Gordo Pêra x Gordo Maçã
Vivemos uma epidemia mundial de obesidade, um dos fatores principais relacionado a diversas doenças, como diabete tipo 2, problemas cardiovasculares, Alzheimer e mesmo câncer. A maioria dessas doenças acontece em parte pela resistência à insulina causada pela obesidade e também pelo fato de que gorduras estocadas no corpo funcionam como um órgão endócrino, secretando hormônios e proteínas que afetam a função de diversas outras células no corpo.
Mas o que realmente causa a obesidade? A obesidade começa a se desenvolver quando a quantidade de energia consumida é maior do que a utilizada, gerando um desbalanço calórico. Mas isso não é tudo. A forma como a gordura é distribuída no corpo também contribui para a obesidade, aumentando o risco metabólico. Acúmulo de gordura na região intra-abdominal ou visceral, gerando o obeso em formato de maçã, está diretamente relacionado a doenças do metabolismo. Em comparação, em obesos com formato de pêra, com gorduras acumuladas de forma subcutânea, principalmente nas coxas e quadris, o risco de doenças metabólicas é menor. Apesar de os cientistas já saberem disso faz um tempo, o mecanismo da distribuição de gordura no corpo ainda é um mistério.
Praticamente todas as espécies animais investigadas até hoje, de pequenos vermes até humanos, encontraram uma forma de estocar energia em forma de gordura, para um futuro de vacas magras. Esse tipo de gordura energética, também conhecida como gordura branca, pode se localizar em regiões subcutâneas (como nas focas e baleias), abdominais (sapos e serpentes) ou em ambos (como na maioria dos mamíferos e pássaros). Essa distribuição não significa uma forma de adaptação evolutiva para isolamento térmico, uma vez que mamíferos do ártico e dos trópicos, com a mesma massa corpórea, possuem semelhante distribuição de gordura.
Nos humanos, a distribuição da gordura branca no corpo varia com a idade. Perdemos gorduras subcutâneas e aumentamos gorduras intra-abdominais conforme envelhecemos. O fator genético também influencia. Estudos com gêmeos revelaram que fatores genéticos podem contribuir de 30 a 70% para as chances de obesidade. É o caso das mulheres africanas da tribo de Hottentot/Khoisan, conhecidas pela maneira como carregam as crianças nas costas — literalmente sentadas nas fartas nádegas. Isso me lembra um livro de Rachel Holmes que descreve a drástica história de uma mulher dessa região, Saartjie Baartman, que foi levada para a Europa como uma atração bizarra (ou uma vênus exótica, para os mais românticos). Da mesma forma, mulheres da tribo africana dos Bundus, apresentam acentuado acúmulo de gordura nas nádegas. Curiosidade: o fato de mulheres dessa tribo terem vindo ao Brasil durante o período de escravidão, sugere que a palavra “bunda” tenha sua origem nessa característica física.
De qualquer forma, a distribuição de gordura branca pelo corpo humano influencia a predisposição a doenças. Existem duas teorias, não necessariamente exclusivas, para explicar o porquê disso. A primeira é baseada na anatomia e no fato de que células de gordura branca descarregam seus produtos metabólicos (como ácidos graxos, por exemplo) na circulação próxima ao fígado, prejudicando o metabolismo. A outra teoria diz respeito à natureza genética das células de gordura — nem todas seriam iguais e o balanço dos diferentes tipos de gordura seria um dos fatores que causam doenças.
De fato, mamíferos apresentam um outro tipo de gordura, a chamada gordura marrom. Ao contrário da gordura branca (energética), a marrom tem a função de regulação térmica. Isso acontece porque nessas células temos a ativação de um gene chamado UCP-1, cuja proteína participa da conversão da energia química das mitocôndrias em energia térmica. Diferentemente dos outros mamíferos, que mantém um nível relativamente constante de gordura marrom durante toda a vida, humanos nascem com um estoque, mas vão perdendo durante a fase adulta.
Além disso, vale notar que esse tipo de gordura pode ser induzido pela exposição prolongada ao frio. Mais: observou-se um acúmulo de gordura marrom, com o gene UCP-1 induzido numa linhagem de camundongos resistente à obesidade, sugerindo que essa gordura marrom deva participar da regulação homeostática do corpo (Almin e colegas, PNAS 2007). Ora, isso sugere que a adição de pequenas quantidades de gordura marrom em humanos possa ser uma nova alternativa para o tratamento ou prevenção da obesidade e de suas complicações metabólicas.
Mas, para fazer isso, precisamos saber de onde vêm as gorduras marrons ou como podemos induzi-las. O estudo da origem das células de gordura humana remete às células-tronco embrionárias. Dessas, podem ser geradas as chamadas células-tronco mesenquimais, também presentes em indivíduos adultos. E são as células-tronco mesenquimais as responsáveis pela produção do tecido adiposo. A questão agora é definir quais são os fatores (intrínsecos e ambientais) que estimulam as células-tronco mesenquimais a se especializar numa célula de gordura branca ou gordura marrom.
Sabendo-se disso, podemos compreender melhor a origem dessa epidemia de obesidade, além de possibilitar o uso terapêutico de células-tronco no tratamento de obesidade. Tenho certeza que meu grande amigo de infância, vulgarmente conhecido como “o Gordo”, ficará feliz se um dia isso virar realidade.