Autismo revertido?

sex, 21/09/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O conceito de autismo está mudando rapidamente. Hoje em dia, já não se usa “autismo” como uma única síndrome, mas sim como um conjunto de sintomas que podem estar presentes em diversas doenças. O termo correto usado para essas enfermidades é o genérico “doenças com espectro autista”.

Dentre essas, a síndrome de Rett é a mais bem caracterizada. Isso porque ela tem uma um componente genético, ou seja, a doença acontece por causa de mutações num gene conhecido como MeCP2, afetando 1 em cada 10.000 crianças. A maioria dos pacientes é mulher, pois o MeCP2 está localizado no cromossomo X. Homens, com apenas um cromossomo X, não resistem e morrem precocemente.

Familiares que têm crianças com síndrome de Rett passam por uma frustração enorme. A criança nasce normal e se desenvolve sem nenhum problema até aproximadamente o primeiro ano de vida. A partir daí, observa-se uma progressiva regressão mental acompanhada de dificuldades motoras e respiratórias, tremores e freqüentes ataques epiléticos. Podem ocorrer também os movimentos estereotipados com as mãos, típicos de crianças autistas. O nível de autismo nesses pacientes é bem variável, complicando bem a caracterização da síndrome. O paciente sobrevive até a idade adulta, mas fica restrito fisicamente a uma cadeira de rodas, além de estar isolado socialmente pela ausência de comunicação verbal.

A proteína codificada pelo MeCP2 tem a função de interagir com o material genético celular, recrutando todo um complexo protéico que mantém uma estrutura organizada do DNA, além de regular a expressão de diversos outros genes através de alterações epigenéticas. Mutações no gene-mestre MeCP2 impedem essa organização tridimensional do DNA, favorecendo um aumento da expressão de diversos outros genes. Como conseqüência disso, neurônios de portadores da síndrome de Rett são bem mais simples que neurônios normais, tanto a nível estrutural (número de conexões com outros neurônios) como a nível operacional (capacidade de se comunicar com outros neurônios). Bases celulares de como isso acontece ainda são um mistério.

Até recentemente, achava-se que os dramáticos efeitos cognitivos dessa síndrome seriam irreversíveis. Relatos dos pais desses pacientes indicam que os afetados estariam plenamente conscientes, mas incapazes de se comunicar. Seria como estivessem “presos” dentro de um corpo que não responde à própria vontade. Mas infelizmente, não existe nenhum dado científico que corrobore essa observação.

Recentemente, pesquisadores conseguiram mostrar em um modelo animal que os sintomas neurológicos mais graves da síndrome de Rett podem ser revertidos. O experimento foi feito pelo grupo escocês liderado por Adrian Bird. Para isso, o grupo de Bird usou algumas estratégias genéticas. Primeiramente, desenvolveram um camundongo onde o gene MeCP2 estava bloqueado por um pedaço de DNA introduzido de propósito para atrapalhar a expressão do gene. Com o gene MeCP2 desligado, o camundongo reproduzia alguns dos sintomas característicos da síndrome de Rett em humanos, como diminuição de atividade motora e os tremores.

Depois, os pesquisadores conseguiram ligar o gene novamente através de uma outra estratégia genética: introduziram no mesmo modelo animal um gene híbrido. Esse gene artificial produz uma proteína composta de uma enzima capaz de eliminar o bloqueio da expressão do MeCP2 fusionado com o receptor hormonal de estrógeno. O receptor de estrógeno impede que a enzima entre no núcleo celular. No entanto, ao administrar tamoxifen nos camundongos (uma droga que se liga ao receptor de estrógeno), a enzima consegue então atravessar a membrana nuclear e desbloquear o MeCP2.

Após receberem o tamoxifen, a maioria dos camundongos que apresentavam as características da síndrome de Rett teve os sintomas reduzidos drasticamente. Esse resultado foi comemorado com grande entusiasmo pelos cientistas e familiares de doenças com espectro autista, afinal os dados sugerem que os problemas causados pela ausência do MeCP2 durante o desenvolvimento não são permanentes e podem ser reversíveis. O trabalho foi publicado com detalhes na revista “Science” (Guy et al., 2007).

Minhas críticas ao trabalho não são técnicas, mas temo uma interpretação exacerbada dos resultados. Os sintomas revertidos foram observados em células ou diretamente na fisiologia dos animais (testes motores e de viabilidade). Fico curioso em saber por que não foi feito nenhum teste cognitivo, por exemplo. Afinal, a capacidade dos pacientes de interagir com os familiares ou mesmo de lembrar eventos passados seria algo de extrema importância. Além disso, sabemos que os camundongos sem o MeCP2, assim como pacientes Rett, apresentam freqüentes ataques epilépticos que alteram a morfologia e o contato entre neurônios, independentemente da presença de MeCP2. Em outras palavras, restaurar a expressão de MeCP2 no cérebro não necessariamente vai corrigir os danos já causados pelos ataques epiléticos. Somente com esses estudos é que poderíamos realmente dizer que o espectro autista foi revertido com sucesso.

Apesar da euforia gerada pela publicação, os resultados não podem ser aplicados diretamente em humanos. Isso porque não temos como reativar o MeCP2 nos neurônios humanos como feito em camundongos. Além disso, uma possível terapia genética também tem poucas chances de sucesso, uma vez que a maioria dos pacientes possui aleatoriamente 50% das células com níveis normais de MeCP2 graças à segunda cópia do gene no segundo cromossomo X (mulheres têm dois X, mas apenas um é funcional em cada célula). Essas células normais iriam acabar com um nível protéico de MeCP2 maior do que o normal, o que também já foi demonstrado ser tão ruim quanto a deficiência do gene.

Achar uma alternativa terapêutica em humanos não vai ser fácil. O estudo com camundongos mostra que existe uma razão para continuar pesquisando vias bioquímicas nas quais MeCP2 estaria atuando e que possam ser manipuladas com segurança na síndrome de Rett e outras síndromes que também causam autismo.

Associações de Pais e Pacientes

sex, 07/09/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Freqüentemente recebo mensagens de pais cujo(s) filhos são portadores de alguma doença ou síndrome genética rara. Buscam saber mais: o porquê da doença, eventuais terapias e possíveis drogas que estariam sendo testadas para amenizar o sofrimento dos filhos. Quanto mais rara a doença, mais desesperados são os pais, pois a maioria das informações está disponível apenas em inglês técnico ou é de difícil acesso, muitas vezes publicadas em revistas especializadas e restritas ao meio científico/médico.

Isso quando existe pesquisa na área. Muitas doenças são órfãs e devido ao baixo número de pacientes, não são prioridade para órgãos financiadores de pesquisa. Aliás, esse é o primeiro passo para a cura — a pesquisa básica. Entender isso é a base da formação de uma organização de suporte a doenças órfãs. Sem pesquisa básica, não se sabe como ou por que a doença acontece, se foi hereditária ou adquirida, dificultando a cura.

O que fazer então? Vivendo no exterior há algum tempo, tive a oportunidade de observar como são geradas e administradas. Narro aqui um pouco disso, alertando o leitor para as diferenças econômicas e culturais entre Brasil e EUA. Lá, existem associações para diversas doenças, auxiliando familiares e pesquisadores, enquanto que no Brasil essa iniciativa ainda é insipiente, muitas vezes atuando apenas com o paciente diretamente.

Os conformados mantêm o mundo estável, mas são os inconformados que o fazem evoluir. Da mesma forma, muitas vezes é o inconformismo dos pais a semente da cura. Isso em qualquer lugar do mundo. Então os pais levam a criança a diversos médicos e, com sorte, um já ouviu falar de algo parecido e faz o diagnóstico correto: seu filho tem a síndrome X, com essas características, que infelizmente não tem cura e ninguém sabe mais nada sobre o assunto.

Pais inconformados vão continuar pesquisando, buscando informações em livros, internet, escrevendo para cientistas, etc. Até que, nessa busca, encontram diversas outras famílias na mesma situação. Decidem se organizar, batalhando juntos novas informações e dividindo as novidades entre o grupo. Aqui acontece uma de duas opções: ou esse grupo de desintegra por alguma razão, ou decide se organizar de forma profissional.

Uma vez organizados, passam a convidar médicos e cientistas locais para palestras ou mesmo elegem um representante do grupo para visitar médicos, centros de pesquisa e organizações semelhantes no exterior. Também buscam uma resposta do governo que, quase sempre, aponta a raridade da doença como uma desculpa para a falta de verba para a pesquisa. A grande contradição nessa história de doenças raras é que são justamente elas que fornecem respostas fundamentais sobre a biologia humana, muitas vezes contribuindo para a cura de diversas outras doenças — não tão raras assim. Portanto, do ponto de vista científico, doenças raras são tão importantes quanto doenças mais comuns. Por isso mesmo, o NIH (o maior órgão de financiamento de pesquisa americano, equivalente ao nosso CNPq) possui verba especial para esse tipo de pesquisa.

A essa altura, o leitor deve ter reparado que as organizações de pais já devem possuir uma estrutura financeira. Nesse segundo passo, o tempo de dedicação dos pais aumenta consideravelmente e muitas famílias optam por um estilo de vida mais modesto, onde um do casal muitas vezes pára de trabalhar para se dedicar ao filho e à organização. Pais se unem e montam atividades beneficentes, arrecadando dinheiro para a causa. Nos EUA, isso é supercomum — você inevitavelmente participa de uma ou duas atividades por ano. Isso porque os programas de arrecadação são extremamente criativos, onde o doador participa da atividade de forma ativa. Esqueça essa história de bingo ou de tocar de porta em porta com um folheto explicativo.

Por exemplo, são oferecidos “personal trainers” para maratonas ou condicionamento físico se você conseguir arrecadar certa quantia. Quem literalmente arrecada o dinheiro não é necessariamente alguém que tenha uma relação direta com a doença. Além disso, consegue-se que o governo desconte doações de empresas do imposto de renda, favorecendo a doação voluntária. Aliás, a cultura de “doar” é muito fraca no Brasil e deveria ser estimulada desde muito cedo não somente entre os ricos, mas em todas as categorias da sociedade. Ouve-se muito pouco sobre empresários e profissionais liberais brasileiros, formados pela USP, por exemplo, que retornam o investimento em forma de doação. Isso não ocorre em universidades americanas, onde a doação de ex-alunos ocorre freqüentemente.

O capital arrecadado pelas associações é então investido e amplificado até que é formado um comitê científico. Esse comitê convida renomados cientistas a pesquisar sobre a doença, financiando parte de equipamentos, salários, viagens, colaborações internacionais, etc. Nos EUA, isso pode ou não, ser feito em parceria com o NIH. Muitas vezes, as associações são completamente independentes do governo. A expectativa é de que um cientista faça uma descoberta importante, que auxilie na compreensão da doença e que atraia outros pesquisadores para a linha de pesquisa. Quanto mais cérebros trabalhando na síndrome X, melhor. Bons exemplos de associações iniciadas por pais nos EUA são: a sociedade de pacientes com xeroderma pigmentosum (www.xps.org), a fundação de pesquisa para o câncer de mama (www.bcrfcure.org) e a sociedade de pacientes com síndrome de Rett (www.rsrf.org).

Em certo momento, as associações acabam por se fundir com outras associações internacionais, aumentando ainda mais sua força pública, especialmente se existe alguma personalidade famosa que se interesse pela causa. É comum ver políticos flertando com essas associações, tudo de forma transparente. A pior coisa que pode acontecer nesse estágio é um escândalo de corrupção.

Nem sempre as associações chegam nesse estágio. Por diversas razões. Uma delas é que a expectativa de vida de alguns pacientes é curta. Outra razão é a consciência de que vai levar muito tempo para que a ciência encontre a cura para algumas doenças. Sem estímulo para continuar na luta, muitos pais abandonam a associação, enfraquecendo-a. Essa visão a curto prazo, tão comum no Brasil, é um perigo para o futuro das associações. Pais devem ter em mente que as descobertas feitas numa geração, serão aproveitadas nas futuras gerações. Além disso, a ciência muitas vezes acontece aos saltos. Eventuais descobertas podem acelerar em muito a cura ou melhoria de algumas doenças, inclusive superando previsões otimistas. Portanto, o altruísmo e a esperança não devem morrer nunca.

Por fim, deve-se ressaltar que mesmo com as dificuldades políticas e econômicas do Brasil, algumas associações conseguem crescer e fazer diferença na vida de pacientes. Mas, infelizmente, são poucas. No Instituto Salk de pesquisa, na Califórnia, cerca de 40% do salário dos postdocs e pesquisadores vêm de organizações de pacientes. Esse número reflete a seriedade dessas organizações e o compromisso dos pesquisadores com a doença.

Existem outros detalhes que contribuem para o sucesso dessas associações, que variam dependendo do tipo de doença, mas termino por aqui com a esperança de ter iniciado uma discussão sobre esse assunto no Brasil.



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