em crianças.

A reversão sexual também traz um pouco de esperança para casais homossexuais de mulheres que sonham em ter um filho biológico. No entanto, o trabalho não mostra a capacidade de formação de espermatozóides ativos nos ovários, indicando que outras vias independentes também devam ser desativadas para que a espermatogênese aconteça por completo. Isso sim, seria a verdadeira revolução sexual feminina.

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