Da pele para o neurônio: o caso do calhambeque no fundo do lago

ter, 02/02/10
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Um dos sonhos de todo neurocientista é ter disponível uma quantidade infinita de neurônios, isolados de pacientes com diversas doenças mentais humanas. Poderíamos então estudá-los e, quem sabe, entender como o cérebro funciona. Comigo nunca foi diferente.

Por razões éticas e moralmente óbvias, os cientistas só dispõem desses neurônios quando os tecidos são doados para a ciência após a morte do paciente, seja no estado fetal ou adulto. A raridade das amostras acompanha a má preservação do tecido cerebral, que leva de horas a meses até chegar ao laboratório. Pois bem, com isso em mãos, espera-se que a ciência produza respostas para a causa de diversas doenças e possíveis aplicações terapêuticas.

O desespero da situação dos cientistas pode ser exemplificado da seguinte forma. Imagine que você é um inspetor policial e tem que descobrir por que existe um carro abandonado no fundo de um lago. Quando você retira o carro do fundo, ele se encontra em estado deplorável, com peças faltando, enferrujado, sem rodas etc. Baseado na sua experiência prévia, você estima que o carro esteve embaixo da água por pelo menos uns 70 anos. Mas como ele foi parar lá?

calhambeque-600

Seria porque uma das rodas saiu numa curva? Conspiração contra uma seguradora? Alguma coisa funcionava mal? Será que o motorista estava embriagado? Ou simplesmente alguém não gostava do carro? Para descobrir isso tudo, você tem que usar muita imaginação e um processo de investigação trabalhoso, onde hipóteses são formuladas e testadas. Muito provavelmente você nunca vai saber o que realmente aconteceu. É aí que você sonha com um máquina do tempo, que o levasse de volta, momentos antes de o carro cair no lago. Você teria muito mais certeza de como é que ele foi parar lá.

Para se entender a doença de Alzheimer, as causas do autismo e de tantas outras doenças humanas, é preciso estudar os neurônios antes de os sintomas da doença aparecerem. Aí sim, poderemos acompanhar o desenvolvimento e maturação dos neurônios doentes, comparando-os com células sadias, até que as diferenças e sintomas apareçam. Sabendo-se das causas, pode-se pensar em prevenção e cura.

A reprogramação celular, obtida pela primeira vez pelo pesquisador japonês Shinya Yamanaka, permite essa viagem no tempo. Shinya descobriu que as células do corpo já especializadas, como as células da pele, por exemplo, conseguem retornar a um estágio indiferenciado embrionário. São as famosas células-tronco embrionárias induzidas (ou iPS). Shinya demonstrou isso fazendo com que a reprogramação “pegue no tranco” ao ativar genes embrionários nas células da pele (veja as colunas anteriores para saber mais: Reprogramação: de volta para a imortalidade, parte I e II).

O experimento do japonês é elegante, simples e tem sido reproduzido por laboratórios do mundo todo e deve acontecer no Brasil também. É a verdadeira Yamanakamania. Além de instituir um novo método para gerar células-tronco embrionárias sem o uso de embriões, Yamanaka permitiu que os pesquisadores aplicassem a técnica em células de pacientes com diversas doenças humanas. Atualmente, diversos grupos estão justamente utilizando esse tipo de tecnologia para investigar as causas de diversas doenças humanas. As novidades estão chegando aos poucos. Ano passado, pesquisadores anunciaram que conseguiram modelar doenças humanas neurodegenerativas. Em um dos casos, os neurônios doentes foram tratados com novas drogas que evitaram a morte celular in vitro, tornando-se terapias em potencial. Espera-se que diversos outros casos desse tipo sejam relatados em 2010 para diversas outras doenças, não só restritas ao sistema nervoso.

Semana passada, pesquisadores da Universidade Stanford, na Califórnia, demonstraram como transformar células da pele de um camundongo diretamente em neurônios funcionais. A tecnologia utilizada foi inspirada na de Yamanaka, mas dessa vez não houve volta ao tempo, apenas troca de identidade (Vierbuchen T. e colegas, Nature 2010). Confesso que fiquei surpreso pela repercussão que o trabalho gerou na mídia e comunidade científica. Digo isso porque outros trabalhos semelhantes já haviam demonstrado algo muito parecido, mas partindo-se de células da glia (um outro tipo celular neural que não um neurônio) em vez de células da pele (Berninger B. e colegas, Journal Neuroscience 2007).

De qualquer forma, não dá para negar que o trabalho de Stanford fez uma caracterização muito mais precisa e detalhada dos neurônios obtidos, o que não se vê nos trabalhos precedentes. Além disso, o protocolo é robusto e bem eficiente. O trabalho confirma os dados de Yamanaka, sugerindo que a identidade celular não é fixa e imutável, mas de alguma forma flexível. A diferenciação neuronal obtida pelo grupo é direta, “um-pra-um”. Esse importante resultado, não muito discutido pelo grupo, sugere que a conversão não permite gerar um número infinito de neurônios, mas depende do número inicial de células da pele utilizadas.

Além disso, a conversão um-pra-um sugere que a célula não retornou a estágios iniciais do desenvolvimento embrionário ou mesmo neural. Por exemplo, antes de uma célula-tronco se especializar em neurônio, ela precisa se converter em uma “precursora” neuronal. Depois de um tempo e algumas divisões celulares, essa precursora amadurece em um neurônio. É assim que o cérebro é formado, de camada em camada, pelas precursoras neuronais que se multiplicam e especializam-se em intervalos de tempo. No trabalho da Nature, a diferenciação não acontece em estágios, mas de uma vez só. Isso explicaria a velocidade impressionante em que as células mudam da morfologia alongada de uma célula típica da pele e passam a ter processos neuronais (segundo os autores, bastaria um dia).

Apesar de achar que o grupo de Stanford encontrou uma fórmula simples de conversão neuronal direta, não tenho certeza de que a tecnologia servirá para o estudo de doenças do desenvolvimento neural, como pregam os autores. Na minha opinião, o acompanhamento de todos os estágios do desenvolvimento do sistema nervoso pode ser fundamental na descoberta do momento e causa de doenças como autismo, por exemplo. Acho que para essas doenças, a formulação de Yamanaka ainda apresenta grandes vantagens, como o número infinito de neurônios que podem ser produzidos e a recapitulação de todos os estágios do desenvolvimento humano. A conversão direta, sem a necessidade da volta a estágios embrionários, pode ser mais útil na medicina regenerativa, como no caso de lesões da medula ou de doenças onde os sintomas apareçam somente em estágios tardios da vida.

Os experimentos de reprogramação celular de Yamanaka ainda fazem pensar. Sugerem que nenhuma célula tem uma identidade preservada e que, com a combinação correta de fatores, a conversão possa ocorrer de um tipo celular qualquer para outro. Isso significa que, num futuro não muito distante, cocktéis proteicos específicos serão capazes de transformar o bulbo de um fio de cabelo em espermatozoides. O limite de aplicações dessa tecnologia será restrita apenas pela criatividade e pela moral humana. A biologia é, sem dúvidas, a ciência do futuro.

Leia mais notícias de Ciência



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade