Autismo revertido?
O conceito de autismo está mudando rapidamente. Hoje em dia, já não se usa “autismo” como uma única síndrome, mas sim como um conjunto de sintomas que podem estar presentes em diversas doenças. O termo correto usado para essas enfermidades é o genérico “doenças com espectro autista”.
Dentre essas, a síndrome de Rett é a mais bem caracterizada. Isso porque ela tem uma um componente genético, ou seja, a doença acontece por causa de mutações num gene conhecido como MeCP2, afetando 1 em cada 10.000 crianças. A maioria dos pacientes é mulher, pois o MeCP2 está localizado no cromossomo X. Homens, com apenas um cromossomo X, não resistem e morrem precocemente.
Familiares que têm crianças com síndrome de Rett passam por uma frustração enorme. A criança nasce normal e se desenvolve sem nenhum problema até aproximadamente o primeiro ano de vida. A partir daí, observa-se uma progressiva regressão mental acompanhada de dificuldades motoras e respiratórias, tremores e freqüentes ataques epiléticos. Podem ocorrer também os movimentos estereotipados com as mãos, típicos de crianças autistas. O nível de autismo nesses pacientes é bem variável, complicando bem a caracterização da síndrome. O paciente sobrevive até a idade adulta, mas fica restrito fisicamente a uma cadeira de rodas, além de estar isolado socialmente pela ausência de comunicação verbal.
A proteína codificada pelo MeCP2 tem a função de interagir com o material genético celular, recrutando todo um complexo protéico que mantém uma estrutura organizada do DNA, além de regular a expressão de diversos outros genes através de alterações epigenéticas. Mutações no gene-mestre MeCP2 impedem essa organização tridimensional do DNA, favorecendo um aumento da expressão de diversos outros genes. Como conseqüência disso, neurônios de portadores da síndrome de Rett são bem mais simples que neurônios normais, tanto a nível estrutural (número de conexões com outros neurônios) como a nível operacional (capacidade de se comunicar com outros neurônios). Bases celulares de como isso acontece ainda são um mistério.
Até recentemente, achava-se que os dramáticos efeitos cognitivos dessa síndrome seriam irreversíveis. Relatos dos pais desses pacientes indicam que os afetados estariam plenamente conscientes, mas incapazes de se comunicar. Seria como estivessem “presos” dentro de um corpo que não responde à própria vontade. Mas infelizmente, não existe nenhum dado científico que corrobore essa observação.
Recentemente, pesquisadores conseguiram mostrar em um modelo animal que os sintomas neurológicos mais graves da síndrome de Rett podem ser revertidos. O experimento foi feito pelo grupo escocês liderado por Adrian Bird. Para isso, o grupo de Bird usou algumas estratégias genéticas. Primeiramente, desenvolveram um camundongo onde o gene MeCP2 estava bloqueado por um pedaço de DNA introduzido de propósito para atrapalhar a expressão do gene. Com o gene MeCP2 desligado, o camundongo reproduzia alguns dos sintomas característicos da síndrome de Rett em humanos, como diminuição de atividade motora e os tremores.
Depois, os pesquisadores conseguiram ligar o gene novamente através de uma outra estratégia genética: introduziram no mesmo modelo animal um gene híbrido. Esse gene artificial produz uma proteína composta de uma enzima capaz de eliminar o bloqueio da expressão do MeCP2 fusionado com o receptor hormonal de estrógeno. O receptor de estrógeno impede que a enzima entre no núcleo celular. No entanto, ao administrar tamoxifen nos camundongos (uma droga que se liga ao receptor de estrógeno), a enzima consegue então atravessar a membrana nuclear e desbloquear o MeCP2.
Após receberem o tamoxifen, a maioria dos camundongos que apresentavam as características da síndrome de Rett teve os sintomas reduzidos drasticamente. Esse resultado foi comemorado com grande entusiasmo pelos cientistas e familiares de doenças com espectro autista, afinal os dados sugerem que os problemas causados pela ausência do MeCP2 durante o desenvolvimento não são permanentes e podem ser reversíveis. O trabalho foi publicado com detalhes na revista “Science” (Guy et al., 2007).
Minhas críticas ao trabalho não são técnicas, mas temo uma interpretação exacerbada dos resultados. Os sintomas revertidos foram observados em células ou diretamente na fisiologia dos animais (testes motores e de viabilidade). Fico curioso em saber por que não foi feito nenhum teste cognitivo, por exemplo. Afinal, a capacidade dos pacientes de interagir com os familiares ou mesmo de lembrar eventos passados seria algo de extrema importância. Além disso, sabemos que os camundongos sem o MeCP2, assim como pacientes Rett, apresentam freqüentes ataques epilépticos que alteram a morfologia e o contato entre neurônios, independentemente da presença de MeCP2. Em outras palavras, restaurar a expressão de MeCP2 no cérebro não necessariamente vai corrigir os danos já causados pelos ataques epiléticos. Somente com esses estudos é que poderíamos realmente dizer que o espectro autista foi revertido com sucesso.
Apesar da euforia gerada pela publicação, os resultados não podem ser aplicados diretamente em humanos. Isso porque não temos como reativar o MeCP2 nos neurônios humanos como feito em camundongos. Além disso, uma possível terapia genética também tem poucas chances de sucesso, uma vez que a maioria dos pacientes possui aleatoriamente 50% das células com níveis normais de MeCP2 graças à segunda cópia do gene no segundo cromossomo X (mulheres têm dois X, mas apenas um é funcional em cada célula). Essas células normais iriam acabar com um nível protéico de MeCP2 maior do que o normal, o que também já foi demonstrado ser tão ruim quanto a deficiência do gene.
Achar uma alternativa terapêutica em humanos não vai ser fácil. O estudo com camundongos mostra que existe uma razão para continuar pesquisando vias bioquímicas nas quais MeCP2 estaria atuando e que possam ser manipuladas com segurança na síndrome de Rett e outras síndromes que também causam autismo.