O camundongo reprogramável e a busca por “god”

sex, 18/07/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Há quase dois anos, ainda em 2006, estava eu sentado num congresso internacional de células-tronco, ouvindo o simpático japonês Shinya Yamanaka contar suas peripécias ao tentar rejuvenescer ou reprogramar uma célula já especializada (no caso, células da pele de um camundongo) , para transformá-la em uma célula pluripotente usando uma triagem genética. Essa célula deveria então ter o mesmo potencial de uma célula-tronco embrionária, ou seja, ser capaz de se diferenciar em todos os tipos celulares de um organismo.

Na audiência, muita gente torceu o nariz. Afinal, reprogramar uma célula dessa forma parecia um feito muito difícil, senão impossível. Quais e quantos seriam os fatores ou genes necessários? Qual seria a dosagem correta desses fatores? Enfim, os experimentos pareciam dantescos e com grandes chances de dar errado. “Deixa ele tentar” – era o que se ouvia nos corredores.

Na verdade, as bolas da vez eram a clonagem terapêutica e a fusão nuclear – nenhum desses métodos usava a triagem genética, mas a manipulação do núcleo celular (algo mais “palpável”). Alguns grupos dos EUA estavam liderando essa parada e a atenção da comunidade e das revistas científicas estava toda voltada para eles.

Eu simpatizei com o pequeno japonês e dei meu voto de confiança (escrevi sobre o potencial da técnica naquele mesmo ano, aqui no G1). Afinal, se ele conseguisse seria uma revolução científica por diversas razões já discutidas aqui. (Reprogramação: de volta para imortalidade, parte II). Yamanaka é uma alma livre, um Kowalski (protagonista do clássico “Vanishing Point”) da ciência, e não se deixou intimidar pelo modismo e pela tendência das prestigiosas revistas. O resto é história. Naquele mesmo ano o grupo de Yamanaka presenteou o mundo com as células iPS (do inglês, induced pluripotent stem cell, o célula-tronco pluripotente induzida), reprogramando células da pele com apenas quatro fatores, quatro genes.

Com isso, Yamanaka ganhou prestígio e é um forte candidato a prêmio Nobel. O feito do grupo japonês foi imediatamente reproduzido por diversos laboratórios mundo afora, consolidando sua descoberta. E, como era de se esperar, muitos cientistas aproveitaram o momento para publicar (nas mesmas prestigiosas revistas) pequenas alterações que melhoraram o método inicial. Não se iluda, leitor: não se trata de ganhos intelectuais, apenas técnicos e previsíveis. Realmente, nada de muito novo até agora.

Mas recentemente fui surpreendido com uma elegante publicação que avança um pouco mais a descoberta original de Yamanaka (Wernig e colegas, “Nature Biotechnology”, 2008). Nesse trabalho, o grupo do Instituto Whitehead, do MIT (estado de Massachusetts, nos EUA), conseguiu produzir um camundongo transgênico cujas células podem se auto-reprogramar quando em contato com uma droga específica.

Para chegar aí, os pesquisadores introduziram nas células da pele do camundongo os quatro genes que Yamanaka havia descrito como responsáveis pela reprogramação. No entanto, os genes só seriam ativados de forma condicional, ou seja, somente quando fosse adicionado ao meio de cultura uma droga indutora chamada doxiciclina, ou dox. Na ausência da droga, nada acontecia com as células. Mas, na presença de dox, os genes eram ativados e as células da pele, reprogramadas, tornando-se pluripotentes.

Injetando essas células pluripotentes em blastocistos (embriões em fase inicial) de camundongos normais, os pesquisadores criaram animais transgênicos cujas células continham a versão condicional dos fatores de reprogramação. E, para mostrar, que o sistema funcionava conforme o esperado, foram isoladas células de diversos tecidos desses animais, incluindo intestino, músculo, pele e fígado. Todas elas, quando em contato com dox, resultaram em colônias de células iPS.

A beleza do experimento não está só na capacidade de se obter células iPS de uma maneira mais prática e homogênea, mas no potencial que esses camundongos representam para questões fundamentais da reprogramação genética. Por exemplo, o que aconteceria se fosse administrada a dox ao animal inteiro? Todas as células reprogramariam ao mesmo tempo e teríamos um modelo para estudo de teratomas? Mais ainda, comparando as células iPS geradas de diversos tecidos, o grupo descobriu que, dependendo do tecido, o tempo e a dose dos quatro fatores são cruciais para uma reprogramação eficaz. Além disso, nem todas as células precisam dos quatro fatores. Outras precisam de fatores adicionais.

E é exatamente aí que quero chegar: reprogramar uma das células mais complexas e especializadas do corpo, o neurônio. Existe apenas um relato na literatura sobre a clonagem (e conseqüente reprogramação) de um camundongo a partir de um neurônio usando transferência de núcleo, mas até hoje ninguém nunca reproduziu esse dado (Eggan e colegas, Nature 2004). Por outro lado, existem diversos relatos mostrando tentativas fracassadas. Não parece ser só uma questão de divisão celular, pois células musculares também não se dividem e já foram reprogramadas. Existe algo de muito especial nos neurônios. No trabalho do camundongo reprogramável, o grupo não descreve nada sobre neurônios, ficando a dúvida se eles não conseguiram ou nem tentaram.

A saga da reprogramação neuronal é de importância fundamental na biologia. Assim como no sistema imune, o sistema nervoso precisa gerar uma complexidade celular enorme para garantir o funcionamento de um cérebro sofisticado. Não conhecemos os mecanismos moleculares responsáveis por essa diversidade toda.

É interessante notar que esses geradores de diversidade (do inglês “god” ou generators of diversity) seriam então os responsáveis pela própria consciência humana. Entender como os diversos tipos de neurônios são gerados é o primeiro passo para entender o potencial do cérebro.

Existem alguns candidatos a “god” cerebral, como o processamento alternativo do RNA ou as modificações pós-traducionais das proteínas, mas não são suficientemente elaborados para promover o complexo circuito neuronal. Questiona-se se alterações no nível do DNA também contribuem para a diversidade do sistema nervoso. Quem demonstrar isso vai simplesmente alterar a forma como vemos o cérebro e as redes nervosas. E uma das formas de se chegar lá pode ser justamente a partir de um neurônio reprogramado.

Mentes que dançam

sex, 04/07/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa…”Basta ouvir o começo da música e já começamos, de forma inconsciente, a batucar com os dedos e mexer o pé marcando o compasso. Esse comportamento tão comum dos brasileiros reflete um instinto natural de dançar.

Humanos possuem uma habilidade inata para a dança. Desde a infância, antes mesmo de já termos uma coordenação motora refinada, aprendemos a mexer o corpo ao som de música. A dança é uma característica humana universal, independe de cultura e é, em geral, associada a um ritual. Exceções existem em sociedades que proíbem a dança por causa de sua “poderosa” influência.

Superficialmente, a dança pode ser vista como uma extensão da nossa afinidade musical que, por si só, representa uma questão evolutiva interessante: por que temos um cérebro que sabe apreciar música de uma forma tão refinada se isso não confere nenhuma vantagem óbvia para nossa sobrevivência?

Na natureza encontramos animais, principalmente canários, que se utilizam da música como forma de aproximação sexual, aumentando as chances de reprodução. No entanto, a capacidade de associar dança à música parece ser unicamente humana. Mais ainda, somos a única espécie que faz disso uma atividade social prazerosa, em grupo ou em pares. Dessa forma, a dança é uma forma de expressão humana que provavelmente evoluiu junto com a música, como uma maneira de criar ritmo.

E quem já se arriscou no salão sabe que mover o corpo pelo espaço de forma precisa, rítmica e expressiva e, ao mesmo tempo, lidar com variáveis como a gravidade e o balanço, não é uma tarefa banal. Pelo contrário, dançar é extremamente difícil. Mesmo assim, a maioria de nós consegue dar uns passinhos, dois pra lá, dois pra cá, sem pagar muito mico. A dança está definitivamente entre nossas capacidades naturais.

Curiosamente, a capacidade de dançar tem sido negligenciada pelos neurocientistas. Mas pesquisadores têm aplicado o estudo de imagens derivadas de PET (do inglês, tomografia por emissão de pósitrons), para estudar o comportamento do cérebro de dançarinos amadores e profissionais (Calvo-Merino e colegas, “Cerebral Cortex”, 2005). A idéia era entender como dançarinos conseguem navegar pelo espaço, controlar e coordenar as passadas e aprender novos e complexos movimentos. Os dançarinos ficam deitados, com a cabeça imobilizada no scanner, mas capazes de mover as pernas e os pés sobre um plano inclinado. Também podiam ver videoclipes de pessoas dançando sem mover as pernas.

As análises foram feitas de forma a subtrair as regiões meramente motoras (os participantes eram testados com e sem música, e apenas as áreas diferentes nas duas situações foram consideradas). O que restou foi justamente as regiões do cérebro responsáveis pela percepção espacial e orientação. A partir dai, os pesquisadores começaram a usar uma série de variáveis para entender o cérebro dos dançarinos, incluindo diversos tipos de dança, como o balé clássico, o tango e a capoeira.

Através dessas análises, cientistas estão conseguindo identificar as regiões neurais envolvidas com a atividade de dançar. Aparentemente, os circuitos ativos começam no interior do cérebro e atingem as camadas mais superficiais do córtex. O interessante é que essa análise revelou que o hemisfério direito (mais precisamente na região anatomicamente oposta à região de Broca, classicamente associada com a comunicação verbal e, mais recentemente, com a representação espacial das mãos) é amplamente ativado durante uma dança que requer interpretação. Essa ativação sugere uma forma de linguagem, ou pelo menos uma forma sutil de comunicação. Talvez uma maneira de comunicação anterior à linguagem verbal.

Esse é o primeiro experimento que demonstra que a região oposta à da Broca pode ser ativada apenas com o movimento das pernas. E essa área parece estar correlacionada com a capacidade de imitação, uma característica importante na disseminação da cultura e coesão social. Esses dados ainda são preliminares e precisam ser comprovados por outras técnicas até convencer a sociedade científica. Em contrapartida, sociedades de pessoas com deficiência auditiva já haviam apontado para esse fato décadas atrás. Com toda certeza, uma das formas mais diretas de comunicação entre humanos é o gesto; resta saber se esse foi o começo e/ou a razão da dança.



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