O poder de influenciar o vizinho

sex, 28/12/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Sempre achei que ações individuais poderiam influenciar as pessoas ao redor, nem que seja através da projeção do seu próprio exemplo ou de seu estado de espírito. Dados recentes, usando técnicas incríveis, indicam que, numa outra esfera — a de neurônios individuais — isso realmente acontece.

O cérebro dos mamíferos sofre com um constante problema de recursos: apesar dos bilhões de neurônios no cérebro, estes não são suficiente para que cada um seja responsável por processos individuais de percepção, comportamento e memória. Para aumentar a capacidade física de estocar informação, acreditava-se que o cérebro se utilizava da sobreposição de padrões de atividade entre milhares de células que se interconectam. Explicação bem razoável.

Mas três trabalhos publicados na semana passada na Nature sugerem que esse tipo de pensamento pode subestimar a capacidade de cada neurônio no cérebro. Os novos resultados contradizem diversas correntes atuais que sugerem que milhares de neurônios são necessários para gerar uma resposta a um determinado comportamento sensorial, a uma tomada de decisões ou mesmo ao aprendizado.

Num dos trabalhos, o estímulo de um único neurônio no cérebro foi capaz de influenciar o comportamento de ratos (Houweling e colegas, Nature, 2007). Esses dados dão apoio à idéia de que apenas alguns neurônios da rede neuronal são necessários para gerar uma resposta comportamental. O desafio técnico foi grandioso: como estimular eletricamente uma única célula no meio de milhares na mesma região no córtex, sem interferir com as vizinhas, e ainda manter o animal acordado e em movimento para realizar os testes comportamentais.

No caso, o comportamento se refere a um simples condicionamento sensorial. Durante a fase de treinamento, o animal ganha uma recompensa cada vez que o neurônio é estimulado. Após esse período, ocorre o estímulo e antes mesmo de receber a recompensa, o animal já começa a salivar. Numa segunda fase, o animal só será recompensado se salivar. Ratos aprendem isso em poucos dias, de forma natural. Uma vez que eles aprenderam o teste, os experimentos começaram. Ao estimular um único neurônio, conseguiu-se induzir a salivação nos animais.

As conseqüências desse trabalho prometem chacoalhar as bases da neurociência. Os dados sugerem que o cérebro é uma máquina ultra-otimizada e que conseguimos, em situações específicas, responder a estímulos de neurônios individuais. Também sugere que o cérebro funciona sempre no máximo de sua capacidade, ou seja, para que novas informações ou memórias sejam armazenadas é preciso apagar outras.

Num outro trabalho, o estímulo foi óptico ao invés de elétrico, usando animais geneticamente modificados para que o estímulo só afetasse neurônios relacionados com o aprendizado, ganhando em especificidade da resposta (Huber e colegas, Nature, 2007). Nessa estratégia, esses neurônios produzem uma proteína de algas, que é facilmente estimulada pela luz azul e que induz a troca de íons (átomos com carga negativa ou positiva) pela membrana celular, iniciando um impulso elétrico.

Para estimular os neurônios, os ratos tiveram parte do osso do crânio substituído por um tampão de vidro, de modo que as emissões de luz azul puderam chegar aos neurônios selecionados que tinham a proteína de alga. Chegou-se à mesma conclusão: não precisamos de milhares de neurônios para executar certas tarefas, bastam alguns, ou mesmo um único neurônio.

Além disso, pode-se estudar em detalhes os contatos físicos que os neurônios estimulados faziam com seus vizinhos (Svoboda e colegas, Nature 2007). Neurônios são estruturalmente parecidos com árvores, cujos galhos vão se bifurcando e afinando conforme se afastam do tronco principal. Quando dois neurônios se comunicam, projetam pequenas protuberâncias espinhosas ou micro-verrugas nos diversos galhos que tendem a se encontrar. O espaço entre essas protuberâncias espinhosas é chamado de sinapse. Na ponta dessas verrugas ocorrem explosões químicas, liberando neurotransmissores — mensageiros químicos típicos dessas células. Quando essa explosão é forte o suficiente, atrai a protuberância do outro neurônio para si, formando conexões entre dois neurônios.

O grupo de Svoboda conseguiu estimular apenas uma dessas microprotuberâncias e descobriu que, quanto maior o estímulo, mais propensas a outros estímulos ficavam as vilosidades vizinhas, como que preparadas para absorver qualquer excesso de informação. A idéia que surgiu dessa observação é que o efeito combinatório desse fenômeno amplifica a capacidade de cada neurônio individual. Até então, esse processo nunca havia sido flagrado no cérebro.

A visão tradicional na neurociência previa que cada sinapse funcionaria de maneira independente e que cada conexão entre duas vilosidades seria responsável por armazenar memórias individualizadas. Os autores mostraram que vilosidades individuais podem estimular as suas vizinhas, indicando que a informação deva ser estocada em grupos, onde memórias relacionadas estejam reunidas em determinadas regiões no cérebro. Esse excitamento das vilosidades vizinhas pode durar até 10 minutos. Faz sentido. Precisamos de um tempo para nos ambientar, reconhecer as faces dos parentes ou a mobília nova quando entramos na festa de Natal daquela tia que não revíamos há muito tempo.

Um dos modelos propostos pelo grupo sugere que essa seria uma forma de agrupar os neurônios envolvidos na mesma rede de informação, responsáveis por um mesmo comportamento ou memórias relacionadas. Essas redes neuronais variam com a idade e a atividade cerebral, tornando-se mais fortes ou mais fracas. Essa variação de padrão das conexões seria uma forma inteligente e dinâmica de armazenamento de memória.

As novas observações contradizem a teoria das populações flutuantes, onde a resposta a um estímulo viria do conjunto de milhares de neurônios, como um coral onde todos cantam juntos a mesma melodia. Talvez isso realmente aconteça para respostas motoras, como caminhar, por exemplo. Afinal, é assim que diversos grupos conseguiram mover braços mecânicos usando informações captadas de populações neuronais. No caso de ações cognitivas, parece que o coral precisa reduzir o volume para que o solista apareça mais.

Acho que as duas idéias não são mutuamente excludentes e podem acontecer concomitantemente no cérebro. Mas gostaria mesmo de saber o que acontece quando um coral não consegue deixar o solista cantar. Pode ser que isso esteja relacionado com síndromes neurológicas, onde o processo de percepção é falho, como no caso da esquizofrenia.

Versatilidade genética

sex, 14/12/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Existem diversas maneiras de interpretar o conteúdo genético de uma célula. A mais utilizada é a comparação direta da seqüência do DNA genômico entre duas ou mais espécies. Soletrando essas informações, descobriu-se que as células humanas são bem parecidas com as dos primatas não-humanos, algo em torno de 98% a 99% de similaridade. Mas, se o DNA é tão parecido, por que somos tão diferentes dos macacos? Talvez porque as diferenças não estejam somente no DNA…

A molécula de RNA corresponde à forma mais direta de interpretação do DNA – moléculas de RNA são cópias complementares de trechos do DNA que possuem diversas funções na célula. Podem codificar proteínas, auxiliar em diversas reações químicas ou mesmo regular a intensidade de leitura de outros trechos do DNA. O curioso é que o RNA pode ser lido de diversas maneiras diferentes pela célula, ampliando o repertório genético. Para explicar melhor isso, vou aplicar a manjada comparação entre código genético e literatura.

Imagine que as letras abaixo representem uma molécula de RNA. Mensagens “escondidas” no RNA são utilizada pela célula para interpretar o genoma.

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Difícil fazer sentido nisso… talvez porque existam muitas letras que, aparentemente, não formam palavras, dificultando a leitura. Felizmente, todas as células dispõem de um mecanismo de edição de moléculas de RNA (chamado de “splicing”) que elimina o conteúdo extra do RNA, deixando apenas a informação que interessa, assim:

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No caso: Maria ama Roberto. O mecanismo de “splicing” nas células já é conhecido faz um certo tempo e o impacto da descoberta foi tão grande que até rendeu prêmio Nobel. O que não sabíamos é que isso é mais comum do que se imagina — cerca de dois terços dos genes humanos apresentam alguma forma de “splicing”.

Algumas vezes, esse mecanismo de edição falha e a informação sai truncada: Maria Roberto – claramente falta um verbo entre os dois nomes. Quando o mecanismo de “splicing” falha, em geral, causa algum problema no sistema nervoso, indicando que, principalmente no cérebro, esse mecanismo deva ser importante. Exemplos dessas doenças são a síndrome do X-frágil e algumas formas de Parkinson.

Deixemos isso de lado agora e vamos voltar para a interpretação do RNA. Um aspecto interessante desse mecanismo é que, dependendo do tipo celular, a edição pode ser diferente. Veja abaixo, a mesma molécula de RNA carregando uma informação diferente da do primeiro exemplo.

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Agora, Maria ama Laura (e não Roberto)! Uau, para as células que optarem por esse tipo de interpretação, as conseqüências serão bem diferentes. E ainda podem existir outras interpretações, mesmo duas ou mais informações numa mesma molécula de RNA. Segue abaixo.

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Maria ama Laura, que ama Roberto. Duas informações na mesma leitura. Um exemplo extremo dessa versatilidade do RNA vem do gene DSCAM da mosca-das-frutas (Drosophila), cujo RNA pode ser editado para gerar mais de 38 mil tipos de moléculas distintas, o dobro do número de genes estimado para esse organismo! Para que tanto?

De volta ao cérebro. Alguns trabalhos demonstraram que, ao contrário das células da pele, neurônios individuais podem apresentar formas diversas de edição do RNA, principalmente em genes envolvidos com a transmissão dos impulsos elétricos. Mais ainda, as diferentes formas de “splicing” do RNA podem ser induzidas pelo estímulo externo, vindos do ambiente. Essas evidências sugerem que o mecanismo de “splicing” atua no cérebro para auxiliar na complexidade das informações que recebemos dos diversos órgãos sensoriais, permitindo uma melhor adaptação ao ambiente em constante transformação. Em outras palavras, para um neurônio às vezes compensa amar Laura, outras compensa amar Roberto e em determinadas vezes compensa amar ambos.

Ao comparar as diferenças de “splicing” entre diversas regiões dos cérebros de humanos e chimpanzés, um grupo multidisciplinar de pesquisadores dos EUA, do Canadá e da Espanha encontrou curiosas diferenças (Calarco e coleguas, Genes & Dev. 2007). Aparentemente, o mecanismo de “splicing” evoluiu rapidamente dos macacos para os humanos, afetando uma série de genes envolvidos com morte celular, sinalização molecular, envelhecimento e estresse oxidativo.

Essa rápida evolução pode ter permitido que nossos neurônios sobrevivessem às altas taxas metabólicas e lesões oxidativas no material genético, decorrentes da velocidade e quantidade de informação processada pelo cérebro humano. Um indício de que isso realmente aconteceu é o fato de que mutações num dos genes encontrados pelo grupo de pesquisadores, o GSTO2, já foram relacionadas a diversas síndromes humanas, incluindo o envelhecimento precoce, Alzheimer e câncer.

O estudo dos mecanismos pelos quais o sistema nervoso gera sua enorme diversidade celular e conseqüente complexidade funcional tem trazido importantes informações sobre a evolução humana. Em breve, conseguiremos relacionar as descobertas moleculares com a susceptibilidade a doenças. Esses dados irão gerar novas oportunidades para aplicações terapêuticas e para compreensão de aspectos cognitivos exclusivos de humanos, como a interpretação de um livro ou de uma poesia, por exemplo.



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