Sufoco no busão? Culpa da amígdala cerebral

sex, 27/11/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

PhotoAlto Pequim ônibus lotado

Esqueça as fantasias da Dama do Lotação. Para a maioria das pessoas, o sufoco do coletivo na hora do rush não é nada agradável. Muito menos conversar com aquele colega que insiste em se aproximar tanto, a tal ponto de você sentir o bafo quente exalando da garganta.

Você anda pra trás, motivado por uma espécie de repulsa. Ele então anda pra frente, reconstituindo a distância original. A luta pelo espaço pessoal invadido continua até que você se pega encurralado por uma parede.

Existe um espaço, individual, que quando ultrapassado causa um certo desconforto. Em tese, você não briga pelo espaço, mas procura obtê-lo de forma pacífica (entre os animais ditos mais sociais).

Esse comportamento social está sendo associado a uma estrutura cerebral chamada amígdala.

Tradicionalmente, a amígdala foi associada a respostas ao medo. Como o medo é uma das reações mais primitivas entre as espécies, acreditava-se que fosse um centro que estimulasse uma reação impulsiva de escapada quando confrontamos uma situação de perigo iminente. Esses estudos, realizados em sua maioria em animais, eram sempre extrapolados como verdadeiros para humanos. Mas a história não é bem assim.

Num trabalho recente, publicado na revista científica “Nature Neuroscience” (Kennedy e colegas, 2009), os autores relatam o estudo de um indivíduo com um raro dano bilateral na amígdala. Esses casos isolados são extremamente importantes para se estudar a função causal de algumas estruturas cerebrais em pessoas. Obviamente, deve-se tomar cuidado com a interpretação dos resultados, pois sabemos muito pouco sobre a influência da variação individual do cérebro em humanos.

Ao trabalhar com esse indivíduo, os autores descobriram que a amígdala está envolvida na regulação da distância social. A amígdala inicia uma resposta vagarosa, mas explícita, sobre a invasão desse espaço interpessoal. Esses dados contrastam com os resultados obtidos com lesões em modelos animais, que sugeriam uma resposta rápida independente do contexto ambiental.

A maioria das pessoas regula a distância entre elas e os outros baseando-se em sensações de conforto pessoal e sentimentos pessoais. O sentimento de estar espremido no metrô entre desconhecidos causa uma sensação de repulsa e promove o reajuste imediato dessa distância pessoal. Pois bem, numa série de experimentos, desenhados de forma elegante e simples, o grupo mostrou que o indivíduo com o dano bilateral na amígdala não revelou a presença dessa barreira invisível que regula a distância interpessoal e nem reagiu ao ter seu espaço invadido. Esses dados sugerem fortemente que a amígdala é crucial para o sentimento de espaço pessoal.

Nos experimentos, o indivíduo lesado teve de ficar próximo a um desconhecido e classificar as diversas distâncias entre plenamente confortável e extremamente não confortável. O indivíduo preferiu distâncias bem mais curtas do que a média das pessoas sem a lesão. Além disso classificou como confortável, mesmo estando cara a cara com um estranho. Esse efeito foi consistente em diversas situações experimentais, onde o grau de familiaridade com o estranho, sexo, presença de contato com os olhos, etc., foram variados.

Interessante notar que o indivíduo relatou ter plena consciência dessa distância pessoal e que procurava sempre ajustá-la no dia a dia, baseando-se em princípios sociais. Isso sugere que a lesão não comprometeu funções cognitivas ou racionais – o indivíduo simplesmente não sentia o desconforto nas distâncias em que a maioria das pessoas sentia.

Baseando-se nisso, foi testado o grau de atividade da amígdala em humanos usando-se ferramentas de ressonância magnética. Os dados mostraram claramente que as pessoas tinham a amígdala ativada no momento em que estranhos invadiam o espaço pessoal. Esses experimentos sugerem que, em humanos, a amígdala funciona como um detector da violação do espaço pessoal.

A distância que mantemos entre nós e as pessoas com quem interagimos depende muito do contexto social e da relação prévia entre as pessoas. Isso varia muito entre as diversas culturas humanas. Como essas regras sociais são aprendidas culturalmente, a amígdala tem de se adaptar a respostas específicas que surgem em diferentes contextos durante o desenvolvimento humano. Pode-se então dizer que quanto mais contato com a diversidade humana durante a infância, melhor será sua adaptação e respeito entras diversas culturas.

O que os estudos estão indicando é que a função da amígdala parece ser muito mais importante do que fora anteriormente atribuída. Essa estrutura funcionaria como um “hub” cerebral, conectando diversas redes neuronais envolvidas com o aprendizado social. A socialização seria responsável por fazer um ajuste fino na resposta da amígdala a situações de invasão do espaço pessoal e alheio.

O refinamento desse processo em humanos parece exceder o que acontece em outras espécies com comportamentos sociais. Esse mecanismo cerebral influencia, literalmente, os graus de separação entre nós e o mundo social que nos cerca. Portanto, sinta-se mais humano na próxima vez que entrar num busão lotado.

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Califórnia destina US$ 200 milhões para pesquisa aplicada com célula-tronco

seg, 09/11/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O momento é sem precedentes na história da medicina, especialmente numa área jovem e controversa como a das células-tronco. Cientistas estão extremamente ansiosos para ver os resultados desse investimento, prometido para 2013.

Pela primeira vez na história, um órgão governamental dedica a “bagatela” de US$ 200 milhões para que se ache a cura – ou ao menos novas terapias que melhorem a vida dos portadores – de cerca de dez tipos de doenças, num prazo de 4 anos, utilizando-se células-tronco.

A iniciativa, conhecida como “Disease Team Awards”, partiu do Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia (CIRM, na sigla em inglês) que propôs o desafio para a comunidade científica mundial. Os termos eram simples: curar ou melhorar a qualidade de vida de pacientes usando-se células-tronco. Valia qualquer tipo de células-tronco, qualquer tipo de estratégia (triagem de drogas, transplante etc.), qualquer tipo de doença incurável e qualquer tipo de pesquisador (colaborações internacionais e com empresas eram bem-vindas e estimuladas).

As únicas restrições foram o período de 4 anos para o produto entrar no mercado e que o trabalho deveria ser realizado em sua maior parte na Califórnia. Nada mais justo, visto que o CIRM surgiu a partir de um plebiscito (a famosa Proposição 71). Os cidadãos votaram a favor do uso de US$ 3 bilhões, por 10 anos, para pesquisas com células-tronco.

Desde sua criação, apoiada pelo atual governador (republicano) Arnold Schwarzenegger, o CIRM atraiu diversos pesquisadores de renome para o estado, gerando uma explosão do número e da qualidade de publicações na área. O efeito foi ainda maior se colocarmos em perspectiva que isso aconteceu durante o governo do presidente Bush, que havia vetado o uso de recursos federais para pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. Foi graças ao CIRM e à falta de visão de outros países que perderam a chance de investir pesado em células-tronco que os EUA mantiveram sua liderança nessa área.

Os tipos de doenças que foram selecionadas são: Aids, esclerose lateral amiotrófica (ELA), diabetes do tipo 1, epidermólise bulhosa, câncer (glioma maligno, tumores sólidos e leucemia), parada cardíaca, degeneração macular, anemia falciforme e derrame. Vale lembrar que um dos quesitos para a seleção das estratégias foi a facilidade do tratamento ser aprovado pelo FDA (agência americana que regulamenta medicamentos e tratamentos em humanos). Isso porque, após 4 anos, a ideia é que o resultado da pesquisa entre na clínica o quanto antes.

Gostaria de mencionar, brevemente, as estratégias selecionadas para o tratamento dessas doenças.

No caso da Aids, a ideia é usar terapia genética para modificar células-tronco do sangue de pacientes infectados com o HIV. Quando transplantadas de volta ao paciente, as células-tronco deverão produzir células sanguíneas resistentes ao vírus. Para leucemia, a ideia baseia-se na utilização de anticorpos que destroem as células-tronco cancerígenas, um tópico ainda controverso. No caso de derrame, a estratégia é implantar células-tronco neurais, derivadas de células-tronco embrionárias humanas, nas regiões lesionadas.

Para tumores sólidos, a estratégia selecionada foi desenvolver novas drogas capazes de destruir as células-tronco tumorais, mesmo que a existência dessas células-tronco tumorais ainda seja motivo de debate na comunidade científica. Para problemas de coração, incluindo infarto e parada cardíaca, o grupo selecionado pretende cultivar células-tronco cardíacas do paciente em cultura, expandi-las e reimplantá-las no coração, como forma de proteção e regeneração.

Em epidermólise bulhosa, a estratégia inclui o uso de células-tronco pluripotentes induzidas (as famosas células iPS, já discutidas aqui anteriormente) na reconstituição da derme dos pacientes. Para anemia falciforme, a estratégia é uma combinação de terapia genética e celular, visando à restauração de células do paciente que foram previamente corrigidas para produzir células vermelhas do sangue de forma eficiente.

No caso da degeneração macular, a proposta é usar células da retina, produzidas a partir de células-tronco embrionárias humanas, para transplante. Recentes resultados positivos em primatas trazem esperança de sucesso nesse caso. No caso das leucemias, o grupo propôs o uso de três anticorpos em combinação com três novas drogas que destruam as células-tronco do câncer de forma específica.

Para gliomas malignos, a linha de pesquisa é usar células-tronco neurais que foram geneticamente alteradas para carregar uma droga que induz a morte das células tumorais. Em diabetes tipo 1, a ideia é tratar pessoas implantando células capazes de gerar insulina, que foram derivadas de células-tronco embrionárias humanas. O trabalho pioneiro é liderado por uma firma de biotecnologia de San Diego.

E finalmente, para o tratamento de ELA, doença conhecida pela degeneração específica dos neurônios motores, os pesquisadores propõem o transplante de células precursoras da glia (astrócitos, células não-neuronais, também presentes no sistema nervoso e que auxiliam no funcionamento da informação nervosa) derivadas de células-tronco embrionárias humanas. O aumento de astrócitos saudáveis na região torácica da medula espinhal deverá facilitar a respiração dos pacientes, melhorando a qualidade de vida.

Êpa! Células da glia em uma doença que afeta os neurônios motores?

Isso significa que ELA é uma doença de natureza celular não-autônoma: não basta ter a mutação nos neurônios motores para que esses degenerem, as células vizinhas aos neurônios também contribuem para a degeneração nervosa.

Mas extrapolar esse tipo de dado, obtido em camundongos, para humanos não costuma ser muito óbvio. Além disso, como poderíamos usar essa informação para um futuro tratamento de ELA? Pois bem, ano passado a pesquisadora brasileira Carol Marchetto, que trabalha como pós-doutora no instituto Salk de pesquisas em San Diego, publicou um artigo pioneiro utilizando células-tronco embrionárias humanas para modelar ELA em cultura. Acabou demonstrando como essa interação astrócitos-neurônios pode ocorrer em humanos.

O raciocínio por trás dessa descoberta já foi descrito numa coluna anterior (“Modelando doenças humanas com células-tronco”, Marchetto e colegas, Cell Stem Cell, 2008). O grupo que trabalhara com ELA baseou-se nos dados da brasileira para propor essa primeira terapia celular.

Como crítico de ciência, não posso deixar de expressar minha opinião sobre essa iniciativa. Será que realmente vamos ter a cura ou melhoria dessas doenças em 4 anos? Duvido, com certeza não para a maioria delas. Muitas dessas ideias já foram propostas anteriormente e não são inovadoras. A questão é: nunca houve o financiamento adequado para testá-las. Ou seja, acredito que a iniciativa do CIRM vai servir para distinguir as boas ideias que podem dar certo, das boas ideias que não vão funcionar. Isso é ótimo para a ciência. Passaremos a eliminar as propostas fracassadas e buscar novas alternativas.

De qualquer forma, na minha opinião, basta a melhoria de apenas uma doença para justificar todo o investimento do CIRM.

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