Eliminando memórias

sex, 27/03/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Imagine que exista vida após a morte. Imagine agora que, antes de partir para essa outra vida, você fosse direcionado para um lugar especial, um lugar onde você teria um tempo para refletir sobre sua existência e escolher apenas uma memória que o acompanharia para todo o sempre. Todas as outras memórias seriam cuidadosamente “apagadas” do seu cérebro. Qual seria a memória que você escolheria? Escolher uma única memória, ou apagar outras, pode significar a redescoberta de sua própria vida. Memórias são importantes, representam quem você é ou foi. Esse é justamente o roteiro do belo filme “After Life”, de Hirozaku Kore-eda.

Curiosamente, a escolha de memórias pelas personagens do filme estava vinculada à remoção de outras memórias do cérebro. Até recentemente, não sabíamos se a remoção de memórias específicas do cérebro seria ou não possível. Semana passada, um artigo publicado na prestigiosa revista especializada “Science” (Han e colegas, 2009) relatou experimentos em camundongos mostrando ser possível apagar seletivamente memórias do cérebro.

Acredita-se que as memórias são armazenas em redes neurais, “dentro” de um grupo restrito de neurônios que se comunicam. No entanto, a exata correlação entre grupos de neurônios e memórias nunca havia sido demonstrada de forma convincente.

No estudo da “Science”, o grupo de pesquisa gerou uma memória de “medo” num grupo de camundongos. A memória foi gerada a partir do condicionamento do animal ao som de um apito com um pequeno choque elétrico nas patas. Logo depois de ouvir o apito, o animal levava um pequeno choque. Após algumas sessões, bastava ouvir o apito que o animal já se colocava em um comportamento característico: literalmente congelava de medo, como se ficasse esperando pelo choque.

Amígdala
Sabia-se que o medo estava correlacionado com atividades de neurônios da amígdala lateral (uma região do cérebro, não na garganta…). Depois de gerar a memória de medo nos animais, o grupo usou uma estratégia genética para ativar uma toxina que atacava preferencialmente os neurônios dessa região do cérebro. Após eliminar de 10% a 20% desses neurônios, a memória de medo foi eliminada por completo do cérebro dos animais. Comportavam-se ao ouvir o apito como se nunca tivessem sido expostos aos choques: os animais não apresentavam o comportamento característico de medo. Como se tivessem esquecido que, ao ouvir o apito, levariam um choque.

Num estudo publicado anteriormente, já havia sido mostrado que, estimulando esses neurônios, conseguia-se amplificar a memória do medo. Juntos, esses dois experimentos confirmam o papel da amígdala no conteúdo emocional da resposta ao medo e começam a determinar quais seriam as redes neuronais envolvidas. Em humanos, a síndrome de Kluver-Bucy, um distúrbio comportamental que ocorre quando regiões da amígdala são retiradas por algum motivo, os indivíduos tornam-se mais dóceis, menos estressados e perdem a capacidade de avaliar situações de perigo.

O mais intrigante do estudo da Science é que nenhuma outra memória foi, aparentemente, atingida. Mesmo memórias de outros medos não foram apagadas. O procedimento também não interferiu em nada com a capacidade dos animais de adquirirem novas memórias. Os animais foram inclusive capazes de reaprender a memória do medo dos choques depois de um período novo de treinamento. Os resultados obtidos foram específicos, potentes e duradouros.

Apesar dos avanços, não estamos nem perto de apagar memórias em humanos. Memórias constituem a base do aprendizado e personalidade de cada um de nós. Na verdade, devemos pensar direito que memórias apagaríamos se tivéssemos realmente essa oportunidade. Apagar memórias ruins não é nada trivial, afinal elas existem por uma razão: hoje em dia você não coloca a mão no fogo ou na tomada, correto?

Por outro lado, eliminar memórias deletérias para a saúde humana, como no caso de episódios de estresse pós-traumático, poderia funcionar como uma nova terapia. Ainda chegaremos lá.

O cérebro moral

sex, 13/03/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O recente caso da menina de 9 anos, estuprada pelo padrasto e que interrompeu a gravidez, comoveu o mundo. Mas comoção maior veio depois das críticas e julgamento moral de grupos religiosos contra médicos e familiares que consentiram com o aborto. O episódio ilustra uma das questões filosóficas mais antigas e que está sendo trabalhada pela neurociência: o que é certo e o que é errado? Esse valor moral é particular dos humanos ou outros animais também o possuem?

A questão da origem do valor moral intrigou grandes pensadores, e basicamente três fontes foram cogitadas. Primeiro, o que é certo ou errado tem origem em uma autoridade divina. Os seres humanos não interferem nisso, apenas aceitam a opção da divindade. Segundo, o que a origem estaria na razão, ou seja, seria através da troca de argumentos que se chegaria a uma conclusão para cada caso. Por último, cogitou-se que a origem da moral estaria na biologia de cada espécie, no seu conjunto genético, mas passível de interações com o ambiente.

A primeira hipótese foi contestada por Sócrates, que se baseou no fato de que culturas que vivem sem um “Deus”, ou entidade divina definida, possuem valores morais. Da mesma forma, culturas politeístas também possuem valores morais. Seu outro argumento foi a falta de se conseguir identificar uma linguagem clara da divindade. Afinal, diversas pessoas começavam a defender pontos de vista discrepantes baseando-se apenas no fato de que era o mesmo “Deus” que havia assim ordenado. Como saber quem fala a verdade e quem mente?

Já Aristóteles identificou os humanos como animais sociais e sugeriu que a moral ajudaria a resolver conflitos sociais, trazendo uma satisfação para os elementos envolvidos. Esse ponto foi muito bem aproveitado por Darwin, que argumentou que a moral humana deveria ter origem nos instintos sociais, nos hábitos e na razão. Pensando assim, o isolamento social teria um custo alto para o indivíduo, da mesma forma que a falta de confiança entre membros do grupo. Ou seja, indivíduos que se ajustariam às redes sociais se dariam melhor na vida, deixando mais descendentes.

O caso do vampiro pidão
Morcegos-vampiro costumam viver juntos, são animais altamente sociais. À noite, saem em busca de sangue e voltam carregados para alimentar seus filhotes. Os menos afortunados pedem sangue aos vizinhos, que têm a opção de doar ou não um pouco do que conseguiram coletar. Aí vem o fato curioso: ao negar alimento ao vizinho, o elemento é rapidamente marcado e não receberá nenhuma ajuda futura de nenhum outro membro da comunidade. Basta um curto período sem alimento e os indivíduos de toda a família morrerão de fome, na presença indiferente de todo o resto.

O caso do roedor ricardão
Apenas 3% dos mamíferos são monogâmicos. Inclui-se aí uma espécie de roedor que, quando encontra seu par, permanece fiel até que a morte os separe. Machos membros de uma outra espécie, quase indistinguíveis entre si, são exatamente o contrário e não conseguem ficar com a mesma fêmea, estão sempre trocando de parceiras, sempre preferindo a novidade quando a escolha é apresentada. A diferença entre essas duas espécie está na ação de um único gene, o receptor do hormônio oxitocina. Elevados níveis de oxitocina foram relacionados com um aumento de confiança, redução da ansiedade e pressão sanguínea e redução dos mecanismos de defesa. É justamente esse o hormônio liberado na lactação, responsável por manter mãe e filho unidos. Assim, nos roedores fiéis, a presença elevada dos receptores no cérebro elevam a sensação de prazer ao se associar a uma fêmea única. Ao contrário dos machos infiéis, cujas redes nervosas foram geneticamente criadas para não se saciar nunca.

O caso do macaco descolado
O cultivo da confiança entre os membros de uma sociedade pode ser uma qualidade em alguns primatas. Nas comunidades de babuínos, a reciprocidade e a reputação contam muito para o estabelecimento de redes sociais. Curiosamente, o sucesso social nesse caso está diretamente relacionado com o sucesso reprodutivo.

O caso da cenoura americana
Mas no caso dos humanos tudo é mais complicado, pois alteramos constantemente as forças seletivas “naturais” (veja coluna passada). Um número grande de amigos no Orkut não necessariamente coloca você em vantagem reprodutiva e pode até ser visto como algo negativo. As sociedades humanas se organizam de formas distintas. Criamos instituições e essas estão sempre a julgar os comportamentos sociais, seja com base na vontade divina (mulheres acusadas de bruxaria já tiveram que segurar uma barra de ferro quente, só Deus poderia intervir e fazê-las suportar caso fossem inocentes), na vontade monárquica ou na vontade de um júri popular.

Uma explicação para o surgimento de intuições desse tipo pode ser o grande número de indivíduos nos agrupamentos humanos. E quanto maior o grupo, mais difícil de selecionar novos membros. Estudos recentes de comportamento humano e em outros primatas apontam para o valor inconsciente dos gestos. A imitação dos pares parece ser crítica, pois sugere um funcionamento normal do cérebro e eventual lealdade com o grupo. Empresas americanas costumam perguntar em entrevistas de emprego que tipo de vegetal você seria. Por mais louco que possa parecer, 90% do inconsciente americano responde “cenoura”, de primeira. Respostas próximas, de vegetais que lembrem cenouras, são aceitáveis, mas respostas muito diferentes indicariam um desligamento social ou ausência da capacidade de trabalhar em grupo. O candidato pode até ser supercriativo e competente. Mas, se não veste a camisa do time, não será contratado.

As regras sociais humanas também variam muito, mesmo dentro do mesmo grupo social, algo não muito comum em outros animais. Crianças aprendem desde cedo que mentir é ruim, mas conforme crescem e ampliam as redes sociais, a mentira passa a ter um outro valor. Criou-se até o termo “mentira branca” para mentiras que supostamente não causam danos. Na complexidade das relações humanas, o julgamento moral também fica mais complexo.

Voltando ao triste caso da menina: como deveríamos agir como sociedade se fosse descoberto causas genéticas que justificassem o comportamento do padrasto? O mesmo valeria para os padres acusados de abuso de crianças? O que é pior: estupro ou aborto? Não acredito que a ciência vá gerar respostas para essas questões. É função dos cientistas gerar dados, mas a função da sociedade é decidir o que fazer com eles. Costumo discutir sobre questões éticas com pessoas com que me relaciono no dia-a-dia, desde o parceiro de trabalho ao motorista do ônibus. A tentativa é ampliar o pouco espaço para a reflexão e pensamento crítico nas redes sociais. Em geral, esse espaço é massacrado pelas respostas enlatadas que vêm dos jornais ou das novelas.



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