Versatilidade genética
Existem diversas maneiras de interpretar o conteúdo genético de uma célula. A mais utilizada é a comparação direta da seqüência do DNA genômico entre duas ou mais espécies. Soletrando essas informações, descobriu-se que as células humanas são bem parecidas com as dos primatas não-humanos, algo em torno de 98% a 99% de similaridade. Mas, se o DNA é tão parecido, por que somos tão diferentes dos macacos? Talvez porque as diferenças não estejam somente no DNA…
A molécula de RNA corresponde à forma mais direta de interpretação do DNA – moléculas de RNA são cópias complementares de trechos do DNA que possuem diversas funções na célula. Podem codificar proteínas, auxiliar em diversas reações químicas ou mesmo regular a intensidade de leitura de outros trechos do DNA. O curioso é que o RNA pode ser lido de diversas maneiras diferentes pela célula, ampliando o repertório genético. Para explicar melhor isso, vou aplicar a manjada comparação entre código genético e literatura.
Imagine que as letras abaixo representem uma molécula de RNA. Mensagens “escondidas” no RNA são utilizada pela célula para interpretar o genoma.
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Difícil fazer sentido nisso… talvez porque existam muitas letras que, aparentemente, não formam palavras, dificultando a leitura. Felizmente, todas as células dispõem de um mecanismo de edição de moléculas de RNA (chamado de “splicing”) que elimina o conteúdo extra do RNA, deixando apenas a informação que interessa, assim:
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No caso: Maria ama Roberto. O mecanismo de “splicing” nas células já é conhecido faz um certo tempo e o impacto da descoberta foi tão grande que até rendeu prêmio Nobel. O que não sabíamos é que isso é mais comum do que se imagina — cerca de dois terços dos genes humanos apresentam alguma forma de “splicing”.
Algumas vezes, esse mecanismo de edição falha e a informação sai truncada: Maria Roberto – claramente falta um verbo entre os dois nomes. Quando o mecanismo de “splicing” falha, em geral, causa algum problema no sistema nervoso, indicando que, principalmente no cérebro, esse mecanismo deva ser importante. Exemplos dessas doenças são a síndrome do X-frágil e algumas formas de Parkinson.
Deixemos isso de lado agora e vamos voltar para a interpretação do RNA. Um aspecto interessante desse mecanismo é que, dependendo do tipo celular, a edição pode ser diferente. Veja abaixo, a mesma molécula de RNA carregando uma informação diferente da do primeiro exemplo.
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Agora, Maria ama Laura (e não Roberto)! Uau, para as células que optarem por esse tipo de interpretação, as conseqüências serão bem diferentes. E ainda podem existir outras interpretações, mesmo duas ou mais informações numa mesma molécula de RNA. Segue abaixo.
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Maria ama Laura, que ama Roberto. Duas informações na mesma leitura. Um exemplo extremo dessa versatilidade do RNA vem do gene DSCAM da mosca-das-frutas (Drosophila), cujo RNA pode ser editado para gerar mais de 38 mil tipos de moléculas distintas, o dobro do número de genes estimado para esse organismo! Para que tanto?
De volta ao cérebro. Alguns trabalhos demonstraram que, ao contrário das células da pele, neurônios individuais podem apresentar formas diversas de edição do RNA, principalmente em genes envolvidos com a transmissão dos impulsos elétricos. Mais ainda, as diferentes formas de “splicing” do RNA podem ser induzidas pelo estímulo externo, vindos do ambiente. Essas evidências sugerem que o mecanismo de “splicing” atua no cérebro para auxiliar na complexidade das informações que recebemos dos diversos órgãos sensoriais, permitindo uma melhor adaptação ao ambiente em constante transformação. Em outras palavras, para um neurônio às vezes compensa amar Laura, outras compensa amar Roberto e em determinadas vezes compensa amar ambos.
Ao comparar as diferenças de “splicing” entre diversas regiões dos cérebros de humanos e chimpanzés, um grupo multidisciplinar de pesquisadores dos EUA, do Canadá e da Espanha encontrou curiosas diferenças (Calarco e coleguas, Genes & Dev. 2007). Aparentemente, o mecanismo de “splicing” evoluiu rapidamente dos macacos para os humanos, afetando uma série de genes envolvidos com morte celular, sinalização molecular, envelhecimento e estresse oxidativo.
Essa rápida evolução pode ter permitido que nossos neurônios sobrevivessem às altas taxas metabólicas e lesões oxidativas no material genético, decorrentes da velocidade e quantidade de informação processada pelo cérebro humano. Um indício de que isso realmente aconteceu é o fato de que mutações num dos genes encontrados pelo grupo de pesquisadores, o GSTO2, já foram relacionadas a diversas síndromes humanas, incluindo o envelhecimento precoce, Alzheimer e câncer.
O estudo dos mecanismos pelos quais o sistema nervoso gera sua enorme diversidade celular e conseqüente complexidade funcional tem trazido importantes informações sobre a evolução humana. Em breve, conseguiremos relacionar as descobertas moleculares com a susceptibilidade a doenças. Esses dados irão gerar novas oportunidades para aplicações terapêuticas e para compreensão de aspectos cognitivos exclusivos de humanos, como a interpretação de um livro ou de uma poesia, por exemplo.
14 dezembro, 2007 as 5:51 pm
sobre DNA
14 dezembro, 2007 as 6:44 pm
Ola Dr Muotri,
Obrigada por mais um artigo interessante!
Abracos
14 dezembro, 2007 as 7:18 pm
Observe a frase :”Em breve, conseguiremos relacionar as descobertas moleculares com a susceptibilidade a doenças”. Já se tocaram de que a pesquisa genética nunca leva a resultado algum, mas apenas a promessas futuras….
15 dezembro, 2007 as 4:52 pm
Rapaz, ensinando splicing pro povo…e dessa forma…como nao pensei nisso antes??? E o link com o sistema nervoso e evolucao, fascinante.
Muito interessante seu approach de divulgador cientifico. Cada vez me surpreendo mais com seus textos.
um abraco,
16 dezembro, 2007 as 11:18 pm
Parabens, que aula maravilhosa !Quantos conhecimentos em poucas palavras.Somos agradecidos. M.Helena
17 dezembro, 2007 as 12:03 pm
Nossa. como é dificil interpretar o RNA. mas eu vi os amores frustados, desde de o primeiro exemplo. Tudo que seja util um dia, para ajudar, a entender e aniquilar doenças. e bem vindo. Bom texto. entendi o recado.
18 dezembro, 2007 as 1:47 pm
Ola!
Coloquei meu comentario nessa pagina no dia 14 de Dezembro e ateh agora nao apareceu…
20 dezembro, 2007 as 3:54 pm
Caro Joao,
Você está bem equivocado, ou vai me dizer que nunca tomou antibiótico, anestesia ou uma aspirina sequer?
Abraços!
31 janeiro, 2008 as 2:39 pm
Prezado Dr. Alysson,
Gostaria de expressar minha admiração pelo seu trabalho. Sua explicação sobre splicing alternativo é fantástica. Parabéns.
4 abril, 2008 as 6:38 pm
Caro Dr. Alysson,
é exagero meu ou o trecho “Mais ainda, as diferentes formas de “splicing” do RNA podem ser induzidas pelo estímulo externo, vindos do ambiente.” evidencia que o execrado (sem razão) Lamarck antecipou mais coisas que o nosso conhecimento atual é capaz de supor?
Agradeço pelo artigos e um grande abraço.
Hosson1
15 setembro, 2008 as 8:37 pm
ALYSSON
TENHO 37 ANOS,SOU PORTADORA DE ESCLEROSE MULTIPLA E MUITO ME INTERESSA ARTIGOS E INFORMAÇOES SOBRE CÉLULA TRONCO,SE TIVER MATÉRIAS E ESTUDO SOBRE ESCLEROSE MULTIPLA ME MANDE POR E MAIL OU PUBLIQUE,VC GANHOU UMA FÃ