Reprogramação: de volta para a imortalidade
Na última coluna do ano passado (aqui), cantei a bola de que a reprogramação celular poderia ser um eventual assunto bombástico em 2007. Bola na caçapa. Aliás, foram duas com uma tacada só: reprogramação celular e modificações epigenéticas (alterações químicas no DNA, hereditárias, mas que não afetam o código genético propriamente dito). Mas não foi difícil adivinhar que uma viria ligada a outra: afinal, a reprogramação requer que as instruções epigenéticas do DNA sejam, de fato, alteradas.
O assunto tem tido grande destaque nos principais jornais e revistas do mundo. Isso porque essa tecnologia representa uma nova forma de medicina e, logicamente, com alto potencial lucrativo: prevê o uso terapêutico das próprias células do paciente. Com toda a certeza, quando estiver em uso, a nova técnica será superior aos recursos dos cirurgiões ou às drogas não-específicas dos oncologistas.
A reprogramação consiste em fazer com que uma célula já especializada volte a assumir uma forma mais maleável e potente. Por exemplo, pode-se retirar células da pele de um indivíduo adulto e transformá-la numa célula não-especializada, indiferenciada e com a capacidade de se dividir indefinidamente. Essa célula indiferenciada e imortal teria o potencial de se especializar novamente na mesma célula da pele, ou em outro tipo celular qualquer, mesmo num neurônio. Em resumo, consegue-se obter células-tronco embrionárias sob encomenda, usando o mesmo material genético do paciente e evitando uma eventual rejeição.
Existem duas formas básicas de reprogramar uma célula especializada. Uma delas prevê a transferência do núcleo (aonde o material genético está localizado) para dentro de um óvulo não-fertilizado, cujo núcleo foi retirado previamente. Dessa forma, ao estimular o óvulo a se dividir com um impulso elétrico, ele passa a proliferar usando o DNA de outra célula. Ora, como o óvulo consegue formar todas as células especializadas de um organismo, as células resultantes dessa divisão induzida também possuirão esse potencial.
Essa foi a forma usada para produzir a ovelha Dolly, resultado final que comprova a eficácia do experimento, pois formou-se um indivíduo adulto a partir da transferência do núcleo de uma célula especializada. Mas o processo não é fácil, principalmente com células humanas (vale lembrar que foi justamente essa a fraude cometida pelo grupo sul-coreano liderado por Woo-Suk Hwang). Uma série de anormalidades foram observadas em animais clonados dessa forma, provavelmente por conseqüência de uma ativação incorreta do óvulo não-fertilizado, uso de espécies híbridas ou mesmo de uma reprogramação incompleta.
Semana passada, um avanço técnico mostrou que é possível chegar aos mesmos resultados utilizando células do óvulo fecundado por um espermatozóide, já em divisão, ao invés de óvulos não-fertilizados (Egli e colegas, “Nature”, 2007). O dado sugere que os fatores responsáveis pela reprogramação não estão somente no óvulo, mas também nas células derivadas das primeiras divisões celulares após a fecundação. Encontrar esses fatores parecia estar muito distante, pois o processo é raro e regulado de forma muito precisa.
No entanto, em julho do ano passado, o grupo japonês liderado por Shinya Yamanaka (Kazutoshi e Yamanaka, “Cell”, 2006), não só identificou os fatores responsáveis pela reprogramação como também mostrou que eles conseguem induzi-la de maneira semelhante à obtida pela transferência nuclear. Essa segunda forma de induzir a reprogramação não utiliza óvulos ou qualquer material embrionário.
A estratégia de Yamanaka foi acionar genes essenciais para a manutenção de células-tronco embrionárias em células da pele de camundongos. O grupo começou com 24 candidatos e foi subtraindo um a um, até achar quais seriam os absolutamente necessários para reverter uma célula da pele em célula-tronco embrionária.
Um parêntese: a escolha da pele como fonte de célula especializada não foi ao acaso. A extração e manutenção das células da pele é relativamente fácil. Caso o processo venha a se repetir em humanos, essa escolha teria que ser re-pensada, pois, ao contrário dos camundongos, a pele humana é muito mais exposta aos raios ultravioleta que podem induzir mutações genéticas.
Surpreendentemente, são apenas quatro os fatores necessários para a reprogramação. Os quatro genes Oct3/4, Sox2, c-Myc e Klf4 são conhecidos fatores de transcrição, isto é, tem a função de ativar ou desativar um ou mais genes. Tanto o Oct3/4 quanto o Sox2 fazem parte de um complexo protéico responsável por manter as células-tronco num estado indiferenciado (ou seja, não-especializado, “genérico”).
A surpresa veio com a identificação do c-Myc e Klf4, ambos oncogenes, ou seja, diretamente relacionados ao desenvolvimento de cânceres. O fato de esses genes estarem sendo requisitados é mais uma evidência de que as células-tronco têm uma assinatura epigenética parecida com células cancerígenas. Por isso mesmo, todo cuidado é pouco quando se cogitam ensaios clínicos usando esse modelo.
Também na semana passada, Yamanaka e outros dois grupos conseguiram repetir a façanha e melhorar a receita (Okita e colegas, “Nature”, 2007; Wernig e colegas, “Nature”, 2007 e Maherali e colegas, “Cell Stem Cells”, 2007). Com pequenas modificações na receita original, esses grupos conseguiram mostrar que as células reprogramadas sofrem um profundo “reset” epigenético, deixando-as muito parecidas com células-tronco embrionárias. O fato de ocorrer uma drástica reconfiguração epigenética é extremamente interessante, pois indica que a manutenção do estado pluripotente (a capacidade de gerar vários tipos de tecido) não depende apenas da ativação de alguns genes – esses seriam necessários apenas nos estágios iniciais da reprogramação.
A existência de uma via molecular para a reprogramação celular é um achado extraordinário. Além de representar o primeiro passo para que isso seja repetido com células humanas, o processo dribla os entraves morais, pois nenhum embrião ou óvulos seriam necessários. Dessa forma, as restrições financeiras a esse tipo de pesquisa (principalmente nos EUA) devem desaparecer.
Vale notar que, ao contrário do tedioso e meticuloso transplante nuclear, o método de Yamanaka é relativamente simples. Sua maior vantagem é poder ser reproduzido em qualquer laboratório de biologia celular e molecular, o que provocará uma explosão de descobertas científicas. Finalmente, esse avanço deve atrair um maior número de investidores, um tanto desacreditados até então, culpa também do desgaste jurídico ligado às células-tronco.
Empresários e investidores vão olhar isso com outros olhos agora. Em primeiro lugar, a nova técnica revelou uma via molecular que pode ser manipulada, e isso os cientistas sabem fazer faz tempo. Em segundo lugar, ela escapa da patente mantida pela Universidade de Wisconsin sobre o cultivo e manutenção de células-tronco embrionárias humanas derivadas de forma convencional – o que é interessante do ponto de vista financeiro.
É importante ressaltar que esses estudos não invalidam o trabalho com células-tronco embrionárias convencionais pois, para a ciência, quanto mais métodos paralelos, melhor. Afinal, todos apresentam suas vantagens e limitações.
13 dezembro, 2007 as 3:47 am
greatings
agree
30 junho, 2007 as 4:34 am
Muito obrigada pela dica, Alysson. Vou analisar com calma os programas e considerar seriamente o da UCSD.
27 junho, 2007 as 5:32 pm
Caros Leitores,
Desculpem o atraso, mas tentei respondê-los anteriormente e o sistema não aceitou minhas mensagens. Tinha colocado diversos posts com as últimas novidades sobre células-tronco aqui e aparentemente nada foi publicado. Mas vou atualizando vcs aos poucos. Grato pela paciência!
abs,
27 junho, 2007 as 3:33 pm
Oi Wagner (4),
Sua pergunta faz muito sentido e a verdadeira resposta é quem nao sabemos o que acontece com a telomerase. Tudo isso é muito recente e ainda fenomenal, mas pouco mecanismo molecular. Acabo de chegar do ISSCR, na Austrália, onde essa e outras questões foram debatidas e estão sendo estudadas no momento. Manterei os leitores informados sobre essas e outras questões em futuras colunas!
Grato pelo interesse.
Abs,
27 junho, 2007 as 3:25 pm
Oi Odele,
Que bom te rever por aqui!
Vc está correta, a maioria dos tecidos do corpo humano possue células-tronco, mas nem sempre é possivel isola-las. Esse é justamente o caso das celulas-tronco neurais, vc teria que literalmente abrir o cerebro da pessoa para acessá-las. Por isso as celulas embrionarias são tão importantes. A ciência avança devagar, mas de vez em quando dá uns saltos e nos surpreendemos. Esse é o caso da reprogramação celular. Também estou torcendo para que todos os problemas éticos/morais e financeiros que cercam as células-tronco acabem de uma vez, facilitando a pesquisa. Quanto antes isso acontecer melhor.
Com carinho.
Alysson
27 junho, 2007 as 3:17 pm
Oi Ana (13),
O programa da UCSD e relativamente novo e ainda não tem o mesmo peso que Harvard ou Princeton. No entanto, em San Diego vc terá a oportunidade de se envolver com o maior centro de biotec nos EUA (e que não para de crescer). Dessa forma, eu recomendaria o programa da UCSD, mas e uma questão pessoal!
Grato pelo interesse,
Abs,
Alysson
27 junho, 2007 as 1:49 pm
Parte 1a
Oi Pessoal,
Estou agora em Cairns, na Austrália, participando do maior congresso internacional sobre células-tronco o ISSRC. Este é o quinto congresso anual. Participo desde o primeiro que teve apenas umas 100 pessoas, esse já conta com quase 2000!!
Vou tentar mantê-los atualizados diariamente das últimas notícias usando esse espaço como um blog provisório.
27 junho, 2007 as 1:49 pm
Parte 1b
A temperatura aqui esta uns 25-27 graus, com um pouco de chuva. O estilo da cidade lembra muito o Hawaii, com uma população local muito simpática, misturada com asiáticos que vivem aqui ou estão apenas de passagem. Lojinhas anunciam todo tipo de bujigangas e excursões para visitar a grande barreira de coral ou alimentar cangurus. Logicamente, tudo anunciado em inglês e japonês. No local do congresso a população não e diference: muitos estudantes asiáticos em toda parte, todos com celular e laptops pra cima e pra baixo.
27 junho, 2007 as 1:30 pm
Parte 3
Amanhã as palestras serão voltadas para a diferenciação nas três camadas germinativas, ecto, endo e mesoderme. Também haverá um almoço com jovens pesquisadores sobre como conseguir financiamento via CIRM a nova agencia financiadora de pesquisa com células-tronco na Califórnia. Tudo promete ser muito empolgante! Depois conto as novidades…
Abraços!
27 junho, 2007 as 1:29 pm
Parte 2b
Os resultados fantásticos obtidos e o estilo único e carismático de Yamanaka conseguiu eclipsar grandes nomes do meio científico americano, como o Rudolf Jaenisch e Kevin Eggan. Será que isso é um reflexo da postura Bush contra células-tronco embrionárias? Se as conseqüências das ações políticas continuarem a pôr os EUA em segundo plano, esse será o melhor momento para investir nesse tipo de pesquisa, principalmente em países como o Brasil, cheio de energia e criatividade.
27 junho, 2007 as 1:28 pm
Parte 2
Ontem as palestras foram todas em cima do assunto mais quente do momento, a reprogramação celular. Não tem jeito, esse será o futuro das células-tronco. A questão agora será verificar as vantagens e desvantagens das diferentes formas de reprogramação. Por exemplo, o japonês Yamanaka mostrou que sua forma de reprogramar células adultas ainda tem muito o que melhorar. Ele usou vetores retrovirais para inserir os quatro genes necessários para a reprogramação, mas a inserção do genoma viral no DNA hospedeiro provocou o surgimento de câncer em 20% das quimeras de camundongo que ele criou.
27 junho, 2007 as 12:32 am
Alysson,
tambem gostaria de saber o que mais vc escreveu na parte 1 e 2, que nao foi publicado aqui.
abs,
26 junho, 2007 as 7:27 pm
E esse blog, é atualizado mais naoo???
23 junho, 2007 as 11:24 pm
Olá Dr.Alysson,
Há tempos não visito sua coluna da qual gosto muito. Este artigo, como todos que você escreve, está excelente e transmite o entusiasmo com que foi escrito.Tenho lido que novas pesquisas estão mostrando que as cél. tronco podem ser encontradas em várias partes de nosso corpo como pele, na polpa dentária, coração, fígado, intestino, etc., ou seja, nós seríamos uma grande fonte de cél.tronco, o que seria ótimo pois se eliminaria o problema da rejeição. É isso mesmo Dr? Resta saber quanto tempo ainda teremos que esperar para que a terapia com cel.tronco seja uma realidade. Chegará a tempo para regenerar os neurônios de minha filha Flavia?
Um abraço Dr.Alysson.
23 junho, 2007 as 11:44 am
Alysson, pretendo estudar neurociência e sua relação com a filosofia do Direito. Pergunto-lhe: o programa da UCSD é indicado ou seria melhor tentar outra universidade, como o programa de Princeton, por exemplo??? Por favor, gostaria de saber sua opinião.
20 junho, 2007 as 7:48 pm
Oi Alysson gostaria de saber o que vc. escreveu na parte 1 e 2, pois so publicaram a 3.Da pra repetir.Estou curiosa.Abraços Marines
20 junho, 2007 as 8:38 am
Oi Alysson, esta foi a melhor notícia sobre estudos com células-tronco. Tomara, que este novo método, apresente muito mais vantagens do que limitacoes.
18 junho, 2007 as 8:59 pm
Parte 3
Amanhã as palestras serão voltadas para a diferenciação nas três camadas germinativas, ecto, endo e mesoderme. Também haverá um almoço com jovens pesquisadores sobre como conseguir financiamento via CIRM a nova agencia financiadora de pesquisa com células-tronco na Califórnia. Tudo promete ser muito empolgante! Depois conto as novidades…
Abraços!
18 junho, 2007 as 12:35 am
muito bom saber que esse sera o futuro das celulas-tronco!
17 junho, 2007 as 4:58 pm
Excelente artigo, como de costume. É impressionante a maneira simples como você descreve tema científico complexo. Se por um acaso eu tivesse tido a sorte de ter como professor uma pessoa como você, certamente teria enverado por essa área. Parabéns, mais uma vez. Concordo com o Geraldo, você deve ter escrito o artigo pulando de alegria.