Naturalmente obcecado

dom, 05/07/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Existem alguns cientistas que são naturalmente obcecados. São esses os que possuem uma ansiedade que não passa nunca. Ansiedade que só consegue ser levemente atenuada pelo prazer de uma descoberta. Tudo começa novamente instantes depois.

O que me faz acordar cedo todos os dias é a esperança de que hoje eu vou ter a reposta para a pergunta que busco. Então eu terei mais questões para ir atrás. É um desafio diário, você quer saber por que isso funciona ou como isso funciona. Você fica obcecado por um problema e não consegue parar de trabalhar ou de pensar naquilo até você chegar à descoberta, à resposta para sua pergunta. No momento da descoberta você é único, é a única pessoa no mundo que sabe daquilo, que tem aquele conhecimento. A obsessão é ainda maior se a motivação está na cura de uma doença ou se o cientista tem uma razão pessoal para o problema estudado. Muitos cientistas são movidos pela paixão de descobrir algo que auxilie a vida de milhares de pessoas. Outros buscam fama ou reconhecimento. A vaidade faz parte da personalidade do cientista.

Ciência não é fácil e não é para qualquer um. Não existe ninguém que te acompanha ou motiva no laboratório a cada instante. Ninguém marca ponto quando chega ou sai. Você acha que está livre, mas o problema te acompanha. Você fica preso e ansioso, sempre. Você não relaxa nunca. Não existe final de semana, feriado, Natal, cedo ou tarde. Esses são conceitos temporais do mundo exterior ao laboratório. Ao final de um período, você será julgado pelos resultados produzidos. Ninguém está nem aí se você ficou trabalhando por doze ou duas horas. Os melhores cientistas trabalham duro. Os medíocres também trabalham duro. O trabalho por longas horas do dia não é o diferencial, mas é imprescindível.

Chefes de laboratório são, em geral, cientistas obcecados. Outros derivam, acabam partindo para carreiras menos obsessivas ou permanecem ligados à ciência de forma superficial. Os que ficam acabam contratando alunos e pesquisadores para acelerar a pesquisa. O sucesso dos alunos influencia o sucesso do pesquisador principal, que se reverte em melhores condições para o laboratório. Por isso mesmo, o interesse é que todos os membros do laboratório sejam produtivos. Ao contrário do Brasil, nos EUA a situação é ainda mais complicada, pois o salário dos pesquisadores muitas vezes vem direto dos projetos. Ou seja, o salário não é estável e depende da produtividade. Avaliações de desempenho acontecem anualmente. É estressante, mas o sistema acaba por se autoajustar e eliminar os mais acomodados.

Esse estresse e essa obsessão muitas vezes tornam o cientista frio e direto. Em ciência, ao contrário do que ocorre no mundo fora do laboratório, a forma direta de criticar e apontar os erros é corriqueira e não deve ser vista como algo pessoal. Cientistas de fato até gostam de críticas; mesmo as não construtivas são bem-vindas. Obviamente que existem limites, e um comportamento negativo ou pejorativo por parte dos cientistas mais seniores afasta jovens estudantes.

Estudantes são a locomotiva dos laboratórios. São eles que, literalmente, colocam a mão na massa e realizam os experimentos. Talvez mais importante seja o fato de que novos estudantes chegam sem os vícios daqueles que estão no mesmo laboratório por mais tempo. Essa rotatividade é essencial para manter o dinamismo de ideias e projetos, trazendo perspectivas únicas. Em algumas ocasiões, o estudante acaba por estabelecer caminhos próprios, criando novas linhas de pesquisa.

Estudantes muitas vezes têm um projeto individual, menos ambicioso, que faz parte de um projeto mais abrangente, desenhado pelo chefe do laboratório. Noutras vezes, fazem parte de uma rede de colaboração. Questões fundamentais ou de impacto direto para a humanidade atraem investimentos maiores e têm maior competitividade. Quando isso acontece, é comum encontrar diversos grupos trabalhando numa mesma área. Eventualmente um dos grupos chega à resposta antes. Eles publicam em revistas científicas de maior impacto, e só resta aos competidores a publicação em revistas inferiores, se possível. Essa competição acadêmica pelo conhecimento é feroz. Trabalho de anos pode perder o valor da noite pro dia. Carreiras inteiras podem ser desmanteladas por uma semana de diferença. Ver isso acontecendo na frente dos seus olhos é frustrante.

É interessante notar que os experimentos realizados no laboratório serão eventualmente incorporados em livros didáticos no futuro. A responsabilidade e o prazer de saber que você é responsável pelo conhecimento e aprendizado de outros é extremamente gratificante para alguns cientistas.

O laboratório é um mundo que a maioria das pessoas, lendo esta coluna, nunca vivenciou. Milhares de outros fatores estão envolvidos, como os dramas pessoais, a relação com a mídia, com a religião, o convívio dentro do laboratório etc. Infelizmente, nunca ninguém escreveu sobre isso ou se preocupou em representar esse mundo. Sabemos desde pequeno o que um advogado faz, o dia-a-dia de um médico, um policial etc., mas o cientista é sempre caricato. Em geral, associado a algum experimento maluco ou antiético.

Fico feliz em poder terminar esse texto receitando um documentário exatamente sobre o cotidiano de um laboratório de biologia molecular. “Naturally Obsessed: the making of a scientist” (https://www.naturallyobsessed.com) foi produzido por Richard e Carole Rifkind. Eles frequentaram o ambiente de um laboratório de pesquisa na Universidade Columbia, em Nova York, por três anos. A edição do filme levou mais de um ano e finalmente está pronta. É a história de como a ciência é feita, quem são os cientistas, as frustrações, a paixão e o prazer.

Infelizmente, não acredito que o filme chegue às telonas. Questiono se é falta de interesse do público, pois acho que muita gente tem interesse em saber como o conhecimento é produzido e aplicado. De qualquer forma, é um começo que deve estimular projetos semelhantes em outras partes do globo.

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26 Comentários para “Naturalmente obcecado”

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  1. 26
    Valeria Dantas::

    Realmente, sou uma retardada…estudo tanto, mais tanto, pra chegar num site como esse e falar que “peço a Deus..”
    Deus é o cu.

  2. 25
    Joao Paulo Martins do Carmo:

    Caro Alysson, venho acompanhando seus textos ha’ algum tempo e concordo plenamente com muito do que ja’ comentaram aqui. Gostaria de saber se vc tem esse texto traduzido pro ingles pra que eu possa enviar pra alguns amigos. Isso ajudaria muito a esclarecer alguns pontos que eu nao sei, mas voce tem uma visao fenomenal da ciencia e pesquisa que muitos nao tem, alem de escrever muito bem. Sou biomedico e faco pesquisa no NIH, e sonho em voltar pra minha terrinha no interior de Goias, mas sei tambem que a estrada que tomei e’ um caminho sem volta. Parabens!

  3. 24
    Wilson Sueoka:

    Alysson,
    Eu copiei o trecho ressaltado pelo Patrus e preguei no corredor dos laboratórios de química aqui na Universidade Estadual de Goiás para mostrar aos alunos o que é fazer ciência.
    Fica tranquilo que citei você como autor.
    Wilson.

  4. 23
    Nilma:

    Oi Alysson.
    Sou estudante de Ciências Biologicas e estou começando com pesquisas. Adorei o post, só não concordei quando você fala que ninguem nunca publicou sobre o assunto. Existe um livro: . A vida de laboratorio: a producao dos fatos cientificos. (Latour, Bruno; Woolgar, Steve), que retrata essa vida. É interessante por ser a visão de um antrópologo sobre um laboratorio.

    Parabéns pelo blog.

  5. 22
    Thiago Salazar:

    Leopoldo de Meis, cientista brasileiro, certa vez disse: \"Se, após alguns anos de tabalho, as sextas à noite são maravilhosas porque no sábado não se trabalha e a noite de domingo é muito triste, porque na segunda-feira começa tudo de novo, então a escolha do trabalho não foi muito boa.\" Eu amo e respiro Ciência, não vejo nada mais excitante em que valha a pena eu colocar as minhas horas do dia a favor. Somos as crianças da humanidade, os Peter Pans, nunca crescemos porque estamos sempre perguntando. Leopoldo ainda diz: \"Não se esqueça de ser jovem: que se encontre com amigos, namore, pratique algum esporte, enfim, que não mutile sua juventude\".

  6. 21
    Gabriela:

    É por essas e outras que já não quero mais ser pesquisadora… Já fui aluna de Iniciação Científica e agora trabalho perto (porém indiretamente) de professores da maior universidade federal do Brasil, da qual também sou aluna. Conheço bem a história. Esse estresse diário é algo que não quero pra minha vida.
    Além do mais, não tem espaço pra todos, ou melhor, pra quase ninguém… Conheço centenas de pessoas que passam a vida fazendo mestrado, doutorado, pós-doutorado, outro pós-doutorado e mais outro e mais outro, apenas esperando passar em um concurso para professor (o cargo é de professor e não pesquisador!!!) da universidade. Essa incerteza também é algo que não faz parte dos meus planos.

  7. 20
    benedito ubiratã:

    Muito bom seu post. Tem tudo de realidade e sobreidade do que se passa no mundo daqueles que fazem a Ciência continuar existindo as vezes por tão pouco, por quase nada, e muitas vezes por nada, a não ser a satisfação.
    Porém eu lembrei de uma coisa de criança, bem na transição de pré adolescente à adolescente, nas aulas de ciências. Qdo minha profa acabou de explicar o sistema digestivo humano, pois estavamos naquela fase do currículo e estudar anatomia, e então por curiosidade, ela resolveu explciar coisas paralelas, ou sistemas digestivos a grosso modo, de outras espécies dos mamíferos. E qdo ela falou das aves co o papo, foi o delírio na classe, e depois qdo ela falou da vaquinha. Foi então o maior dos nojos e frases do tipo que ninguém mais comeria “dobradinha”. E então qause que sucessivamente, eu e uma amiga, perguntamos, a ela o que faria se injetassemos um antibiótico num dos estomagos da vaquinha. Ela deu um riso sério, e respondeu que talvez grandes problemas aconteceriam ao bichinho, que dependia daquelas bactérias. Aí eu pergunto, e me desculpe o prólogo: — vc já imaginou, o que aconteceria se dessem a estes cientistas, um tratamento de anti ansiedade, antidepressivos, e anti psicóticos? Será que a produtividade aumentaria ou diminuiria? Doido isso né? Mas acho que é real.

  8. 19
    Valeria Dantas:

    Parabens, parabens Dr.Alysson.
    Impossivel ler este texto e nao parabeniza-lo.Sou leiga, adoro ciencia, e peço a Deus para iluminar essas mentes como a sua que age, trabalha , e é obcecado pela ciencia .
    Parabens mais uma vez., lindo post . Valeria

  9. 18
    Lara:

    Fantastico! Nao sou cientista e nao tinha ideia de como era a vida no laboratorio, acho que idealizamos demais. Parabens a vc Alysson e a todos os obcecados que nos ajudam diariamente.

  10. 17
    MERY ELIZA RABISCHOVSKY:

    Eu sofri dores abdominais violentíssimas e por sorte minha e a competencia de um jovem medico que me pediu o exame de sangue que avalia o calcio no sangue que se chama PTH detectou um tumor na PARATIREOIDE, depois do diagnostico eu consegui superar. Gostaria que você com sua influencia pudesse sugerir que o nosso presidente em exercício, que tanto tem sofrido, fizesse este exame. O calcio se dissemina pelo sangue e é excretado pelos rins e intestinos, causando estas dores. Esta doença é e dificílimo diagnostico.
    Escrevo para você porque confio que você poderá fazer alguma coisa pelo nosso presidente Jose de Alencar

  11. 16
    Hugo Torres:

    Pena que custa tão caro pra assistir ao video…

  12. 15
    Seu Jorge:

    enquanto isso no Brasil…
    cientistas brigam por bolsa produtividade, preocupando-se mais com aparecer nos jornais do que fazer ciencia.
    Esse texto toca diversos aspectos bem interessantes, achei legal saber que nos EUA o emprego nao eh estavel. Esse clima de funcionalismo publico nas academias poe nossa ciencia muito pra tras…

  13. 14
    Janaina Ferreira:

    Alysson,
    Seu texto me fez pensar, refletir, e acredito que va virar um cult entre os cientistas. Sua visao sempre me impressionou e esse texto parece culminar nessa sua busca pela verdade.
    Continue assim, dentro da ciencia e fora da midia superficial.
    Parabens!

  14. 13
    Giane:

    Alysson é realmente assim que me sinto, é bem assim que vejo essa nossa “missão” de pessoas obcecadas por descobertas, intrigadas pelo desconhecido, ansiosas por respostas e muitas vezes frustradas (por que não?) pelas mesmas. Pessoas que tem um sentido diferente da vida em vários aspectos: no físico (pelo conhecimento que temos acerca das reações, das sinapses, das trocas, das interações químicas e moleculares que estão por trás de cada passo, cada respiração, cada olhar, abraço ou sorriso) no aspecto social (pelas horas de solidão diante da luz do microscópio e das paredes brancas e refrigeradas dos laboratórios, do silêncio das matas, da quietude dos oceanos- nossos ambientes de trabalho, muitas vezes nossa sala de estar ou nosso lar doce lar). Mas pessoas que vem tudo isso como uma fonte de inspiração, de destinação, como um impulso para novos passos afim de entendermos um pouco mais, um mínimo que seja desse grande mistério que é a vida, o ser vivo mutante, mutável e sua interação com a natureza. Confesso que não tenha um dia se quer que eu não pare e pense se é este mesmo o meu caminho, a minha vocação? Confesso que a questão da concorrência e da disputa de projetos, dos números de publicações e dos fatores de impacto, das brigas acadêmicas me tiram um pouco o encanto da nossa profissão, mas sabendo que isso tudo é só mais uma “questão de sobrevivência na sociedade humana” (?), volto e acredito que sim, realmente essa é minha missão e agradeço por ter essa chance e e esse “poder de fingir de Deus”. Sim, sou cientista, sim sou obcecada e pior (rs) sou perfeccionista dentro do meu projeto. Biólogos, Cientistas….daria mesmo pra ficar horas falando sobre essa profissão, sobre essa vida, talvez a explicação seja a paixão pela Bio.

  15. 12
    Petrus Marques:

    “Ciência não é fácil e não é para qualquer um. Não existe ninguém que te acompanha ou motiva no laboratório a cada instante. Ninguém marca ponto quando chega ou sai. Você acha que está livre, mas o problema te acompanha. Você fica preso e ansioso, sempre. Você não relaxa nunca. Não existe final de semana, feriado, Natal, cedo ou tarde. Esses são conceitos temporais do mundo exterior ao laboratório. Ao final de um período, você será julgado pelos resultados produzidos. Ninguém está nem aí se você ficou trabalhando por doze ou duas horas. Os melhores cientistas trabalham duro. Os medíocres também trabalham duro. O trabalho por longas horas do dia não é o diferencial, mas é imprescindível.”

    Nunca pensei que alguém seria capaz de descrever tão fielmente a realidade de um laboratório de pesquisa básica em apenas um parágrafo. Perfeito!

  16. 11
    Ismael Rockenbach:

    Faço doutorado em Ciência dos Alimentos e gostei muito do texto que você produziu. Ele nos faz pensar em questões que muitas vezes passam despercebidas no nosso dia-a-dia. O texto com certeza toca profundamente a todos nós cientistas. Parabéns!

  17. 10
    Lourimar T Beal:

    Alysson, não sou ligada às pesquisas nem tampouco à área científica. Porém, como cidadã, desejo que o filme chegue às telonas, e, como ser humano, agradeço a todos os cientistas pela dedicação e pelas descobertas. Obrigada.

  18. 9
    Patrícia:

    Olá Alison

    Sou técnica de laboratório em uma renomada universidade pública do Brasil e venho contribuir com uma colocação que acho bastante pertinente: a comercialização da pesquisa. Afora a vaidade caracterítica da grande maioria dos cientidtas, a pesquisa tem se tornado algo superficial. A busca pelo conhecimento ficou à margem das conquistas de pontuação docente, do reconhecimento e do ganho de bolsas e outras remunerãções.
    É óbvio que as bolsas são imprescindíveis aqueles estudantes que muitas vezes, dependem dos recursos da Universidade para sobreviver. Nada mais justo. No entanto, o que chega a causar repulsa, é o fato de muitos professores terem salários altíssimos e mesmo assim mendigarem outros recursos do governo e pior, se gabarem de receber uma bolsa pela sua “alta” produtividade científica.
    Nuca me esqueço um dia em que ouví alguém dizer que o cantor popular Wando era melhor que o Chico Buarque, simplesmente porque vendia mais discos.

  19. 8
    Ana Carolina Volpi:

    Alysson! Parabéns pelo post! Muito bom!! Sempre que posso entro no blog pra ver as novidades e gosto muito! Sou apaixonada por ciencia e aqui é um ótimo lugar pra se ler a respeito!

  20. 7
    Moacyr Waldez Batilani:

    A obcessão leva aperfeição sim. No entanto, esta perfeição, ou seja, a resposta que todos os cientistas buscam, tem um preço além da abdicação da ” vida pessoal”, sim, pois vive-se para a ciência, apesar de nem sempre ser possível viver de ciência. Este preço é resiguinar-se quanto ao seu tamanho, a limitação humana e a efêmeridade de uma vida, quando a sua descoberta for tão grande a ponto de mudar a História…E este é preço que todos, se não a maioria, querem ter a honra de pagar.
    Excelente matéria….
    Abraço

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