Eliminando memórias
Imagine que exista vida após a morte. Imagine agora que, antes de partir para essa outra vida, você fosse direcionado para um lugar especial, um lugar onde você teria um tempo para refletir sobre sua existência e escolher apenas uma memória que o acompanharia para todo o sempre. Todas as outras memórias seriam cuidadosamente “apagadas” do seu cérebro. Qual seria a memória que você escolheria? Escolher uma única memória, ou apagar outras, pode significar a redescoberta de sua própria vida. Memórias são importantes, representam quem você é ou foi. Esse é justamente o roteiro do belo filme “After Life”, de Hirozaku Kore-eda.
Curiosamente, a escolha de memórias pelas personagens do filme estava vinculada à remoção de outras memórias do cérebro. Até recentemente, não sabíamos se a remoção de memórias específicas do cérebro seria ou não possível. Semana passada, um artigo publicado na prestigiosa revista especializada “Science” (Han e colegas, 2009) relatou experimentos em camundongos mostrando ser possível apagar seletivamente memórias do cérebro.
Acredita-se que as memórias são armazenas em redes neurais, “dentro” de um grupo restrito de neurônios que se comunicam. No entanto, a exata correlação entre grupos de neurônios e memórias nunca havia sido demonstrada de forma convincente.
No estudo da “Science”, o grupo de pesquisa gerou uma memória de “medo” num grupo de camundongos. A memória foi gerada a partir do condicionamento do animal ao som de um apito com um pequeno choque elétrico nas patas. Logo depois de ouvir o apito, o animal levava um pequeno choque. Após algumas sessões, bastava ouvir o apito que o animal já se colocava em um comportamento característico: literalmente congelava de medo, como se ficasse esperando pelo choque.
Amígdala
Sabia-se que o medo estava correlacionado com atividades de neurônios da amígdala lateral (uma região do cérebro, não na garganta…). Depois de gerar a memória de medo nos animais, o grupo usou uma estratégia genética para ativar uma toxina que atacava preferencialmente os neurônios dessa região do cérebro. Após eliminar de 10% a 20% desses neurônios, a memória de medo foi eliminada por completo do cérebro dos animais. Comportavam-se ao ouvir o apito como se nunca tivessem sido expostos aos choques: os animais não apresentavam o comportamento característico de medo. Como se tivessem esquecido que, ao ouvir o apito, levariam um choque.
Num estudo publicado anteriormente, já havia sido mostrado que, estimulando esses neurônios, conseguia-se amplificar a memória do medo. Juntos, esses dois experimentos confirmam o papel da amígdala no conteúdo emocional da resposta ao medo e começam a determinar quais seriam as redes neuronais envolvidas. Em humanos, a síndrome de Kluver-Bucy, um distúrbio comportamental que ocorre quando regiões da amígdala são retiradas por algum motivo, os indivíduos tornam-se mais dóceis, menos estressados e perdem a capacidade de avaliar situações de perigo.
O mais intrigante do estudo da Science é que nenhuma outra memória foi, aparentemente, atingida. Mesmo memórias de outros medos não foram apagadas. O procedimento também não interferiu em nada com a capacidade dos animais de adquirirem novas memórias. Os animais foram inclusive capazes de reaprender a memória do medo dos choques depois de um período novo de treinamento. Os resultados obtidos foram específicos, potentes e duradouros.
Apesar dos avanços, não estamos nem perto de apagar memórias em humanos. Memórias constituem a base do aprendizado e personalidade de cada um de nós. Na verdade, devemos pensar direito que memórias apagaríamos se tivéssemos realmente essa oportunidade. Apagar memórias ruins não é nada trivial, afinal elas existem por uma razão: hoje em dia você não coloca a mão no fogo ou na tomada, correto?
Por outro lado, eliminar memórias deletérias para a saúde humana, como no caso de episódios de estresse pós-traumático, poderia funcionar como uma nova terapia. Ainda chegaremos lá.