Câncer de mama não é mais doença de rico
O câncer de mama é a forma mais letal de câncer nas mulheres. Estima-se que um milhão de casos serão diagnosticados até o final deste ano. De acordo com pesquisa realizada pela revista “Times” (15 de outubro de 2007), numa reportagem especial sobre o assunto, cerca de 500 mil mulheres morrerão dessa forma no mundo todo. Só nos EUA, uma em cada oito mulheres será diagnosticada.
O câncer de mama era, até então, predominantemente encontrado em países ricos do Ocidente. Mas hoje o cenário está mudando radicalmente. No ano 2020, 70% de todos os casos de câncer de mama serão diagnosticados nos países em desenvolvimento, incluindo Ásia, Europa Oriental, África e América Latina.
Para piorar a situação, as técnicas de detecção e tratamentos comuns nos países ricos não estarão acessíveis para a maioria dos pacientes no futuro. Ou você acha que exames de mamografia são comuns no Quênia ou no Brasil subdesenvolvido? Pois é, a pobreza consagra-se como um dos piores carcinógenos, ou seja, causadores do câncer.
Essa mudança radical no perfil das mulheres com câncer de mama tem origens relativamente positivas. Com a melhoria das condições sanitárias e da disponibilidade de alimentos, a expectativa de vida das nações mais pobres aumentou de 50 anos em 1965 para 65 anos em 2005. Dessa forma, as mulheres nos países subdesenvolvidos estão vivendo mais e alcançando uma idade onde estão mais expostas a carcinógenos e susceptíveis ao câncer de mama.
O grande problema é que esse aumento da expectativa de vida vem junto com outros hábitos, alguns menos positivos, de países ricos: dieta rica em gordura, sedentarismo, obesidade, terapias de reposição hormonal, um menor número de filhos e maternidade tardia. Junto com a longevidade, esses fatores estão claramente relacionados à alta incidência de câncer de mama.
O câncer de mama se desenvolve a partir da exposição ao hormônio feminino chamado de estrógeno, que induz o tecido mamário a crescer de forma acelerada durante o ciclo menstrual. Dessa forma, o fato de ter poucos filhos e a maternidade tardia aumentariam a exposição da mulher ao estrógeno. No entanto, a maneira como o tecido mamário reage ao hormônio é influenciada pela carga genética individual.
Alguns cânceres são hereditários e podem ser observados em diversas gerações de uma mesma família. Mutações em dois genes, BRCA1 e BRCA2 (pronuncia-se “braca” no meio científico), foram identificadas como fatores de risco, mas claramente existem outros genes envolvidos e ainda desconhecidos. Mutações nos genes BRCA são responsáveis por cerca de 10% dos casos de câncer de mama nos EUA, tanto em mulheres como em homens.
No caso dos BRCA, as mutações levam a um tipo superagressivo de câncer de mama, com alta freqüência em mulheres abaixo de 50 anos. Se você tem a mutação, suas chances de desenvolver câncer de mama são altíssimas. Atualmente, já existem testes para esses genes e, uma vez diagnosticada geneticamente, a pessoa tem a oportunidade de retirar o útero, ovários e fazer mastectomia antes mesmo do aparecimento do câncer, na tentativa de garantir sua sobrevivência. Obviamente, essa não é uma decisão fácil.
O gene BRCA1 foi o primeiro a ser relacionado com altos índices de câncer de mama, ovário, próstata e cólon. O gene foi descoberto em 1994, por meio do estudo de casos em uma família de mórmons. Seu parceiro, o BRCA2, foi descrito no ano seguinte e, apesar de serem estruturalmente diferentes, os dois exercem funções similares na célula.
Ambos os genes estão relacionados com o mecanismo de reparo de DNA. Fatores externos, como hormônios, ou internos, como o próprio metabolismo celular, resultam em danos na estrutura física do DNA. Esses danos, caso não reparados, podem causar mutações em diversos genes essenciais para o funcionamento normal da célula.
Por isso, a evolução equipou as células com um sofisticado sistema de monitoramento da instabilidade do genoma. São diversos os genes que fazem parte de uma complexa coreografia molecular, que envolve uma série de etapas, como reconhecimento, bloqueio do ciclo celular, ativação das proteínas de reparo e conserto do estrago na dupla hélice do DNA.
Esse sistema é responsável por manter o genoma livre de mutações. E defeitos nele podem causar diversos tipos de doenças, incluindo o câncer. O porquê das mutações nos BRCA estarem ligadas a tipos de câncer específicos, e como os fatores ambientais contribuem para isso, ainda é motivo de muita pesquisa. Vale lembrar que os genes BRCA estão também envolvidos em outras atividades na célula, como a regulação gênica (o controle do grau de funcionamento de cada gene) e a modelagem da cromatina, o “pacote” de proteínas, DNA e RNA que forma os cromossomos.
Outras idéias sobre fatores de risco para o câncer de mama – uso diário de desodorante nas axilas, ingestão de pílulas contraceptivas que contêm pequenas quantidades de estrógeno, fumar cigarros ou implantes de silicone – não foram comprovadas cientificamente.
O curioso é que, enquanto os hábitos ocidentais são absorvidos rapidamente pelos países em desenvolvimento, a compreensão cultural e científica por trás do câncer de mama caminha numa velocidade bem menor. Nos EUA e na Europa, milhares de dólares são destinados à pesquisa básica, diagnóstico e pesquisa aplicada. Associações de pais e pacientes são comuns em diversas cidades e a cultura da doação é muito forte. No resto do mundo, o câncer de mama ainda é visto com vergonha e surpresa.
No Egito, mulheres evitam assumir a condição com medo de serem abandonadas pelos maridos. Em Taiwan, as mulheres não costumam comentar sobre os seios em consultas médicas, enquanto na Índia o câncer de mama é visto como uma doença contagiosa. Esses hábitos culturais sugerem que as soluções deverão ser adaptadas para cada sociedade.
No Brasil, com a vergonhosa distribuição de renda entre a população, aliada ao nosso aspecto multicultural, combinamos problemas de países ricos e pobres. Educar sobre o problema do câncer de mama desde cedo e conscientizar sobre a importância da detecção do câncer em estágios precoces é crucial para que o Brasil reverta um terrível prognóstico.
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PS: Nesta semana, comemoro um ano como colunista no G1. Durante esse tempo, recebi diversos comentários interessantes e críticos, que me esforcei para responder da melhor maneira possível. Mais ainda, recebi centenas de e-mails com questões sobre os diversos assuntos tratados, desde questões praticas ate a mais pura filosofia. Alguns leitores sugeriram que eu escreva para um jornal (físico, impresso) para ter uma maior penetração social. Tenho a impressão que o alcance das duas mídias é praticamente o mesmo. Além disso, acho extraordinário a conexão online, bem mais dinâmica, estabelecida entre o pesquisador e o leitor. Obrigado pelo interesse!