Vive la difference!
Há mais de sete anos, concluiu-se um dos projetos científicos mais audaciosos da história e a biologia molecular ganhava uma poderosa ferramenta: a seqüência do genoma humano. Dois grupos foram os responsáveis pelo feito -a empresa de J. Craig Venter, a Celera Genomics, e o consórcio internacional conhecido como Projeto Genoma Humano. O impacto do projeto já trouxe diversos insights sobre a estrutura do nosso genoma, com conseqüências diretas para o desenvolvimento de diversos medicamentos, só para citar algo aplicado. Na época, também foi dito que o genoma seria de todos nós, um reflexo da identidade humana.
Porém, o que o leitor talvez não saiba é que, para economizar tempo e dinheiro, os dois grupos combinaram amostras de diversas pessoas (em sua maioria) anônimas e criaram um “genoma referência”, conhecido no meio acadêmico como NCBI 36. Esse genoma só continha metade da informação genética celular, ou seja, apenas um cromossomo de cada par foi seqüenciado. Vale lembrar que, com exceção das células germinativas (os óvulos e os espermatozóides), o genoma humano é constituído de 23 pares de cromossomos, nos quais um cromossomo veio do pai e outro da mãe – também conhecido como genoma diplóide.
Efetivamente, esse genoma humano contém apenas a seqüência genética de um dos progenitores. Além disso, quando deparados com variações no seqüenciamento (como a falta de um trecho numa das amostras ou uma eventual duplicação em outra amostra), os dois grupos optaram pela média, excluindo a variação. Os pesquisadores acharam que a eliminação desses “detalhes”, talvez gerados por alguma variação experimental, não sacrificaria muito o resultado final. Como é doce a ilusão biológica.
Recentemente, o primeiro genoma humano individual foi publicado, contando com as seqüências dos dois cromossomos, batizado de “HuRef”. O indivíduo “seqüenciado” foi o próprio Craig Venter, que liderou esse megaprojeto com mais 30 colaboradores. De acordo com o trabalho, o NCBI 36 subestima a variação individual em até 5 vezes. Quando o genoma materno de Venter foi comparado com o paterno, achou-se cerca de 4 milhões de variações genéticas, indicando que a diferença entre dois indivíduos é cinco vezes maior do que o anteriormente estimado.
A publicação do primeiro genoma diplóide, como é chamado, já estimula acaloradas discussões sobre a privacidade genética. Com o surgimento de novas tecnologias de seqüenciamento, mais genomas individuais vão estar disponíveis. Ao contrário de Venter que liberou geral suas seqüências nuas e cruas, Jim Watson (co-descobridor da estrutura do DNA e que teve seu genoma seqüenciado recentemente) preferiu censurar informações de genes que predispõem ao Alzheimer, doença presente no histórico familiar do cientista. Dê uma espiada no genoma do Venter clicando aqui.
Venter levou quase 5 anos para publicar esse trabalho. Não foi à toa. Além de usar uma tecnologia mais avançada e de aumentar o número de leituras experimentais do DNA, o grupo teve de redesenhar os algoritmos usados para o alinhamento dos fragmentos do genoma, permitindo a identificação da origem (materna ou paterna) dos cromossomos. Essa estratégia, longa e trabalhosa, permitiu concluir de forma confiante que as variações observadas eram de fato reais.
Parte das variações encontradas são duplicações gênicas, que levam a diferenças no número de cópias de certos genes em cada indivíduo. Já se sabia que essas variações estavam implicadas em diversos tipos de doenças, como autismo, Alzheimer, distrofia muscular, cegueira ou mesmo deformações anatômicas. Entretanto, para a maioria dos genes, ainda não sabemos quais são as conseqüências de uma diferente dosagem gênica. O fato é que, sabendo-se disso, pode-se receitar doses diferentes de medicamentos para cada indivíduo, numa futura medicina personalizada.
Outra fonte de variação são as alterações de bases únicas do DNA (abreviadas em inglês como SNPs – pronuncia-se “snips”). Genes são formados por fragmentos de DNA que, por sua vez, são formados por uma seqüência de 4 bases: A, T, C e G. Por exemplo, ao seqüenciar o trecho …AATTCC… você pode encontrar a versão …ACTTCC…. Nesse caso, a segunda base aparece como “A” em um indivíduo e como “C” em outro. Dependendo da população humana e da região gênica, essas pequenas variações estão associadas com alto risco de diabetes e outras doenças complexas. Nos EUA, a empresa 23andMe, em parceria com a Google e a Navigenics, estão oferecendo uma análise paga dos SNPs, a partir de seqüências dos potenciais consumidores.
No caso do Venter, é curioso observar que no trabalho encontra-se uma tabela com diversas variações genéticas que estão associadas ao alcoolismo, tabagismo, comportamento anti-social, doenças do coração e Alzheimer. Felizmente, nenhuma dessas doenças é causada por um único gene. O pai de Venter, que morreu aos 54 anos de ataque cardíaco, era fumante. Já sua mãe, com 84 anos, continua jogando golf e velejando com ele. Que genoma prevalece? Na verdade, deve haver uma resposta diferente em cada um de nós.
Considere que a intricada complexidade entre o genoma materno, paterno e o ambiente em que o indivíduo se encontra, seja responsável pelas características físicas e cognitivas de cada pessoa (o que chamamos de fenótipo). A seqüência de mais genomas diplóides permitirá correlacionar as variações genéticas com fenótipos específicos. Por isso mesmo, Venter não só deu o sangue (literalmente, foi daí que extraíram o DNA) pelo trabalho, como também respondeu a uma série de questões sobre sua família, histórico médico, personalidade e características físicas. Quando tivermos milhares de genomas diplóides, com milhares de fenótipos correspondentes, talvez consigamos encontrar o melhor pareamento entre genoma e ambiente. Assim, uma pessoa de uma determinada região poderia ter menos chance de desenvolver câncer se fosse colocada em uma outra cultura desde cedo. Por que não?
Mas a surpresa mesmo foi o incrível número de inserções e deleções (“apagamentos” de DNA) encontradas quando comparamos os cromossomos maternos e paternos. Dados recentes apresentados no congresso da Sociedade Americana de Genética Humana, em San Diego na semana passada, revelaram que muitas dessas variações são causadas pela atividade de entidades retrovirais endógenas – ou seja, um tipo de vírus “fossilizado” no interior do nosso genoma. Esses elementos possuem a habilidade de se locomover pelo DNA, usando um mecanismo de copia-e-cola, igual ao que alguém poderia utilizar para editar este texto em outra página, por exemplo.
Ao fazer isso, os elementos retrovirais embaralham o genoma com inserções e deleções, gerando diversidade genética. Ora, a atividade desses elementos varia de célula para célula, com uma curiosa vivacidade no sistema nervoso. Isso indica que a relação entre genoma e fenótipo é ainda mais complexa, com variações entre as células do mesmo indivíduo e sugerindo que o sistema nervoso seja o tecido com o maior número de variantes genéticas no organismo. Aproveito aqui para registrar uma nova idéia: o Projeto Genoma Cérebro!
E é justamente no sistema nervoso que a diversidade vai contribuir para diferenças na capacidade de memória, criatividade, sensibilidade e outras características cognitivas. O maravilhoso disso tudo é que a plasticidade do sistema nervoso evita que isso seja fixo ou imutável. Pelo contrário, quanto mais informação e desafios ao cérebro, mais afiado ele fica. Estamos sempre em transformação, interagindo com o ambiente para moldar nossa essência.
Dessa forma, a variação humana é ainda maior se considerarmos o aspecto cognitivo. Somos mais diferentes em termos de atividade mental do que em aspectos estruturais, fisiológicos ou anatômicos. Li em algum lugar que a diferença cognitiva entre Einstein e a média da população humana é muito maior que a diferença entre a média humana e a média dos chipanzés. Então por que temos tão poucos gênios se geramos tanta variação? O que nos impede de alcançarmos o nosso potencial mental, como indivíduos e como espécie? Preguiça? Medo? Religião? Falta de livre arbítrio, de tempo?
E para aqueles que achavam que a era genômica tinha se esgotado, digo que as seqüências geradas até agora, e as milhares que estão por vir, vão se transformar em uma preciosa ferramenta para a reconstrução dos agentes moleculares da evolução e do desenvolvimento humano. Salvo nos casos de doenças causadas por mutações em genes únicos, ninguém deve esperar que, apenas lendo a seqüência genética de um único tecido de uma pessoa, conseguirá dizer se ela terá ou não câncer. Mas vamos conseguir definir melhor a contribuição dos genes e do ambiente para o fenótipo de cada um.
2 novembro, 2007 as 12:29 am
Napa… Working out the brain. That’s it.
2 novembro, 2007 as 1:16 am
Ola Alysson,
Muito interessante e informativo esse artigo! Alem de super atual, chama a atencao pra o fato de que se um individuo eh geneticamente tao distinto do outro, nao podemos agrupar humanos em racas, pois isso implicaria semelhanca genetica dentro desse subgrupo. Seguindo essa premissa, soh podemos ser agrupados como uma especie (pois temos semelhanca genetica suficiente para tal) mas nao subdivididos em racas.
Beijao,
Da sua fa numero 1
2 novembro, 2007 as 2:31 pm
muito interessante a materia, pois tras avante uma discussão ja estendida a tempos a sequencia do genoma humano .. ainda destaca doenças como Alzheimer, pra mim que sou estudando e no final do ano vol prestar Biologia a materia foi de um aproveitamento surpreendente !!
valew pela materia! bjs
2 novembro, 2007 as 2:58 pm
Artigo muito bem escrito e de exceptional raciocinio. Esse tipo de texto é um exemplo do que deveria ser ensinado nas escolas e no vestibular. Muito além dos livros-texto e da cabeça de muitos professores.
É divulgação científica crítica!
Parabéns e aguardo o próximo.
2 novembro, 2007 as 6:40 pm
Muito interessante! Bastante complexo! Mas, a reflexão, no meu humilde modo de ver, fica na seguinte frase do texto:
“…Estamos sempre em transformação, interagindo com o ambiente para moldar nossa essência.”
3 novembro, 2007 as 9:52 am
Avante com o Projeto Genoma Cérebro !!Afinal, “Somos mais diferentes em termos de atividade mental do que em aspectos estruturais, fisiológicos ou anatômicos”. Seja Audacioso.
5 novembro, 2007 as 5:25 pm
Dr Alysson,
Gostei do texo, me fez pensar sobre como estamos presos nas nossas proprias definicoes… O cerebro eh capaz de muito mais do que racionalmente achamos que somos capazes!
Abracos
6 novembro, 2007 as 11:35 pm
Dr Alysson,
Aprendi bastante com essa materia.
Obrigada pela sua dedicacao em nos deixar mais informados sobre ciencia!
Abracos,
Maria
9 novembro, 2007 as 1:41 pm
Muito interessante essa parte da Biologia. Comecei o curso agora(agosto – UCG) e acho essa área sensacional, ainda mais na aplicação a oncologia.
9 novembro, 2007 as 9:05 pm
Olá Alisson!
Sou estudante de Biologia e estou começando um trabalho em um Laboratório de Biologia Molecular, especificamente com Transposons.
Esses elementos são os responsáveis por essa grande diversidade no sistema nervoso?
Meus parabéns pela matéria!
13 novembro, 2007 as 6:42 pm
Dr.Alysson,não sou da sua área , mas estou impressionada ao ler seu artigo , como esta a evoluçao da ciencia. Parabens, sei que encontrei o site dos melhores articulistas e que sao de ponta mesmo.Parabens!!Começo a entender ciencia atraves de sua linguagem simples e objetiva.Juliana
17 outubro, 2008 as 8:28 am
Simplesmente brilhante: “A plasticidade do sistema nervoso evita que a capacidade de memória, criatividade, sensibilidade e outras características cognitivas sejam fixas, ou imutáveis. Pelo contrário, quanto mais informações e desafios ao cérebro, mais afiado ele fica. Estamos sempre em transformação, interagindo com o ambiente para moldar nossa essência”. Parabéns!