A teoria da mente e a síndrome de Williams

sáb, 28/07/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Há dois anos, convidei o escritor e neurologista Oliver Sacks para uma palestra no Instituto Salk. O pequeno senhor, de voz calma e com uma estranha atração por tabelas periódicas, representado de forma brilhante por Robin Williams no filme “Tempo de Despertar”, comoveu a platéia com curiosas descrições de casos neurológicos. Uma delas em particular me chamou a atenção: uma complexa síndrome genética que causa predisposição ao comportamento social e amabilidade.

Trata-se da síndrome de Williams, um esporádico acidente genético que remove uma importante região do cromossomo 7, eliminando cerca de 30 genes. Alguns desses genes atuam em conjunto e são responsáveis por problemas cognitivos, enquanto outros podem causar problemas morfológicos, como defeitos no coração. Pacientes com essa síndrome apresentam dificuldades de orientação espacial e cálculos numéricos. Mas o que realmente chama a atenção é o fenótipo social, uma paixão por companhia e diálogo, junto com uma má interpretação da dinâmica social e total falta de inibição num ambiente estranho. Dessa forma, os portadores de Williams adoram conversar, conversam sobre tudo e com qualquer um, sem o menor medo social.

Essa habilidade parece ser decorrente de uma performance lingüística acentuada, possivelmente causada por uma redução de áreas visuais posteriores no cérebro, como que forçando o uso criativo da semântica e sintaxe oral. Em conseqüência, pode-se observar um rico e elaborado vocabulário em alguns portadores. Entretanto, a falta de inibição social parece ser decorrente de uma má ativação da amígdala (centro do cérebro responsável pelo medo) ao ver faces estranhas ou agressivas. Seria como se vissem apenas rostos amigáveis, sempre.

Em contraste com o rápido desenvolvimento verbal, portadores dessa síndrome não conseguem reconhecer sinais óbvios da linguagem corporal ou perceber qualquer tipo de ironia. Aparentemente, não possuem a chamada teoria da mente, ou seja, a capacidade que temos de inferir intenções de uma outra pessoa sem que ela o diga verbalmente. A falta de uma teoria da mente faz com que os Williams tenham poucos amigos, verdadeiros e profundos, mesmo com toda sua inata erupção comunicativa. A falta de amigos é frustrante e revela uma importante característica humana: a necessidade quase incontrolável de interagir com outros de uma forma não-superficial. Todos sabemos quão doloroso pode ser o isolamento ou mesmo a exclusão de um grupo.

Imediatamente fascinado por essa síndrome, passei a estudar sobre o assunto e tentar entender como alguns poucos genes poderiam causar essa amabilidade desinteressada, apresentada pelos raros pacientes que carregam essa característica genética. No nível molecular, pergunto como que um punhado de genes consegue regular a sociabilidade humana e alterar a teoria da mente? Num outro nível, comportamental, como seria o mundo se fôssemos todos carinhosos, sorridentes e amáveis uns com os outros, sem esperar nada em troca?

Crianças com Williams lembram elfos ou fadas, com pequenos narizes empinados, cabelos encaracolados e um eterno e agradável sorriso nos lábios, programados para cativar. Ao contrário do amplo espectro de autismo, a síndrome de Williams possui uma reconhecida base genética, passível de manipulação em animais de laboratório. Pode-se, por exemplo, retirar um gene de cada vez em camundongos e observar o fenótipo. Dessa forma, vejo a síndrome de Williams como um ótimo modelo para o estudo das bases genéticas de certos comportamentos humanos, incluindo o grande paradoxo das relações sociais. Para sobreviver, precisamos interagir e trabalhar em grupo, mas também temos que competir entre nós, no mais puro reality show. É aí que a linguagem torna-se essencial.

Muito possivelmente, a linguagem humana surgiu da necessidade de coordenar grandes grupos de pessoas, do desejo de sair do isolamento e criar uma conexão com outros humanos. Imagino que deve ter começado muito simples, associando-se sons a necessidades como fome, perigo ou dor. Depois disso, provavelmente ocorreu uma gigantesca transição evolutiva onde passamos a usar os sons para representar sensações abstratas: amor, amizade, felicidade… Quando você ouve alguma dessas palavras, seu cérebro a conecta com impressões e memórias relacionadas ao som da palavra, nos ajudando a entender o que o outro quer dizer. O curioso é que são apenas símbolos vocais abstratos e mesmo assim todo mundo entende do que se trata. Existiria algo transcendental que nos une pela linguagem? Qual o papel do ambiente nisso tudo?

Para responder a essa última questão, um grupo de pesquisadores da Califórnia resolveu comparar pacientes com síndrome de Williams em duas culturas bem diferentes: nos EUA e no Japão (Carol Zitzer-Comfort e colegas, Devel. Sciences, 2007). É notável que a parte social nesses dois países é bem distinta. Numa visão simplista, considere que nos EUA, quem não chora não mama, enquanto que no Japão quem reclama apanha! Na pesquisa, os pais tiveram que avaliar o comportamento social das crianças portadoras em diversas situações sociais.

O resultado foi que, independentemente do lugar onde nasceram, todos os portadores demonstravam uma habilidade superior para o comportamento social quando comparadas com crianças normais da mesma região. Esse resultado aponta para um fator genético na sociabilidade humana. Mais interessante ainda, o estudo também revela que a expectativa cultural claramente influencia o comportamento social, uma vez que a sociabilidade dos garotos americanos normais foi considerada semelhante à dos garotos japoneses com a síndrome de Williams.

A procura pela porção genética do comportamento social continua e deve focar tanto na parte molecular, isto é, como que o produto desses 30 genes se interelacionam na célula, quanto na parte comportamental, em outras palavras, na compreensão das redes neurais envolvidas nesse processo. Descobrir como o cérebro Williams funciona trará ótimas oportunidades de intervenção terapêutica, além de abrir novas avenidas para o avanço da compreensão da razão pela qual sofremos tanto com as relações humanas.

Novos neurônios: entre cheiros, memórias e parceiros

sex, 13/07/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A descoberta de que o cérebro adulto é capaz de produzir novos neurônios, em contraste com o dogma de que o sistema nervoso não se regenera, é um dos assuntos mais fascinantes da neurociência atual e já foi discutido em detalhes aqui.

Em condições fisiológicas normais, o fenômeno da neurogênese acontece em duas regiões distintas do cérebro adulto: no giro dentado do hipocampo e na zona subventricular. Novos neurônios produzidos no giro dentado lutam com os neurônios já estabelecidos por um lugar ao Sol. Na verdade, brigam para se incorporar às redes neurais que conectam as memórias no tempo, funcionando como um sistema biológico que nos permite apreciar que o tempo é dinâmico. Na zona subventricular, as células-tronco produzem neurônios imaturos que migram para o bulbo olfatório. Chegando lá, esses neurônios amadurecem, contribuindo para as redes neurais envolvidas com a memória olfativa.

Nessas duas áreas, as células-tronco neurais se especializam em novos neurônios dependendo do estímulo que recebem. Por exemplo, o exercício físico voluntário aumenta o número de neurônios no hipocampo, mas não no bulbo olfatório. Por outro lado, a lactação das fêmeas aumenta o número de neurônios no bulbo olfatório, independente de qualquer alteração no hipocampo. Essas observações sugerem que os mecanismos envolvidos na geração de novos neurônios nessas duas áreas atuam de maneira específica. Afinal, o hipocampo e o bulbo olfatório possuem funções bem distintas no cérebro.

Em um estudo publicado recentemente na Nature Neuroscience (Mak e colegas, 2007), pesquisadores mostraram que feromônios (do grego phéro, transportar e órmao, excitar) de camundongos machos induzem a neurogênese tanto no hipocampo quanto no bulbo olfatório de camundongos fêmeas. Com isso, os autores descrevem pela primeira vez um estímulo capaz de induzir a geração de novos neurônios em ambas as regiões, sugerindo uma possível relação entre neurogênese e comportamento sexual.

Isso porque, em camundongos, o reconhecimento de feromônios do macho dominante pelas fêmeas se traduz em sinais químicos no cérebro que fornecem informações sobre o status social, saúde e vantagem genética do macho em questão. É justamente isso que faz com que elas optem por ter relações sexuais com o macho dominante ao invés de machos subordinados. Dessa forma, machos dominantes que foram castrados não estimulam a neurogênese nas fêmeas, perdendo a vantagem reprodutiva. Além disso, fêmeas com neurogênese reduzida artificialmente ou que foram previamente expostas a feromônios de machos subordinados não conseguem distinguir direito quem é o macho dominante.

Esse conjunto de dados sugere que, pelo menos no comportamento sexual dos camundongos, a neurogênese adulta em duas regiões diferentes do cérebro pode funcionar de maneira cooperativa. Novos neurônios do bulbo olfatório seriam responsáveis pelo reconhecimento de feromônios do macho dominante em algum momento da vida das fêmeas, enquanto que os novos neurônios no hipocampo seriam responsáveis pela lembrança desse reconhecimento em outros momentos.

Vale lembrar que a neurogênese diminui drasticamente com a idade, tanto no bulbo olfatório quando no hipocampo. Fica a dúvida se o discernimento sexual das fêmeas, ou seja, a capacidade de distinção entre machos, também diminui com a idade. Sabe-se também que a depressão diminui e o Viagra aumenta a neurogênese no hipocampo. Seria possível então que o uso de Viagra tivesse algum efeito na libido de fêmeas que sofrem de depressão? E se der certo? Será que funcionaria em humanos também?

Essas são dúvidas que a ciência tem plena e total capacidade de responder em alguns anos, usando ferramentas genéticas e moleculares. No entanto, estou mais interessado em outro tipo de questão, não tão simples assim: estaria o comportamento sexual pré-determinado biologicamente, ou melhor, nossas escolhas são realmente decorrentes de um livre-arbítrio?

Tome o famoso experimento das camisetas suadas como exemplo. Nesse caso, mulheres tinham que julgar, num estudo “cego”, quais as camisetas de homens suados as atraíam com mais intensidade durante o período fértil (acho que só nesse período mesmo é que elas acham nosso suor atraente…). A resposta foi surpreendente – as mulheres se atraíram mais por cheiro de homens cujo sistema imune era diferente do delas. Essa escolha teria uma função evolutiva: gerar prole com um sistema imune mais amplo e, supostamente mais forte do que o dos próprios pais, deixando o indivíduo mais adaptado e com melhores chances de sobrevivência.

Às vezes me incomoda descobrir que certos comportamentos humanos possam ser previsíveis e até determinísticos. Seríamos mais felizes se não tivéssemos consciência disso? De maneira irônica, nosso cérebro evoluiu para pesquisar e descobrir novas informações, e a maioria de nós fica incomodada em não saber o porquê das coisas. Estamos sempre buscando algo. Talvez seja por isso mesmo que a questão da morte e do livre-arbítrio seja um dos maiores debates filosóficos e científicos da humanidade. Prometo escrever sobre isso em breve.



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