Animação suspensa

sex, 22/05/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Você já passou pela sensação de querer se desligar um pouco? Talvez sua vida estivesse tão complicada que você gostaria de entrar num estado de hibernação, para depois retornar quando tudo estivesse melhor. Ou então optar for ficar congelado enquanto a cura para sua doença não chega?

No filme “Vanilla Sky” (uma refilmagem americana do original espanhol), o protagonista opta pelos serviços de suspensão animada com “sonhos lúcidos” oferecidos por uma firma de biotecnologia, após sofrer um acidente que deforma sua face. Assim, permanecerá em suspensão animada até um futuro quando a tecnologia de reconstrução facial esteja mais avançada. Mas algo dá errado com seus sonhos, e ele tem de chamar a assistência técnica…

Diversos animais são capazes de, literalmente, desligar seu organismo por um tempo utilizando uma flexibilidade metabólica. Assim, conseguem reduzir o metabolismo e os batimentos cardíacos dependendo do ambiente em que se encontram. Essa flexibilidade tem, obviamente, um custo evolutivo, pois essas espécies acabam por ficar vulneráveis durante essa suspensão. Mas e no caso de humanos? Seria possível quebrar esse dogma médico? Relatos de casos isolados de indivíduos que treinaram mente e corpo durante anos para chegar nesse estágio podem ser encontrados na internet. Seria isso fato ou ficção?

Abre tus ojos
No começo de 2001, Erika Nordby, um bebê de apenas 1 ano de idade, saiu engatinhando de sua casa no Canadá durante uma noite gelada de 0 grau Celsius. Quando sua mãe a encontrou congelada, duas horas depois, o coração de Erika tinha parado de bater, sua respiração cessado e sua temperatura corpórea tinha abaixado para 16oC (a temperatura fisiológica do corpo humano é 37oC). Erika foi levada as pressas ao hospital, onde foi ressuscitada e hoje não tem nenhuma sequela do incidente.

Em outubro de 2006, Mitsutaka Uchikoshi, 35 anos, adormeceu enquanto escalava a montanha gelada Rokko, nos arredores de Kobe, Japão. Ele foi considerado morto ao ser resgatado, 24 dias depois do ocorrido, com a temperatura corpórea de 21oC, sem pulsação, sem comida ou água. Entretanto, ao chegar ao Hospital Geral da Cidade de Kobe, algo fantástico ocorreu: Mitsutaka acordou. Mais impressionante ainda, ele não havia sofrido nenhum dano cerebral.

Em maio de 1999, a esquiadora norueguesa Anna Bagenholm ficou submersa em águas geladas por mais de 1 hora, sendo considerada clinicamente morta. Sem batimentos cardíacos, sem respiração e temperatura corpórea de 13oC, ela foi ressuscitada poucas horas mais tarde no hospital (Gilbert, M e colegas. “The Lancet”, 2000).

Tanto o bebê quanto o japonês e a norueguesa foram capazes de driblar a morte entrando em um estado conhecido como animação suspensa, no qual a maquinaria vital reduz sua atividade ao mínimo necessário, mas sem parar completamente. Esse estado é comparável à hibernação em alguns mamíferos e, em geral, é acompanhado de redução da temperatura corpórea ou hipotermia. O estudo desses casos isolados fez especialistas concluir que, em condições especiais, o homem também poderia hibernar.

Ainda que a hipotermia não esteja sendo explorada por completo na medicina, já são conhecidos os benefícios de diminuir a temperatura abaixo de 37 graus Celsius em casos de parada cardíaca na recuperação das funções vitais, evitando danos no sistema nervoso centr

Ovo podre
Essa capacidade de flexibilidade metabólica entre a vida e a morte através da hipotermia chamou a atenção de Mark Roth, pesquisador do Centro de Estudos do Câncer Fred Hutchinson, em Seatle, EUA. Ele queria encontrar uma forma química (consequentemente mais rápida e prática) de induzir o estado de animação suspensa.

Roth refletiu que outra maneira de reduzir a atividade metabólica em mamíferos seria restringindo o consumo de oxigênio (hipoxia). Foi então que ele teve uma ideia, enquanto assistia a um documentário sobre escavações em cavernas no México. Trabalhadores das minas mexicanas tinham de utilizar máscaras constantemente, para se proteger do gás sulfídrico ou sulfeto de hidrogênio (símbolo químico: H2S). Em altas concentrações, esse gás pode matar em minutos, pois bloqueia os receptores de oxigênio das células, que não conseguem mais absorver o oxigênio.

Daí veio a sacada de Roth: o H2S é um produto do metabolismo celular que está naturalmente presente no sangue e só apresenta riscos vitais em altas doses. Se administrado em concentrações mínimas, o H2S teria, em princípio, o potencial de reduzir profundamente a demanda de oxigênio, a ponto de diminuir o metabolismo celular e proporcionar um estado de animação suspensa. Para quem acha que nunca respirou gás sulfídrico, ledo engano… A grande maioria de nós já teve a chance (infelizmente) de sentir o cheirinho desagradável de ovos podres.

Voltando ao Roth, ele imediatamente resolveu expor seus camundongos a baixas concentrações de H2S e foi capaz de induzir até 6 horas de hibernação reversiva. Seus resultados foram publicados na prestigiosa revista “Science” (Blackstone e colegas, 2005) e uma fila de investidores veio bater na porta do seu laboratório. Em pouco tempo, havia acumulado 10 milhões de dólares para financiar seus próximos experimentos.

Pílulas de hibernação
Muito mais do que uma curiosidade biológica, a manutenção do estado de animação suspensa em humanos tem o potencial de ser uma poderosa ferramenta clínica. Desde a publicação original em 2005, a empresa farmacêutica americana Ikaria (nome inspirado na ilha grega cujas fontes sulfurosas foram associadas à medicina regenerativa) reformulou o H2S em líquido injetável que está sendo utilizado nos primeiros testes clínicos.

As aplicações de dessa tecnologia extraordinária podem ser imensas. Imagine se pudéssemos induzir o estado de hibernação em um acidentado enquanto esperamos o socorro que não chega? E soldados em batalha, será que teriam mais chances se ganhassem mais tempo durante o transporte? Ou então para manter pacientes na fila dos transplantes enquanto esperam? Carregaríamos no bolso pílulas de hibernação assim como carregamos aspirinas. Parece ficção científica nos dias atuais, mas talvez não em 50 anos. Lembre-se disso da próxima vez que cheirar ovo podre!

O humanzé e os bolcheviques: a tentativa de mandar a igreja pros infernos

sex, 08/05/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A possibilidade de cruzamento entre humanos e outros primatas tem sido discutida tanto na ficção quanto na literatura científica há séculos. A possibilidade de cruzar a fronteira que separa os humanos das outras espécies é um campo fértil para diferentes pontos de vista e viola diversos tabus culturais e éticos.

O interesse nesse assunto sempre acompanha certo medo e aversão. De certa forma, essa reação faz sentido. Afinal, estamos aprendendo que a relação próxima de humanos com outros animais pode favorecer a transmissão de microrganismos fatais à espécie humana, como no caso do vírus causador da Aids, o HIV. Porém, sabemos dessa conseqüência hoje em dia apenas. No passado, experimentos para estudar um possível híbrido entre humanos e chimpanzés foram propostos. O que pouca gente sabe é que, de fato, ocorreram, e com consentimento da sociedade.

Estamos em fevereiro de 1926, quando o governo da então União Soviética, com o apoio de sua Academia de Ciências, enviou uma curiosa expedição para a África. O objetivo era inseminar artificialmente chimpanzés fêmeas com esperma humano e obter, caso viável, um híbrido das duas espécies. O líder dessa expedição era o respeitado professor russo Ilya Ivanov.

Ivanov era um nome de peso na área de reprodução no começo do século (1907). Com seus experimentos de inseminação artificial (um sacrilégio na época), conseguiu exterminar a idéia de que o ato sexual era necessário para a reprodução. Ivanov desenvolveu instrumentos que permitiam uma operação simples e rápida no campo, conseguindo colocar a Rússia em posição de destaque na pecuária. Logo, sua tecnologia estava sendo aplicada em cavalos e outros animais de interesse. Esse sucesso foi conseguido por causa do constante apoio financeiro que recebia dos ministérios russos e da aristocracia da época. Mais tarde, Ivanov ganharia seu próprio laboratório, recebendo cartas de recomendação de Pavlov, o primeiro prêmio Nobel da Rússia.

O trabalho experimental de Ivanov sofreu influências da genética, ciência que começava a surgir em solo russo, fazendo com que se interessasse por questões fundamentais sobre a fertilização de diferentes espécies animais. A fertilização artificial permitia o cruzamento de animais diferentes, construindo novas formas de vida que não existiam na natureza. Diversos experimentos foram feitos, resultando em híbridos exóticos. Em 1910, Ivanov comenta publicamente que o uso da inseminação artificial poderia gerar um híbrido entre humano e outros primatas. No entanto, não existem evidências de que estaria planejando algo assim, talvez pela falta de acesso direto às espécies para experimentos. A situação mudaria drasticamente após a Revolução Russa de 1917.

O radicalismo do comunismo bolchevique chegou destruindo o sistema de terras privadas e toda a hierarquia da sociedade russa. No entanto, a revolução respeitava o significado da ciência e seus especialistas. A revolução eliminou a rede de apoio financeiro que Ivanov tinha, principalmente da aristocracia e realeza. Para seguir seus estudos, Ivanov acabou indo para a Alemanha e depois para a França, onde lançou a ideia dos experimentos de hibridização de humanos e chimpanzés aos diretores do Instituto Pasteur. Curiosamente, os diretores permitiram que Ivanov utilizasse as instalações da estação de primatas em Kindia, na Guiana Francesa.

Com o apoio francês, Ivanov pediu permissão para sua missão aos bolcheviques. A aceitação dos experimentos e da proposta foi feita com base no fato de que, caso ele gerasse um híbrido, esse seria usado como propagando do partido contra os ensinamentos religiosos e para a libertação dos trabalhadores do poder da Igreja Ortodoxa. Literalmente, o que o partido queria era esfregar na cara dos religiosos um híbrido primata, meio humano, meio chimpanzé, como evidência crucial da teoria evolutiva de Darwin.

A definição de humanos como superiores aos outros animais influenciou diversos pensamentos racistas, classistas e machistas. O estado “degenerado”, também considerado como primitivo ou animal, era visto como um ataque moral à espécie humana. O programa revolucionário socialista tentava aniquilar esses conceitos, destruindo tabus sociais e culturais. Era mais fácil falar em experimentos cruzando espécies dentro desse contexto bolchevique.

O medo de que a Rússia não se industrializasse tão rapidamente quanto o Ocidente tinha como principal razão a falta de cultura e analfabetismo da população, parcialmente causada pelo forte contexto religioso. Assim, a elitização da ciência e principalmente o experimento de hibridização proposto por Ivanov seriam fortes aliados para “iluminar” a população. A ressonância pública de tal híbrido seria uma forma de o comunismo derrotar visões religiosas. Darwin, em particular, tinha um valor político direto como ferramenta de propaganda antirreligiosa. Curiosamente, não existem evidências sobre qualquer discussão a respeito do aspecto ético de tal experimento. Aparentemente, o fato de que os experimentos seriam executados longe da “sociedade civilizada” era suficiente para que as questões éticas e morais fossem deixadas de lado.

No primeiro semestre de 1927, Ivanov, auxiliado por seu filho, já havia inseminado três chimpanzés fêmeas, mas nunca obteve um híbrido. As descrições das inseminações nos animais extraídas do diário de Ivanov mostram claramente o trato brutal com os animais, muitas vezes causado pela pressa em realizar os experimentos, longe do olhar crítico do pessoal que trabalhava na estação e que não tinha a capacidade mental para entender tais experimentos. A natureza do esperma também não é clara. Se por um lado Ivanov havia escrito que esperma de um “negro” poderia funcionar melhor, é possível que tenha usado esperma do próprio filho. A falta de sensibilidade de Ivanov durante os experimentos talvez reflita a necessidade de se distanciar psicologicamente de um bebê híbrido em potencial.

Aparentemente, a razão do fracasso em Kindia foi atribuída ao fato de que os animais usados eram pré-adolescentes, fato desconhecido na época. O financiamento inicial de Ivanov estava chegando ao final, mas ele esperava que, se conseguisse obter ao menos um híbrido, garantiria fundos futuros. Quando seu período terminou, Ivanov levou alguns primatas para Sukhum, uma estação de primatas com clima subtropical no território soviético.

Nessa etapa, Ivanov tentou continuar seus experimentos, mas desta vez usando mulheres voluntárias que seriam inseminadas com o esperma de um orangotango macho, conhecido como Tarzan. Num primeiro momento, Ivanov estaria disposto a fazer os experimentos sem o consentimento das mulheres, mas foi vetado pela Academia de Ciências Russa. A única opção viável seria executar os experimentos com voluntárias.

Interessante notar que, ao mesmo tempo em que a Revolução Russa buscava uma sociedade sem classes, também buscava a igualdade entre os sexos. Mulheres deveriam ter participação política e liberdade para divórcio ou aborto. Milhares de jovens mulheres participavam das campanhas de emancipação promovidas pelo Partido Comunista. E foi nesse contexto que foi anunciada a necessidade de voluntárias para o experimento de Ivanov, o qual buscava mulheres “iluminadas pelo comunismo e livres de tabus supersticiosos”. Ivanov e os cientistas da época ignoravam completamente que uma voluntária poderia se afeiçoar sentimentalmente ao bebê. Por incrível que pareça, Ivanov conseguiu uma voluntária.

Em carta destinada a Ivanov, a voluntária se mostrava desesperada com problemas particulares e só via razão em existir ao servir a ciência. A análise microscópica do esperma de Tarzan mostrou espermatozoides ativos. Infelizmente, Tarzan morreu de forma inesperada de uma hemorragia cerebral. O experimento teve de ser adiado e novos animais foram requisitados.

Ivanov estava numa posição delicada. Se por um lado a revolução cultural russa tornou seus experimentos ideologicamente aceitáveis, por outro o colocava em risco pessoal. Ivanov era considerado um dos “tradicionais especialistas” e corria o risco de sofrer críticas políticas e repressão. De fato, Ivanov acabou sendo acusado e exposto por seus antigos assistentes, um padrão comum usado pelo partido para afastar antigos cientistas que haviam servido à aristocracia.

Os experimentos de Ivanov terminaram quando foi aprisionado pelo serviço secreto russo em 1930, acusado de atividades antirrevolucionárias. Foi liberado no ano seguinte, mas morreu com 61 anos sem ter publicado nada sobre suas tentativas de gerar um híbrido. Documentos referentes a isso ficaram esquecidos em antigos arquivos durante anos. Até que algum roteirista de Hollywood se interesse pela história, a grande maioria das pessoas não saberá nada sobre os experimentos de Ivanov.

Nas décadas seguintes, diversos pesquisadores propuseram que esses experimentos fossem realizados, mas eles estavam cada vez mais impossíveis do ponto de vista ético: o que aconteceria se o experimento fosse um sucesso? O híbrido seria considerado humano ou animal? Poderíamos usar a definição de “humano” para os híbridos?

Uma vez que os humanos diferem de outros primatas no número de cromossomos, é possível que eventuais híbridos sejam estéreis. Hoje se sabe que, muito provavelmente, a inseminação de esperma humano em outros primatas não resulta em fecundação, pois o esperma humano é imunogênico, sendo atacado prontamente pelo sistema imune de primatas não-humanos. No entanto, o inverso pode não ser verdade. Aliás, hoje em dia a fertilização in vitro poderia, em tese, gerar embriões híbridos em laboratório e implantados diretamente no útero. Acredita-se que o embrião não conseguiria se desenvolver por muito tempo por causa da incompatibilidade genética. Apesar de termos cerca de 99% de nosso DNA semelhante ao dos chimpanzés, as duas espécies seguiram caminhos evolutivos muito distintos.

Muito provavelmente esses experimentos nunca foram realizados. O sentimento de aversão que surge na maioria das pessoas quando expostas a essa idéia não tem uma explicação clara. Parte disso parece estar ligada a um resíduo na crença de que o material humano é sagrado. Mesmo um dos maiores racistas de todos os tempos, Adolph Hitler, expressou indignação sobre possíveis experimentos de hibridização humana, acreditando que qualquer mistura levaria à degeneração da espécie.

Do ponto de vista cientifico, vejo pouco fundamento em tais experimentos. Mas o fato de que eles foram plenamente justificados por uma sociedade humana é um alerta que faz pensar. Valores morais não são estáticos.

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PS: Aos que desejarem saber mais sobre vida e o legado de Ivanov, recomendo o artigo “Beyond Species: Il’ya Ivanov and his experiments on cross-breeding human with anthropoid apes” – Kirill Rossiianov, Science in Context 15(2), 277-16 (2002).



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