As extraordinárias mutações de seu cérebro

seg, 17/08/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Milhares de células nervosas progenitoras são geradas durante o desenvolvimento cerebral. Essas células são, supostamente, cópias idênticas geradas a partir de células-tronco neurais, por um processo chamado divisão celular. Salvo por pequenos erros inatos do sistema, o genoma dessas células foi, por muito tempo, considerado como sendo idêntico em todas as células.

Porém, durante o desenvolvimento cerebral, a grande maioria dessas células é eliminada. Apenas algumas maturam, formando as redes neuronais. Não se sabe ainda por que o organismo gera um número tão grande de células precursoras, se vai eliminá-las depois. Fica uma impressão de desperdício energético enorme. Mas o que parece um desperdício pode simplesmente ser seleção natural: o desenvolvimento cerebral seleciona as células mais aptas e rejeita as outras. No entanto, para que a seleção aconteça é preciso diversidade. Evidentemente, essa diversidade seria impossível caso as células fossem realmente cópias idênticas.

Em 2005, o grupo em que eu trabalhava descobriu que conhecidos “genes saltadores” eram capazes de trocar de posição no genoma cerebral de camundongos (Muotri e colegas, “Nature”, 2005). Essa atividade inesperada em células progenitoras neurais induzia alterações genéticas capazes de alterar a atividade de uma série de genes, aparentemente de uma foram aleatória. As alterações genéticas afetariam as células selecionadas que, por sua vez, alterariam as redes neurais. Essa observação sugere que, caso comprovada em humanos, o que realmente somos é uma contribuição genética dos nossos pais, do ambiente em que vivemos e do acaso.

Apesar da física lidar bem com o “acaso”, na biologia esse conceito nem sempre é bem-vindo. Afinal, como um tecido altamente especializado e coordenado como o cérebro seria capaz de suportar um nível tão grande de incerteza? Aos meus colegas neurocientistas mais deterministas, deixo o seguinte raciocínio: mesmo as máquinas mais complexas precisam de uma certa instabilidade para gerar respostas rápidas, num ambiente em constante transformação. Tome o exemplo de um avião. Quando está no ar, precisa de uma série de sensores que ficam se ajustando a todo momento para que a aeronave entre num estado de aparente estabilidade. Na verdade, o constante ajuste dos flaps nos deixa com essa impressão durante o voo. A realidade é que, se não fosse isso, se o avião fosse 100% estável, ele jamais sairia do chão.

Recentemente, essa atividade dos genes saltadores foi confirmada em humanos (Coufal e colegas, “Nature”, 2009). Obviamente, o impacto de se demonstrar que isso ocorre no cérebro humano é tremendo. Para isso, o grupo usou e abusou das células embrionárias humanas, derivando-as em células progenitoras neurais. Até ai fica-se com a impressão de que um possível artefato em cultura poderia interferir nas análises, diminuindo o entusiasmos do leitor. O experimento mais convincente foi feito em tecidos de cérebro humano, post-mortem. A quantificação da atividade dos genes saltadores em diferentes regiões do cérebro humano sugere que existe uma variação grande entre as regiões analisadas. Não se sabe ainda qual o significado dessa observação.

De uma forma grosseira, estimou-se que existem cerca de 80 alterações genéticas causadas por genes saltadores em cada neurônio do cérebro humano. Esse número é bem maior do valor que eu tinha estimado previamente (Muotri e Gage, “Nature”, 2006) e sugere que o genoma cerebral suporta um nível extraordinário de mutações somáticas.

Geradores de diversidade
Diversas perguntas continuam sem respostas: Por que isso acontece? Por que é mais pronunciado em humanos? Por que é restrito ao sistema nervoso, mais precisamente aos neurônios? Nesse ponto, o que temos é mera especulação. Uma possibilidade seria que a atividade dos genes saltadores faz parte de um mecanismo de geração de diversidade (“Generators Of Diversity”, ou “GOD”). O GOD cerebral teria como função aumentar o espectro cognitivo da espécie para que essa apresente “outliers”, ou indivíduos fora da curva, com capacidades extraordinárias. Um exemplo na espécie humana seria o físico Einstein. Em suporte dessa idéia, digo que uma única colônia de chimpanzés na África tem mais diversidade genética do que todos os humanos do planeta. No entanto, nosso espectro cognitivo é bem mais amplo do que o deles. Essa hipótese também sugere que, quando GOD sofre alguma alteração durante o desenvolvimento cerebral, as redes neurais poderiam ser alteradas de forma brusca, gerando o espectro autista, por exemplo.

Buscar ideias por meio de especulação é uma das tarefas mais interessantes da profissão de um biólogo. As ideias são geradas, discutidas e então procura-se desenhar experimentos que possam confirmar ou não sua hipótese. Acredito que os melhores cientistas são aqueles cujos experimentos são executados de forma a confrontar a própria hipótese.

A nova ciência do aprendizado

seg, 03/08/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Aos 6 meses de idade, presenteei minha bela sobrinha com um laptop infantil. O portátil incluía um pequeno monitor, teclas de ação, músicas, voz e um pequeno mouse interativo. O que pode parecer estranho ou prematuro para alguns é, na verdade, parte de um emergente formato educacional. Nosso cérebro evoluiu para aprender e se adaptar a novos ambientes. Se criarmos o ambiente correto para uma criança, a mágica acontece.

Estudos sobre a psicologia infantil, neurociência do desenvolvimento, plasticidade cerebral e métodos computacionais de aprendizado estão convergindo para uma nova ciência do aprendizado que deve transformar as práticas educativas e pode trazer pistas sobre a origem da inteligência humana.

A evolução cultural, rara entre as espécies e abundante em humanos, provavelmente começou quando novas formas de aprendizado surgiram com a pressão seletiva sobre nossos ancestrais. O aprendizado humano difere do das outras espécies pela quantidade e complexidade de informação que podemos assimilar e, pelo grau de abstração que pode ser alcançado. O Homo sapiens é a única espécie que desenvolveu meios formais de aprendizado: professores, escolas, currículos etc.

Tanto o aprendizado humano quanto a evolução cultural consistem num curioso paradoxo adaptativo: humanos nascem imaturos. Bebês não sabem falar, caminhar ou usar ferramentas. Essa imaturidade tem um preço caro: para o bebê, que consome 60% da energia na formação do cérebro; e para os pais, que têm que cuidar do bebê a todo instante. Por outro lado, essa imaturidade também tem seu valor.

O atraso na maturação e crescimento de circuitos cerebrais permite que aprendizados iniciais influenciem o desenvolvimento da arquitetura neural de modo a suportar aprendizados futuros mais complexos. Simulações computacionais mostram que começar um processo de aprendizado com circuitos de baixa resolução permitem um aprendizado futuro mais eficiente do que começar com um sistema bem desenvolvido.

De fato, o aprendizado é mesmo computacional. Bebês e crianças com menos de 3 anos de idade usam estratégias estatísticas assimiladas por experiência para aprender sobre linguagem e efeito causal. Também utilizam-se de distribuição de frequências para distinguir a fonética correta nas palavras, usam probabilidade transacional para aprender a juntar as palavras na frase e usam covariações para inferir relações de causa e efeito no mundo físico.

No entanto, crianças não computam estatísticas de forma indiscriminada. Dicas sociais influenciam o que e quando aprender. Recém-nascidos são capazes de imitar gestos de outra pessoa como mostrar a língua e abrir a boca, mesmo nunca tendo visto sua própria face num espelho. Crianças em idade pré-escolar são mais motivadas a aprender com uma pessoa do que com um aparato inerte. Professores-robóticos aumentam a motivação e aprendizado das crianças caso apresentem características sociais. Aliás, isso também funciona para adultos – novas tecnologias sociais (Twitter, Facebook etc) estimulam humanos pela capacidade de socialização. Ou seja, o aprendizado é um ato social, que tem por base circuitos cerebrais unindo percepção e ação.

Tanto a parte social quanto a imitação estão sendo incorporadas em máquinas desenhadas para facilitar a aprendizagem de crianças. Não é uma tarefa fácil. O gol é programar um robô para agir e aprender como uma criança, por meio de observação e imitação. Essas máquinas seriam também usadas para estudar interação e como o aprendizado pode ser melhorado.

O reconhecimento de que o input correto no momento ideal pode influenciar o aprendizado de uma pessoa levou à prática de intervenções imediatas em crianças que correm o risco de se sair mal na escola, produzindo melhoras nas notas, no ajustamento social e sucesso econômico. Quanto antes se dá a intervenção, melhor.

A ciência do aprendizado também é aplicada para crianças com problemas mentais. Por exemplo, crianças autistas apresentam deficiências na capacidade de imitação e contato pelo olhar. Por isso, acabam se privando das oportunidades de aprendizado pelo lado social, gerando uma cascata de problemas durante o desenvolvimento. Crianças autistas são atraídas por robôs humanóides, com interatividade previsível, que estão começando a ser usados tanto no diagnóstico como na intervenção terapêutica.

As novas descobertas em diversas áreas estão formando princípios de aprendizado humano que já estão sendo incorporados em teorias de aprendizado e na arquitetura de ambientes educacionais. De forma recíproca, esse conhecimento está sendo usado para gerar novos tipos de experimentos. Tira-se disso que o componente social é imprescindível para o aprendizado. O que faz o elemento social ser um catalisador tão poderoso do aprendizado humano? Quais foram as forças evolutivas que selecionaram esse padrão? Podemos usar isso para melhorar nossa capacidade de aprender?

Crianças mais inteligentes pressupõem um mundo melhor. Tenho a impressão de que essa área vai dar um salto qualitativo nos próximos anos e será responsável por criar oportunidades para se re-imaginar as salas de aula do próximo século. Isto é, se for realmente necessário sala de aula – ou aula.



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