Humanos quadrúpedes

sex, 20/06/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

alyssonquad.jpgA foto ao lado mostra uma das quatro famílias consangüíneas da Turquia que ficaram mundialmente conhecidas porque a maioria de seus integrantes é quadrúpede. Esse estado é também conhecido como síndrome de Unertan. Alguns ainda conseguem andar só usando as pernas, eretos, mas perdem o equilíbrio freqüentemente. A maioria apresenta problemas mentais sérios e deficiências na linguagem. Existem duas outras famílias no mundo com características semelhantes, uma no Iraque e outra no Brasil, em Goiás.

A postura ereta e o caminhar sobre duas pernas dos humanos é um método de locomoção único entre os primatas vivos. Estudo de fósseis de hominídeos vem contribuindo para a compreensão de como adquirimos essa importante característica durante a evolução. No entanto, temos pouca informação sobre os mecanismos moleculares responsáveis pelo desenvolvimento da postura e caminhar ereto. Análises da atividade cerebral em humanos caminhando de forma voluntária sugerem que diversas regiões do cérebro estão envolvidas na sincronia dessa atividade.

A forma como os elementos dessas famílias se locomovem é bem curiosa, diferentemente de engatinhar, essas famílias movimentam-se com as pernas entendidas e apóiam-se sobre os pulsos, poupando a ponta dos dedos. Esse método é distinto do de nossos ancestrais evolutivos mais próximos, chimpanzés e gorilas, que se utilizam das juntas dos dedos como apoio. Assim, as mulheres afetadas podem se dedicar a algumas atividades manuais e até artísticas.

As razões desse comportamento eram até então desconhecidas, mas em março deste ano, pesquisadores reportaram que a causa pode ser uma simples mutação genética (Ozecelic e colegas PNAS 2008). A descoberta tem causado polêmica pois permite diversas interpretações sobre uma das facetas mais marcantes da evolução humana: o bipedalismo.

Uma dessas interpretações sugere que a mutação levou a um estado de evolução reversa. Essa idéia sugere que esse gene foi essencial para o surgimento do bipedalismo. Mas muitos não gostaram dessa proposta, pois acreditam que o gene está envolvido com equilíbrio em geral, afetando o cérebro de várias maneiras, e que essas famílias optaram por andar de quatro apenas porque não tiveram um acompanhamento médico apropriado.

O gene mutado é conhecido como VLDLR e codifica para uma proteína envolvida no desenvolvimento cerebral. Essa proteína auxilia na migração dos neurônios durante a formação de diversas estruturas cerebrais. Os autores do trabalho não acreditam na evolução reversa, mas acham que o gene estaria sim envolvido no surgimento do bipedalismo humano. O problema é que o gene está ativado em diversas regiões do cérebro e não somente no cerebelo, região importante para o controle motor e equilíbrio. Dessa forma, o efeito poderia ser indireto.

O contra-argumento aqui é que existem diversas síndromes que afetam o equilíbrio e o controle motor, mas nenhuma resulta em um comportamento tipicamente quadrúpede. De qualquer forma, a história parece ser mais complexa, pois alguns membros da família conseguem andar de forma ereta, mas cambaleando, mesmo com a mutação presente no genoma. Além disso, em outras famílias quadrúpedes esse gene está intacto, sugerindo que outros genes também contribuíram para o bipedalismo humano.

Ao meu ver, parece precoce afirmar se o VLDLR participou ou não dessa característica humana. Acho importante o grupo tentar correlacionar a evolução do gene com a evolução dos hominídeos ou dos primatas, isto é, procurar saber como esse gene se comporta em macacos e em animais tipicamente quadrúpedes. Caso encontrem uma correlação positiva, esse resultado trará mais força à idéia de que o gene foi realmente necessário. O mesmo raciocínio é válido para genes que interajam com o VLDLR. Infelizmente, esse tipo de análise leva tempo, mas acho essencial para entendermos um pouquinho melhor as causas da postura ereta, mesmo que a maioria de nós passe grande parte do tempo sentados em frente ao computador.

Expresso para o Nirvana

sex, 06/06/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Jill Bolte Taylor é uma neurocientista da universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Jill tem um irmão com esquizofrenia e essa foi a razão pela qual ela decidiu dedicar sua carreira ao estudo de doenças mentais. Como cientista, queria entender como o cérebro consegue captar sinais do ambiente, transformá-los em sonhos e depois em realidade. O irmão de Jill não consegue captar esses sinais da realidade e por isso vive isolado. A pesquisa dela era justamente comparar as diferenças biológicas entre os cérebros normais e os daqueles com doenças neurológicas.

Numa manhã de dezembro de 1996, Jill passou por uma experiência única, que muitos neurocientistas só chegam a conhecer de forma teórica: teve um derrame que a levou direto ao nirvana. Uma veia explodiu no hemisfério esquerdo e durante quatro horas ela acompanhou seu cérebro deteriorar e perder a capacidade de processar qualquer tipo de informação. Não podia falar, andar ou lembrar de qualquer episódio de sua vida. Estava ausente.

O cérebro humano possui dois hemisférios, conectados por um feixe de 300 milhões de fibras nervosas conhecido como corpus caloso. Numa analogia computacional, podemos dizer que o hemisfério direito funciona como um processador paralelo enquanto que o esquerdo funciona como um processador serial. Justamente porque eles processam informação de formas diferentes, cada hemisfério é responsável por tarefas distintas.

O hemisfério direito é responsável pelo visual e intuitivo. Informações que chegam pelos sistemas sensoriais são conectadas e formam uma imagem de um determinado momento. Dessa forma, o hemisfério direito é o responsável pela sua inserção no ambiente. Para essa parte do cérebro, não existe uma definição do “eu”, tudo pertence a um mesmo momento, somos todos a mesma coisa pois estamos juntos naquele mesmo instante.

O hemisfério esquerdo é bem diferente, processa a informação de forma linear e metódica. Considera as ações sempre no passado e no futuro. É o lado do cérebro responsável pela triagem das informações adquiridas no momento presente, classificar cada detalhe, associando com lembranças do passado e projetando as diversas possibilidades no futuro. Ao contrário do hemisfério direito, o esquerdo usa uma linguagem verbal e não visual. Esse hemisfério exclui o indivíduo do resto, pois é o responsável pelas conseqüências das ações do “eu”.

E foi justamente o hemisfério esquerdo o afetado no cérebro de Jill. Depois de sentir uma sensação dolorosa atrás do olho esquerdo, ela começou a perceber que os músculos estavam ficando rígidos. Com esforço, conseguiu chegar no banheiro onde perdeu o equilíbrio e se apoiou na parede. Foi ai que teve uma das mais estranhas sensações, pois não conseguia mais focar nos limites do próprio corpo, como se os átomos do seu braço estivessem se misturando com os átomos da parede. A percepção física do limite de seu braço não era mais o encontro da pele com o ar.

Jill descreve esse momento como se fosse a realização de que tudo está conectado numa mesma massa energética. Seu cérebro pôde apreciar o que estava acontecendo mas sem compreender nada, pois a experiência fugia daquelas do seu dia-a-dia. Momentos mais tarde, ela compararia esse sentimento com o “nirvana”, como se o derrame tivesse sido dado a ela a oportunidade de experienciar algo mágico. Naquele momento, ela perdia toda a bagagem sensorial que carregava desde o nascimento e se sentia livre. Estava viva apenas no presente e em total equilíbrio com o ambiente ao seu redor. Esse sentimento trouxe a ela um respeito maior pelas coisas que a cercam.

Quando você faz parte de um grupo, você respeita isso, para ela o grupo naquele momento era o universo. Imagine se todos tivéssemos essa oportunidade?

Após alguns minutos nesse estado, o hemisfério esquerdo começou a funcionar e chamar a atenção da consciência de Jill: alguma coisa estava errada e ela tinha que agir. Foi aí que perdeu o movimento de um braço e só então percebeu que estava tendo um derrame. Conseguiu então chamar por ajuda e sobreviveu. Uma cirurgia que retirou um coágulo do tamanho de uma bola de golf de seu cérebro seguido de oito anos foram necessários para que se recuperasse.

Esse sentimento de nirvana não faz necessariamente parte da experiência das pessoas que sofrem derrame. Algumas observam alteração no humor quando o lado esquerdo é afetado. Jill foi salva porque o derrame não danificou completamente o hemisfério esquerdo, fazendo com que recuperasse a consciência serial e buscasse por ajuda.

O hemisfério esquerdo é responsável pelo ego, contexto, tempo e lógica; enquanto que o direito se dedica a empatia e criatividade. Na maioria das pessoas, o esquerdo é dominante e a sociedade atual é fruto dessa dominância. Mas para Jill não precisa ser sempre assim, a experiência do nirvana estaria contida dentro do cérebro de cada um, seria uma forma de estabelecer conexões com os outros. Para ela, isso não é um milagre, mas ciência. Desde o episódio, a pesquisadora tem sido contactada por uma série de grupos religiosos que buscam nela uma confirmação espiritual. Mas para ela, religião não passa de uma “história que o hemisfério esquerdo conta para o direito”.

Ou seja, para Jill não precisamos de religião para atingir esse estado. Então como fazemos sem ter que sofrer um derrame? Essa é a grande questão dessa história toda e não sabemos a resposta. A pesquisadora está convencida que exercitar o lado direito com atividades visuais como desenho e pintura, diminui a dominância do lado esquerdo. Interessante notar que diversas linhas de meditação também buscam a imersão no presente através de técnicas de respiração.

Chamo a atenção para a prática de Yoga, diversas evidências descrevem esses exercícios milenares como uma efetiva forma de redução dos níveis de estresse. Mas concordo que isso está longe de propiciar o mesmo sentimento que Jill teve.

Como esse tipo de sensação não dá pra estudarmos em modelos animais, temos que coletar diversas ocorrências em humanos para entender quais as conexões nervosas seriam responsáveis por essa experiência. Enquanto isso não acontece, não custa acrescentar uma nova atividade para quebrar a rotina. Pode não te levar ao nirvana, mas com certeza alguma coisa nova você vai aprender.



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